Secretária dos Povos Indígenas diz que fortalecer a produção e a educação serão prioridades de sua pasta
Uma das raras lideranças indígenas a integrar o governo bolsonarista de Gladson Cameli, a agora secretária afirma que gestor mudou suas visões sobre a agenda ambiental e indígena, após o desmonte das duas políticas durante o primeiro mandato
Leandro Altheman
Dos Varadouros de Cruzeiro do Sul
O ANÚNCIO da (re)criação da Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas (Sepi) do Acre deve ter sido uma surpresa para muitas pessoas. Afinal, não era o que se esperava de um governador comumente associado ao agronegócio, à flexibilização das leis ambientais e, por vezes, ao bolsonarismo. Eleito governador pela primeira vez em 2018, ajudado pela onda antipetista que varreu o país naquele ano, Gladson Cameli (PP), contudo, tem demonstrado habilidade política (e por vezes oportunismo) em se desvencilhar de polêmicas ideológicas.
Assim foi durante a pandemia, quando mesmo declarando sua lealdade a Jair Bolsonaro, buscou parcerias com o então governador paulista João Dória Jr (PSDB). para a aquisição de vacinas, enquanto o ex-presidente retardava a aquisição de imunizantes pelo Brasil, e fazia campanhas agressivas contra as medidas de isolamento social. Já no campo da política ambiental, o governador acreano adotava a mesma estratégia palaciana de deixar a boiada passar, levando o Acre a níveis recordes de desmatamento da floresta.
Agora, talvez motivado por um instinto de sobrevivência política, Gladson recria a Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas. O governador parece saber que, para um bom diálogo com o governo Lula (PT), deverá atender a certos critérios já estabelecidos nas relações institucionais. Além disso, não poderia deixar passar recursos que ultrapassam os R$ 13 milhões obtidos pelo Acre por meio de parcerias com governos europeus para serem aplicados nas políticas indígenas, e que precisam ser gerenciados de maneira responsável, e de preferência pelos próprios beneficiários: os povos indígenas.
O Acre já teve uma Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas, que durante o governo Jorge Viana (PT) foi ocupada pelo líder do povo Ashaninka Francisco Piyãko. A boa relação com os povos originários do Acre era condição necessária imposta pelos organismos financiadores internacionais para a liberação de recursos para obras e ações importantes, a começar pela rodovia da integração acreana, a BR-364.
A mulher indígena escolhida para o cargo, Francisca Arara, ou no tronco linguístico de seu povo, os Shawadawa (povo arara), Yaka Shawadawa foi professora por oito anos, e tem larga experiência na organização dos povos indígenas. De Manaus, onde participou de uma agenda do Conselho Regional dos Povos Indígenas da Amazônia Legal (Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso), presidido por ela, Yaka Shawadawa aceitou conversar por telefone com a reportagem do Varadouro.
Por respeito à autodeterminação e à identidade dos povos indígenas, a secretária será chamada por seu nome Shawadawa.
Leia a entrevista:
Varadouro: A criação da Sepi foi resultado de uma iniciativa do governador ou uma pressão dos povos indígenas?
Yaka: Foi muito mais uma iniciativa do governador. Quem o conhece sabe que ele não faz nada sob pressão. Ele [Gladson] passou muito tempo conversando e planejando junto às lideranças indígenas do estado [a criação da Sepi]
V: Na sua visão, qual foi a principal motivação do governador?
Yaka: São muitos recursos disponíveis para aplicação juntos aos povos indígenas. Somente do Programa REM (do banco alemão KFW) são 13 milhões de reais. Há ainda outros três milhões pactuados através do Fundo Amazônia. Estes recursos precisam ser gerenciados com responsabilidade e ampla participação das organizações indígenas. Nosso objetivo é criar uma estrutura técnico-administrativa enxuta e eficiente. Para liberar estes recursos, não é de qualquer jeito. Tem que chegar na ponta para quem mais precisa. A burocracia é grande e não queremos burocratizar ainda mais. Por isso, precisamos de pessoas ágeis para dar celeridade a isso. Se o recurso não chega na ponta, pega mal para todos, tanto para o governo quanto para as organizações indígenas. Hoje nós temos problemas sim de gestão pública, mas também problemas de gestão indígena. Algumas organizações estão inadimplentes, por exemplo. A SEPI também vai atuar nesse ponto.
V: Quais deverão ser as principais ações da Sepi?
Yaka: De imediato teremos uma força tarefa na Educação e outra na Produção, além de atuar junto à governança das organizações indígenas. Desde 2012 temos implementado, com sucesso, políticas de segurança alimentar nas aldeias. Muitas Terras Indígenas já têm práticas bastante avançadas, mas há outras que ainda não. Identificamos, inicialmente, cinco Terras Indígenas do Acre que precisam receber uma atenção maior nesse sentido. Nos locais onde a agrofloresta já está avançada, há demanda por selo de produção orgânica e estrutura de armazenamento e comercialização. Muitas vezes parte da produção se perde em razão da falta dessas estruturas. Há demanda por preço justo na produção que é comercializada. Queremos técnicos apoiando a produção para ampliar e fortalecer a segurança alimentar. Também temos experiências positivas de comercialização para a merenda regionalizada que queremos ampliar, além de fornecer para os festivais, e havendo sobra de produção, encaminhar para a comercialização nos municípios.
V: E na Educação?
Yaka: Fui professora por oito anos, numa época em que os salários eram muito baixos, faltava formação e não havia apoio. Hoje a situação é outra: temos abono salarial, 13°, estrutura para equipamentos nas escolas. Mas ainda há muito a ser feito, por exemplo, na formação de professores e na construção e reforma de escolas. Queremos dar preferência a professores indígenas atuando nas aldeias, mas se falta formação a vaga acaba preenchida por não-indígenas. Vamos batalhar junto ao MEC para garantir equipe e recursos para formação. O governador sabe do problema e está sensível, mas algumas demandas cabem ao MEC e ao governo federal. O MEC precisa se posicionar a respeito. Antes tínhamos formação de até 45 dias, hoje em dia temos oficinas de apenas três dias. O salário é bom, suficiente para que um professor indígena possa estruturar sua vida e família.
“Votei no Lula. Mas o que eu acredito de verdade é no trabalho e na gestão. Por outro lado, o governador Gladson mudou muito sua visão sobre as questões ambientais e indígenas, podemos dizer que evoluiu na medida em que ele participou das agendas“
V: A Sepi planeja implementar uma representação no Juruá?
Yaka: Sim, queremos uma representação em Cruzeiro do Sul. Estamos em conversa com o Poe (também professor, do Povo Puyanawa, em Mâncio Lima). Hoje existe a coordenação regional da Funai no Juruá, bem como o DSEI Alto Juruá, e uma parte importante do movimento indígena. Também pensamos em realizar um encontro no Juruá.
V: Como você avalia, politicamente falando, o fato de o governador ter tomado essa iniciativa da recriação da Sepi, tendo em vista as suas posições políticas?
Yaka: Acho que o governador é como eu. Não sou filiada a nenhum partido político. Votei no Lula. Mas o que eu acredito de verdade é no trabalho e na gestão. Por outro lado, o governador Gladson mudou muito sua visão sobre as questões ambientais e indígenas, podemos dizer que evoluiu na medida em que ele participou das agendas. Neste segundo mandato sua visão sobre o tema é outra e o que ele quer é trabalhar sem olhar para quem, o que vale no caso dessas políticas destinadas às populações indígenas.
*Uma curiosidade: Yaka Shawadawa teve participação no filme premiado do diretor Sergio Carvalho: Noites Alienígenas, na qual interpreta a mãe de um jovem indígena. No filme, Yaka nos brinda com um cântico de seu povo: Shawadawa – cuja Terra Indígena está situada às margens do rio Cruzeiro do Vale, município de Porto Walter, no Vale do Juruá.
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