Enquanto tento respirar

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Os rios estão secos, mas a cabeça segue cheia de problemas. Abro a boca pra reclamar do cansaço, do tédio, da inexistência de transporte público nesta cidade, mas me engasgo com fumaça. Um candidato a vereador que nunca vi mais irrelevante à esfera pública me oferece uma batidinha nas costas. Acho que prefiro engasgar até a UPA e tomar um chá de cadeira.

Queria ficar em paz com minha dor, mas acabo me doendo também pelo salário da técnica de enfermagem que me atende e da pessoa ao lado com malária pela terceira vez. Que bom poder voltar pra casa um pouco melhor não fossem os olhos se encherem de pessoas em situação de rua, fazendo uso abusivo de drogas e lesionadas por talvez um espírito maligno sem corpo, sem matéria, sem nome e endereço já que dizem por aí que não se pode dar muita credibilidade às acusações que fazem.

Na maior parte do tempo tento ser otimista, mas é que tenho ficado muito ocupada tentando afastar os pensamentos apocalípticos deste sol laranja e ainda nem é 7h da manhã. É claro que os urubus sobrevoando nossas cabeças não ajudam, muito menos as carreiras dos gabirus pra lá e pra cá. Tentar não sufocar dá muito trabalho.

Será que é mais fácil manter os chakras alinhados de dentro de um carro com ar-condicionado? Será que desacreditar do aquecimento global de dentro de um prédio espelhado e refrigerado é mais fácil do que sob um teto de brasilit? Será que é desse chão de azulejos que nascem as boas ideias para se cortar uma seringueira centenária que, além de ter nascido árvore e fazer coisas apropriadas a uma árvore, tipo, sei lá, dar sombra e fazer fotossíntese, é também um dos maiores símbolos deste território?

No lugar da seringueira, uma estátua do Marechal Thaumaturgo  de Azevedo fincando bandeira, já que em quase todos os lugares do planeta – e até da Lua! – homens penetrando objetos fálicos sobre a terra são eleitos como marcadores de memória e identidade mais adequados do que a própria natureza, tão feminizada ao longo da história e por isso mesmo tão explorada e deteriorada. Queimam-se as florestas como se queimavam as bruxas de outrora, claro, sempre em nome do progresso. E por falar em bruxas de toda hora, será que ao menos uma mulher será eleita à vereança de Cruzeiro do Sul em 2024? E será que se for eleita vai realmente lutar por uma cidade mais digna às mulheres? A todas as mulheres? Pretas, indígenas, evangélicas, umbandistas, trans, periféricas, lésbicas, em situação de rua e em privação de liberdade? 

Tentar não sufocar dá muito trabalho, mas eu já disse isso. Tenho estado repetitiva, tenho feito e refeito planos de fuga, mas pra onde se até o céu do meu país Ceará foi tomado de fumaça? É nossa condição orgânica neste planetinha sermos um só, mas acho difícil me reconhecer em gente que está em paz nesta esquina do século XXI em que tenho me perguntado coisas como

“Com quantos paus se faz uma casa tipicamente acreana para uma família viver bem sem precisar pedir esmola na rua? Ou ter que fazer vaquinha pra acessar tratamento de saúde?” Desculpem o desabafo sem classe e sem parágrafo, sei que mulheres nervosas são muito desagradáveis, ao menos eu fosse um homem, poderia ser incisiva. Vou ali me acalmar, respirar e torcer por chuva ácida pra diminuir esta sensação térmica de habitar Mercúrio. E vou parar por aqui porque não quero começar a falar sobre os peixes do Juruá. Pra boa entendedora, meia linha de palavra já faz uma tarrafa. 

Cruzeiro do Sul sob fumaça; a capital do Juruá também impactada pela queimadas que afetam aa Amazônia (Foto: Paulo Henrique Costa)
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