Noke Ko’í aceitam acordo de compensação, e obra do linhão é retomada no Juruá
Após uma série de reuniões e a paralisação das obras do linhão de transmissão de energia entre os municípios de Sena Madureira e Cruzeiro do Sul , o povo Noke Ko’í entrou em acordo com a empresa Acre Transmissora (Zopone Engenharia), responsável pela obra. A suspensão das obras foi uma medida tomada pelo povo para negociar os impactos ambientais causados pela obra.
Veriana Ribeiro
Dos varadouros de Cruzeiro do Sul e Rio Branco
O sertanista Antônio Luis de Macedo, o Txai Macedo, estaciona na frente do Swamy Hotel às 07h da manhã, no dia 9 de abril, para levar a reportagem do Varadouro até a Terra Indígena Campinas/Katukina, localizada pouco mais de 80 km de distância de Cruzeiro do Sul. Naquele dia aconteceria o encontro decisivo de negociação entre o povo Noke Ko’í e a empresa Acre Transmissora (Zopone Engenharia), responsável pelas obras do linhão de transmissão de energia elétrica entre os municípios de Sena Madureira e Cruzeiro do Sul.
O empreendimento, que passa dentro da terra indígena, havia sido paralisado pela comunidade no mês de março após serem constatados graves impactos ambientais que não foram acordados no processo de licenciamento, incluindo o corte de árvores sagradas para a comunidade. Txai Macedo trabalha há anos com aquela comunidade e vinha acompanhando o caso de perto.
Durante o período em que a obra ficou paralisada, circularam notícias falsas sobre supostos sequestros de funcionários da empresa e autoridades. Entre os possíveis sequestrados estariam o procurador da República Luidgi Merlo, que participou ativamente das negociações entre indígenas e a empreendedora. Em entrevista ao Varadouro naquela ocasião, o procurador negou as informações de que ele teria sido feito refém pelos indígenas, e que estariam exigindo o pagamento de resgate por sua soltura.
Apesar da tensão entre comunidade e empresa, a reunião que Varadouro acompanhou na aldeia Kamanawa aconteceu de forma tranquila e ambas as partes pareciam dispostas a chegar em um acordo.
Após esse encontro, foram semanas de negociações mediadas pelo MPF, até que fosse formalmente assinado, na última quinta-feira, 9, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os Noke Ko’í e a Acre Transmissora. O documento prevê a criação de um fundo permanente para o povo indígena no valor de R$ 280 mil ao ano, durante o período de vigência da concessão, a ser transferido para a Associação Geral do Povo Noke Ko’i da Terra Indígena Campinas/Katukina (AGPN).
Também foi acordado o pagamento no valor de R$ 1 milhão, a ser pago em cinco parcelas semestrais de R$200 mil, referente a compensação pecuniária pelas seis samaúmas derrubadas durante a construção do linhão. Os valores recebidos e geridos pela AGPN estarão sujeitos à prestação de contas ao MPF e devem, obrigatoriamente, ser gastos pela comunidade em ações vinculadas aos eixos: Proteção Territorial; Proteção dos direitos e tradição do Povo Noke Ko’i; e Promoção da soberania alimentar e da sustentabilidade.
A empresa também se compromete a contratar a AGPN para realizar o serviço de roçada da faixa de serviço, praça de torre e acessos, mediante o pagamento do valor de R$ 40 mil a cada roçada. Qualquer nova intervenção relativa ao empreendimento deverá ser feita em comum acordo com a comunidade local.
O cacique Poa Noke Ko’í, liderança geral da TI Campinas/Katukina, acredita que a comunidade chegou a um acordo satisfatório, tendo em vista que esta será uma obra que irá para sempre alterar a vida da comunidade no território. “Como a linha de transmissão de energia do linhão é uma obra permanente, nós queremos também um fundo permanente. O linhão é para toda a vida, nunca vai acabar. O povo Noke Ko’í também”, afirma.
Samaúmas Sagradas
A paralisação foi uma medida tomada pelos Noke Ko’í devido aos graves impactos ambientais causados pela construção das torres dentro de seu território. O estopim foi o corte de seis samaúmas sem a devida autorização da comunidade. Para os Noke Ko’í, as samaúmas possuem um valor espiritual e sagrado.
“Para o homem branco é como uma árvore qualquer, mas para nós é diferente, é uma árvore sagrada. Nós nunca derrubamos uma árvore samaúma enquanto estivemos aqui, e quando chegou a empresa seis foram tombadas e quatro identificadas para serem derrubadas depois. Nisso, também fechamos um acordo [de pagamento] para cada samaúma derrubada”, explica o Cacique Poa.
Txai Macedo explica que as samaúmas são consideradas sagradas não apenas pelo povo Noke Ko’í, mas por várias comunidades indígenas da Amazônia. “A samaúma é tida como a árvore responsável pelo espírito de todas as árvores. Então ela tem muitas relações estabelecidas na convivência harmoniosa que faz com a natureza. A samaúma tem uma forte contribuição na manutenção dos lençóis de água, e ela é tida como a maior hospedeira biológica do planeta. Em relação, por exemplo, às culturas indígenas, ela tem efeito na área medicinal e também faz parte da formação dos pajés e da ação de desenvolvimento do trabalho dos pajés nessa relação espiritual”, afirma.
Na região, muitos povos a definem como a rainha da floresta. Sua exuberância chama a atenção. Ao longe é possível ver a sua copa no meio das demais espécies. Embaixo, seus troncos e raízes também chamam a atenção pela imponência. Assim como as copas, as partes superiores também são um redutor para toda a biodiversidade. Com toda sua imponência e majestade, o nome rainha da floresta lhe cai perfeitamente. Por isso, é tão reverenciada pelos povos indígenas.
Com a compensação pecuniária das samaúmas, a intenção é que a empresa seja penalizada pelas derrubadas indevidas e os impactos negativos ao meio ambiente, além de levar em conta toda a importância cultural e espiritual da árvore na definição do valor a ser pago para a comunidade. A Transmissora Acre deverá se comprometer a não suprimir mais as árvores da espécie, a não ser em caso de extrema necessidade ao empreendimento, ocasião em que a negociação pela indenização se dará entre a concessionária e a AGPN.
De acordo com inquérito civil instaurado pelo MPF em 2022, a empresa levou em consideração apenas aspectos mobiliários da região ao valorar a compensação pecuniária devida à comunidade indígena pela restrição de uso das áreas de servidão, faixa de serviço, praças de torre e acessos.
Para o MPF, a compensação deveria levar em consideração, também, aspectos socioculturais daquele povo. No inquérito apurou-se, ainda, que a Transmissora Acre não esclareceu suficientemente os Noke Ko’i acerca da realização do Estudo do Componente Indígena (ECI) e do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (CI-PBA) relativos ao empreendimento, especialmente, quanto aos cortes das samaúmas.
Falhas na Consulta Prévia
Atendendo a demanda do povo Noke Ko’i, a Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-AC) com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) contratou uma equipe de juristas para apoiar os indígenas neste impasse. Para a CPI-AC, é muito importante que o Protocolo de Consulta Prévia com os povos indígenas seja respeitado e feito de forma adequada, para evitar problemas como o que aconteceu na obra do linhão.
“Os empreendedores precisam levar em conta a escuta, a consulta e o tempo adequado. Respeitar os modos de vida dos povos indígenas e dar conta das demandas que os povos apresentam para melhorar a vida das pessoas e dos ambientes. Esse empreendimento parece ter sido corrido. O governo anterior passando a boiada”, afirma Vera Olinda Sena, coordenadora executiva CPI-Acre.
“O ajuste de conduta é um indicador dessa celeridade. Não adianta empreendedor ou governos estarem querendo correr e quando se deparam com problemas, querem sempre colocar a conta para os indígenas. Isso não é aceitável. Infraestrutura e equipamentos só não bastam. Não é só adquirir, construir, entregar. É principalmente a gestão geral, o planejamento, a manutenção para, aí sim, contribuir com a autonomia dos povos. Os Noke Ko’í identificaram problemas e revisaram a iniciativa, criaram uma rede de parcerias para os ajustes. E poder contar com o MPF dá segurança para todos”, completa ela.
Desde 2020 a comunidade Indígena Campinas/Katukina do Povo Noke Ko’í tem um protocolo de Consulta Prévia firmado e desenvolvido em parceria com a CPI-AC.
A Consulta Prévia é uma obrigação do Estado brasileiro de perguntar aos povos indígenas sua posição sobre decisões administrativas e legislativas capazes de afetar suas vidas e direitos. Esse diálogo deve ser amplamente participativo, ter transparência, ser livre de pressões, flexível para atender a diversidade dos povos e comunidades indígenas e ter efeito vinculante, ou seja, deve levar o Estado a incorporar o que se dialoga na decisão a ser tomada. A Consulta Prévia está garantida na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei no Brasil desde 2004 (Decreto Presidencial nº 5051).
Francisco Piyãko, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), acredita que esta rodada de negociações é uma grande vitória não apenas para o povo Noke Ko’í, mas para todos os indígenas que precisam lidar com grandes empreendimentos em suas comunidades.
“A suspensão das atividades da empresa é uma demonstração de muita força do movimento indígena e do povo Noke Ko’í. Eles se sentiram afetados e prejudicados, pois as questões não estavam claras para a comunidade. Acredito que isso terá repercussões para qualquer outro empreendimento que ocorra na região. Também temos a situação da continuidade da BR 364, que liga Cruzeiro do Sul a Pucallpa, e que também está judicializada. É importante enfatizar que este não é um confronto de interesses, não se trata disso. Trata-se de fazer o processo de forma responsável, respeitando os direitos dos povos indígenas”, diz Piyãko.
A Opirj foi contactada pelo povo Noke Ko’í para assessorar as negociações com a empresa, tendo em vista que, inicialmente, a comunidade não estava satisfeita com as ações da empresa no território e o impacto gerado. “No caso dos Noke Koi, percebemos que havia um empreendimento muito grande e, ao mesmo tempo, vimos o povo muito enfraquecido diante disso. Eles eram xingados e taxados como preguiçosos, que não queriam trabalhar. Vimos todo tipo de conversa. Apesar de o programa levar em conta um Plano Básico Ambiental na implementação, ficou claro que a agenda não era fortalecer o povo, mas sim as instalações”, diz o coordenador da Opirj.
Já o sertanista Txai Macedo, criador da Fundação Txai, ressalta que as instituições públicas devem garantir a proteção dos direitos indígenas, baseadas na legislação existente e políticas públicas. “As instituições já possuem o poder da legislação, de trabalhar com a legislação indigenista brasileira, e portanto a obrigação com as políticas públicas obrigatórias. Então é necessário que essas instituições estejam atentas e participativas nesse sentido de ajudar com que os direitos indígenas sejam assegurados”, afirma.
LEIA artigo de Txai Macedo escrito para Varadouro
Para ele, a criação do fundo permanente será usado para o fortalecimento da comunidade. “Vem muito a contribuir com as ações das comunidades, naquilo que se relaciona à sua cultura, tanto na área de produção quanto na parte artística, material e imaterial, porque com condições, as comunidades vão poder desfrutar de ações que serão possíveis dentro da associação. Vai contribuir muito com a preservação do meio ambiente onde os índios possam estar desenvolvendo suas roças e reflorestando, tornando os roçados sustentáveis através dos consórcios dos sistemas agroflorestais”, ressalta.