Na disputa de narrativas que se estabelece nos dias de hoje em função da hiperconectividade globalizada, prevalece a de quem detém o capital. No entanto, estratégias de rompimento já se notam a partir da ocupação de espaços que o movimento indígena vem promovendo. E, nesse contexto, o óbvio, mais do que nunca, precisa ser dito. Precisa ser reafirmado.
Ideias como democracia, direitos humanos, mudanças climáticas e até o fato de que a Terra é redonda precisam o tempo todo ser lembrados. Em tempos de verdades líquidas, meias verdades, pós-verdades e desinformação, todo espaço é um novo front de batalha. Interesses econômicos tentam oferecer ao imaginário social uma nova história a ser contada, registrada e oficializada: a de que o direito sobre a ancestralidade, que está ligado à terra, só pode existir se estiver no lugar certo, na hora certa, estipulada por uma legislação branca.
E como nada é ao acaso, a tese do Marco Temporal vem sendo utilizada, claro, por ruralistas representantes da pior faceta do agronegócio para reivindicar a posse para si – em detrimento do direito originário dos povos indígenas. A disputa de narrativa serve, unicamente, à tentativa de mudar a história.
A pauta antiindígena e pró-garimpo veio para ficar. Não existe um futuro – e muito menos um presente – em que não será preciso lutar.A eleição de Jair Bolsonaro como presidente da República, em 2018, tornou apenas evidente o que sempre esteve presente: interesses vários sobre a Amazônia. A diferença é que isto agora passa a ser não apenas uma bandeira, como uma identidade a ser ostentada. E com orgulho. Com o aval de muitos.
Para funcionar, um projeto precisa de quem o coloque em prática; precisa de jagunços que o coloque em ação. Os poderes Legislativo e Executivo, de representação direta da sociedade, servem a outros senhores. Na Amazônia, onde está a maior parte da população indígena brasileira, dos 91 deputados federais eleitos em outubro de 2022, mais da metade é de partidos ligados diretamente ao bolsonarismo. A maior bancada na Amazônia Legal é do PL, com 19 parlamentares; seguida do MDB e do União Brasil, cada um com 18 deputados, e do Republicanos, com 10 eleitos.
Nas Assembleias Legislativas, os partidos dos parlamentares eleitos em 2022 com maior representação nos Parlamentos estaduais da Amazônia Legal foram MDB (29), União Brasil (26), Republicanos (24), PL (22) e o PSB (18).
O resultado disso se reflete nas propostas de lei apresentadas por esta “bancada da motosserra”, eleita pela população da Amazônia Legal. Vejamos apenas o caso em destaque no momento; o Projeto de Lei (PL 3334) em tramitação no Senado Federal, que quer a redução do tamanho das reservas legais das propriedades rurais nos municípios da nossa região. Hoje, apenas 20% das áreas de floresta nestas áreas podem ser derrubadas.
Pela proposta do senador Jaime Bagattoli (PL), parlamentar ligado ao agronegócio rondoniense, o desmatamento pode ser de até 50%. O relator da proposta é ninguém menos que o bolsonarista Márcio Bittar (União-AC), pecuarista ligado ao velho agronegócio acreano. Não é preciso dizer que Bittar posicionou-se favorável ao texto. Trata-se de um contumaz defensor do fim da legislação ambiental. Junto ao senador Plínio Valério (PSDB-AM), conduziu a fatídica CPI das ONGs – que em nada resultou, a não ser o pagamento de gordas diárias aos nobres senadores em viagens pela região para caçar unicórnios.
Ao analisarmos a postura da bancada da Amazônia Legal na pauta do Marco Temporal, veremos que a grande maioria votou favorável à tese de que só podem ser reconhecidas como terras indígenas as áreas devidamente ocupadas pelos povos até 1988, ano da promulgação da Carta Cidadã. Dos oito deputados federais do Acre, por exemplo, apenas uma parlamentar votou contra o Marco Temporal – quando o STF já havia decidido pela sua inconstitucionalidade. Mas a bancada da motosserra tem fascínio em atacar e fragilizar a Suprema Corte.
No Senado, o relator do Marco Temporal foi, nada mais, nada menos, do que Marcos Rogério (PL-RO). Ao percorrer o interior do estado defendendo tal tese, o bolsonarista deixou os indígenas em situação de extrema insegurança ao colocar na cabeça dos agricultores de que eles iriam perder suas propriedades por causa do Marco Temporal. Atitude irresponsável de uma figura pública eleita pelo voto popular. Todavia, não podemos esperar civilidade do bolsonarismo. É pedir muito.
Os estados da Amazônia Legal que possuem maior tradição de eleger partidos de direita são Roraima e Rondônia, mas também entram na categoria Amazonas e Tocantins. Esses estados apresentam em comum uma dominância da direita na maioria dos cargos, conforme aponta o Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (LEGAL).
Na junção das divisas dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, região denominada “Amacro”, conhecida também como a nova Fronteira do Desmatamento na Amazônia brasileira, a política pública voltada para a preservação da floresta passa por pedidos de extinção de Unidades de Conservação, como em Rondônia, autorização para exploração mineral em terras indígenas sem consulta prévia, como é o caso do Amazonas, e da abertura de estradas em regiões intocadas do bioma, sem consulta às populações afetadas, além de projetos que desafetam áreas da Resex Chico Mendes e rebaixam o Parque Nacional da Serra do Divisor para uma simples APA.
No Amazonas, o governo Wilson Lima (União) atropela a Convenção 169 e os direitos dos povos indígenas ao licenciar a exploração predatória de potássio nas terras reivindicadas pelo povo Mura – historicamente vítimas de um processo de expurgo de seus territórios. Em Rondônia, as terras indígenas continuam a ser invadidas por grileiros e madeireiros. Os casos dos Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau e os Karitiana são mais comuns.
O incentivo do governo Marcos Rocha (União) – bolsonarista convicto – ao agronegócio como o único indutor da economia local é o cheque-em-branco para assegurar a impunidade aos criminosos ambientais. Na Assembleia Legislativa (ALE-RO), a quase totalidade dos 24 deputados conduz sua própria política contra a preservação da floresta e contra os povos indígenas.
A contranarrativa indígena que ocupa o território digital devolve o protagonismo a quem de direito e faz frente contra a agenda das elites que pagam para ter a opinião pública em seu favor. O Varadouro nasce dessa contestação e soma-se às vozes dos povos tradicionais no reconhecimento por seu direito ancestral. Hoje e sempre. Embora pareça óbvio, precisa ser dito.
Neste Dia dos Povos Indígenas (que sejam todos os dias) reafirmamos a necessidade de defesa das populações tradicionais da floresta. Nossa região vive uma grave crise climática, com os indígenas sendo os mais impactados. Estamos matando aqueles que guardam a floresta, aqueles que asseguram a vida deste planeta.
Em seus territórios, onde há as menores taxas de desmatamento, é justamente onde querem estabelecer um marco para desmatar. A manutenção da floresta em pé para mitigar os efeitos da crise climática passa por assegurar o direito ancestral dos indígenas aos seus territórios – e protegê-los contra invasores.