Em defesa da vida

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Descobri pelas redes sociais que parte da população de Cruzeiro do Sul acaba de marchar contra o aborto e a favor da vida (sic). Agenda que não é peculiar ao Acre, compondo uma reação nacional de alguns segmentos sociais ao retorno da pauta no STF da ADPF 442, ação cujo objetivo é que a Corte avalie a constitucionalidade da criminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação, tal qual instituiu o Código Penal no longínquo ano de 1940. Ou seja, a ação indaga se faz sentido, diante dos valores humanísticos da Constituição de 1988, as mulheres serem encarceradas porque não querem dar continuidade à uma gravidez indesejada.

Acredito sinceramente que a maioria das pessoas que compõem essas marchas são movidas por boas intenções, afinal, a vida é uma causa justa, pela qual vale a pena lutar. Mas de que vida estamos falando? É possível sopesar vidas e estabelecer um grau de importância abstrato sobre elas?

É preciso dizer que não se marcha apenas “contra o aborto”, o aborto não é um ente, um sujeito, ou algo com vida própria. É uma ação que se pratica sobre um corpo feminizado. Assim, não se marcha contra o aborto, se marcha contra o direito de as mulheres decidirem o que fazer com seus corpos em uma situação de angústia.

Veja, se marcha contra o direito das mulheres a um aborto legal e seguro, não contra a prática abortiva em si, uma vez que, mesmo sendo crime, estima-se que 800 mil brasileiras praticam abortos todos os anos. E definitivamente não se marcha abstratamente a favor da vida quando dados públicos apontam que, entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram após um aborto clandestino, sendo este o 5º maior fator de morte materna no país.

Muitas mulheres que abortam não morrem, mas ficam com sequelas graves em seus corpos em decorrência de procedimentos insalubres, já que são ilegais. Mais da metade dessas mulheres são pretas e pardas. Estamos cansadas de saber que mulheres com alguma condição financeira conseguem ter acesso a aborto seguro ou viajam para um país em que o procedimento não é criminalizado. Então, preciso me corrigir, se marcha contra o direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres negras, pobres e periféricas. Eu não sou a favor do aborto, mas sou extremamente contra que mulheres nessas condições que decidam fazê-lo sejam encarceradas ou morram em razão dessa escolha.

Se diz que o feminicídio é um crime que mata mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. Mas isto é uma impropriedade. As mulheres são assassinadas porque o mundo é ensinado a odiar e a objetificar mulheres, porque o Estado e a sociedade são incapazes de proteger as mulheres. Na verdade, o Estado encarcera e mata mulheres não brancas. O Estado limita a vida das mulheres e as mata em vida quando não lhes garante dignidade.

Há mais ou menos um mês, li uma notícia em um veículo de informação local em que a manchete anunciava algo como: “Mãe abandona filhas autistas na porta da casa do genitor”. Diante do absurdo, pensei se tratar de uma dessas pegadinhas de “encontre o erro”, afinal, como crianças podem ser abandonadas na presença de uma pessoa legalmente responsável por elas? Qual não foi a minha surpresa quando descobri que não apenas o tal veículo de informação teve essa compreensão como também o Ministério Público, Delegacia de Polícia e Judiciário dela partilharam: a mulher foi presa, solta em audiência de custódia, mas com tornozeleira eletrônica.

Ao pai, que inclusive sofre medida protetiva de urgência por ter ameaçado essa mãe, sua ex-mulher: nada. Ou melhor, o direito de existir na plenitude de suas decisões. Vejo o peso do desespero em ambos os genitores que tiveram três crianças autistas e fazem malabarismos nesses cuidados. Mas o peso do sistema penal parece recair apenas sobre um deles.


Se diz que o feminicídio é um crime que mata mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. Mas isto é uma impropriedade. As mulheres são assassinadas porque o mundo é ensinado a odiar e a objetificar mulheres, porque o Estado e a sociedade são incapazes de proteger as mulheres



Na faculdade de direito aprendemos que o direito penal é a última opção para a resolução dos conflitos sociais. Daí que não posso deixar de indagar se, para uma mãe sem emprego e sem maiores condições de cuidar de crianças com necessidades especiais, a criminalização seria a melhor resposta. Agora, essa mulher enfrenta ainda mais dificuldade de conseguir emprego – o qual é um direito constitucional, frise-se – pois agora ostenta uma tornozeleira eletrônica, prolongando a permanência das filhas em um abrigo, já que o pai se recusa a cuidar das três crianças ao mesmo tempo.

A mesma indagação vale para uma mulher em desespero que enfia uma agulha de tricô contra seu útero na tentativa de não mais se ver grávida. Se ela não morrer por complicações decorrentes de infecção, o cárcere é a melhor resposta? Diferentemente de bactérias que se autorreproduzem, os seres humanos necessitam da participação de dois sujeitos sexuados para gerar uma nova vida, mas o Código Penal nada dispõe sobre consequências jurídicas de um aborto para os homens que participaram dessa fecundação. Não há interesse em controlar a saúde sexual e reprodutiva dos homens e, a cada ano, cresce o número de crianças registradas sem o nome paterno no Brasil. Apenas na primeira metade de 2023, foram mais de 100 mil crianças nessa condição.

Às mulheres acreanas sobra o destino implacável de educarem seus filhos em um estado com pouca oferta de empregos formais, saneamento básico quase inexistente, transporte público para lá de precário e a via crucis de acessar serviços de saúde. Sei que muitas delas estarão nas fileiras dessas marchas, elas têm todo o meu respeito.

Meu desejo é que sejamos capazes de mobilizar outras marchas em defesa da vida, como, por exemplo, uma marcha que exija um serviço de saúde público adequado para as sul-cruzeirenses que convivem com câncer e têm de se submeter a TFDs em Rio Branco ou gastar todas suas economias para lutar contra a doença em outros estados, longe de suas casas. Ou ainda, quando tais economias não existem, articular “vaquinhas” na Internet para conseguir acessar algum tratamento digno. Situações absurdas em um país cuja Constituição Federal impõe um amplo sistema de promoção, proteção e recuperação de saúde. Sim, a vida é uma causa justa, que possamos defendê-la com efetividade.



Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.

leonisia.mouraf@gmail.com




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