Rondônia criou OAB no peito e na raça, mesmo sendo território e sem ter Tribunal
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
Advogados pioneiros em Rondônia protagonizaram uma história ousada. Depois da negativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), finalmente eles conseguiram, em 1974, criar e instalar a Seccional da instituição, que chegou ao cinquentenário domingo, 18 de fevereiro de 2024. O Conselho tinha sede no Rio de Janeiro e se apegava à Constituição, conforme lembra em depoimento o advogado Arquilau de Paula. Esse grupo de advogados pioneiros em Rondônia tinha apenas 23 profissionais do Direito, todos eles vítimas de diversas agruras antes de percorrer e vencer o longo caminho até conseguir instalar a Seccional.
Em 1974 o Território Federal de Rondônia era governado pelo coronel João Carlos Marques Henriques, que fora nomeado pela segunda vez para exercer o cargo entre 31 de outubro de 1972 e 23 de abril de 1974.
A OAB nasceria no último ano de Henriques, antes mesmo da criação do estado e do Tribunal de Justiça, que só viriam a ser instalados em 4 de janeiro de 1982.
Com Marques Henriques, naquele período dos anos 1970 o território teve instalado o Projeto Integrado de Colonização Ouro Preto pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que assentava inicialmente: 5.162 famílias, cada qual numa área de 100 hectares. Coordenado pelo engenheiro agrônomo Assis Canuto, o assentamento recebia famílias de diversas regiões brasileiras.
A Amazônia Ocidental Brasileira conhecia os bons efeitos da política do Incra, ao mesmo tempo em que deplorava o sofrimento de colonos atacados pela malária, ainda sem acesso ao crédito agrícola e ao armazenamento da produção agrícola.
Na sequência, agências bancárias ofereciam financiamentos. O arroz da região era exportado em picapes e caminhões para a Bolívia; colonos vendiam réstias de alho nas ruas; e o grupo Frey enviava a primeira safra cacaueira a uma indústria de Hanover, na Alemanha.
Abnegados servidores da extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), quase todos contaminados em alto grau pelo veneno de bombas costais, salvavam vítimas da malária. Injustiçados, até hoje os apelidados de “sucanzeiros” – famílias que morreram especialmente – não receberam indenização legítima pelo trabalho prestado.
A Seccional da OABRO reúne atualmente dez mil advogados inscritos, admirável contingente do qual fazem parte centenas de advogados e advogadas que também se doam a atividades voluntárias.
Sempre que faz aniversário os discursos pronunciados pelos presidentes da instituição, na Rua Paulo leal nº 1232, no Bairro Nossa Senhora das Graças, falam de uma advocacia “aguerrida, pioneira e visionária.”
O advogado Francisco Arquilau de Paula (1979 a 1981) lembra o início de tudo: eram apenas 12 advogados lutando para convencer o Conselho Federal a instalar a Seccional 👇
Arquilau lembra que durante o seu mandato, às 13h40 do dia 27 de agosto de 1980, a funcionária da OAB nacional Lydia Monteiro da Silva, então com 59 anos de vida e 44 de serviços prestados à OAB, morreu no atentado à bomba à sede da instituição. O fato ocorreu quando a Seccional de São Paulo e o presidente nacional da Ordem, na qualidade de delegado do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, insistiam na identificação de agentes e ex-agentes dos serviços de segurança suspeitos das agressões sofridas pelo jurista Dalmo Dallari – sequestrado em 2 de julho de 1980, em São Paulo.
Grupos extremistas de direita contrários à abertura política, explodia uma carta-bomba endereçada à avenida Marechal Câmara, 210, 6° andar, centro da cidade do Rio de Janeiro. Ali funcionava o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o destinatário da sinistra correspondência era seu então presidente, Eduardo Seabra Fagundes.
A chefe da Secretaria da OAB, dona Lydia Monteiro da Silva, ao voltar do almoço e abrir a carta, foi a vítima. A explosão fez tremer o andar do edifício, além de arrebentar com a mesa de dona Lydia, que veio a falecer no caminho para o Hospital Souza Aguiar.
O que restou da mesa está exposto hoje no Museu Histórico da OAB, que pertence ao Centro Cultural Evandro Lins e Silva da entidade e está situado no Setor de Autarquias Sul quadra 5, lote 2, bloco N, em Brasília.
A mesma OAB que viu profissionais defenderem grandes mineradoras, latifundiários e o próprio governo territorial, lida atualmente com a negativa de acesso à justiça por pessoas carentes de gratuidade judiciária e se manifesta contrária à exigência de documentos não previstos em lei, a exemplo do comprovante de residência.
O tema foi debatido durante o 4º Colégio de Presidentes das Subseções em dezembro de 2023. Tem havido indiscriminado número de pedidos de gratuidade da justiça; diligências de ofício (Rejanjud, Sniper etc.) com o intuito de negar o prosseguimento dos processos e essa situação tem acarretado problemas aos tribunais superiores.
O presidente da Subseção de Ji-Paraná, Jefferson Freitas lembrou que a gratuidade da justiça, assegurada no Código de Processo Civil, é um direito constitucional e fundamental para garantir o acesso à justiça às pessoas.
“A lei garante esse acesso aos que têm necessidade”, assinalou a presidente da Subseção de Presidente Médici, Sara Melocra. Segundo ela, existe legalmente presunção de veracidade quanto à alegação da parte em ser hipossuficiente. Decisões que contrariam ou condicionam o acesso a esse direito a qualquer documento demonstram um Judiciário inacessível e distante da sociedade”.
“A reclamação sobre a questão da gratuidade de justiça é unânime entre advogados”, afirmou o presidente da Subseção de Jaru, Rooger Taylor. “O que temos percebido é que os critérios utilizados não estão previstos em lei, e ainda há demora em pedidos de tutela de urgência, quando o magistrado deixa de verificar a urgência para analisar se concede a justiça gratuita ou não.” A Lei só determina a busca de provas quando nos autos constarem elementos indicando a inveracidade da alegação de gratuidade”, lembrou Taylor.
“Ao longo dessas cinco décadas a Ordem empreendeu esforços em modernizar processos, adotar tecnologias para democratizar o acesso aos serviços da instituição, além de dar atenção especial à igualdade de gênero; essas iniciativas ocorreram sem perder a essência do contato humano e do envolvimento com a sociedade”, assinala o presidente Márcio Nogueira.
“A OAB Rondônia busca incansavelmente meios para garantir que o direito de acesso à justiça seja mais do que uma promessa constitucional, e sim, uma realidade palpável para todos os cidadãos” – acrescentou.
Foi esta a primeira diretoria da Seccional da OABRO:
Presidente, Fouad Darwich Zacharias
Vice-presidente, José Mário Alves da Silva
1º secretário, Odacir Soares Rodrigues
2º secretário, Francisco Geraldo Balbi Filho
Tesoureiro, Pedro Origa Neto
Atualmente:
Márcio Nogueira (presidente), Vera Paixão (vice-presidente), Aline Silva (secretária-geral), Larissa Rodrigues (secretária-geral adjunta) e Marcos Zani (diretor-tesoureiro).
No Conselho Federal representam a Seccional os conselheiros: Elton José Assis, Alex Sarkis e Solange Aparecida da Silva (titulares), Julinda da Silva, Fernando da Silva Maia e Maria Eugenia Oliveira Silva (suplentes)
No País, o Instituto dos Advogados Brasileiros, fundado em 1843, deu início à representatividade da classe, 90 anos antes. Já sua primeira versão estadual foi o Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), 56 anos mais antigo que a OAB, fundado em 1874.
Durante décadas, todas as questões judiciais no extinto Território Federal de Rondônia foram decididas – ou arquivadas – pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Muito antes disso, em 1912 funcionava por aqui a Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, então pertencente ao Estado de Mato Grosso. A Comarca de Porto Velho foi instalada em 1914, ainda no Estado do Amazonas.
Mais tarde, o Poder Judiciário transferiu documentação e atividades de Santo Antônio do Rio Madeira para Guajará-Mirim que se estruturou a partir de 1929 e assim permaneceu até a criação do Território Federal pelo ex-presidente Getúlio Vargas em 1943. Funcionavam apenas as comarcas de Porto Velho e Guajará Mirim.
Cinquenta anos depois, em janeiro de 2024 a Seccional comemorou com alegria o Dia Estadual da Advocacia no Calendário Oficial do Estado, pela Lei n° 5.720 sancionada no terceiro dia do ano pelo governador em exercício Sérgio Gonçalves. A nova legislação estabelece que a celebração ocorrerá anualmente no dia 11 de agosto.
SAIBA MAIS: 1974 EM RONDÔNIA
● Conheça como funcionava o território federal quando foi criada a Seccional da OAB-RO: nos dois governos de Marques Henriques (o primeiro durou de 13 de fevereiro de 1969 a 31 de outubro de 1972. O partido Aliança Renovadora Nacional (Arena) foi vitorioso, elegendo dois terços dos vereadores. No entanto, perderia a vaga na Câmara dos Deputados para o MDB. O vitorioso fora o advogado goiano Jerônimo Garcia de Santana, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), organização clandestina de esquerda.
● Jerônimo defendeu a classe garimpeira durante os seus três mandatos na Câmara dos Deputados, e apoiava ainda organizações religiosas, inclusive centros espíritas.
● “Lançado depois de uma briga intestina do Diretório da Arena, que preteria o deputado Paulo Nunes Leal, o seringalista Emanuel Pontes Pinto perderia o pleito”, escreveu o vereador e deputado estadual Amizael Silva em seu livro No rastro dos pioneiros.
● “É natural que aquele episódio [fechamento de todos os garimpos manuais pela Portaria Ministerial nº 195/70 assinada pelo ex-ministro de Minas e Energia, Antônio Dias Leite] também enfraqueceu o governo, até porque o Sr. Emanuel tornara-se um defensor intransigente da Portaria”, explica.
● “Eles viviam no ventre da floresta, vitimados pela febre e explorados pelos marreteiros, atravessadores da cachaça, de balas 22, 32 e 38”, conta Amizael Silva.
● A proibição da lavra manual de cassiterita pelo presidente Emílio Garrastazu Médici foi um baque. Pouco tempo depois, a ordem resultou na invasão da cidade por garimpeiros famintos e doentes. Um grupo numeroso foi levado de Porto Velho em voos da Força Aérea Brasileira.
● A borracha ainda rendia algum dinheiro, mas a economia rondoniense passou a viver à sombra da exploração da cassiterita, quando foi sumariamente proibida a lavra manual. “O garimpo tinha um percentual de aproveitamento reduzido e inviabilizava a exploração complementar mecanizada, economicamente mais rentável”, sustentavam técnicos do Ministério das Minas e Energia.
● Sem direito a prosseguir a atividade à qual se habituaram desde a descoberta dos primeiros veios do minério de estanho na região onde surgiria o município de Machadinho d’Oeste, aproximadamente dez mil garimpeiros ocuparam as ruas de Porto Velho em 1970. Alguns haviam se aventurado na cata de diamantes no rio Machado.
● Fustigados pela iminente instalação da lavra mecanizada por grupos multinacionais, sem sindicato ou associação, compraram fiado no comércio ou torraram os últimos cruzeiros em prostíbulos.
● Houve um grande alvoroço em Porto Velho. “Eu tinha apenas 14 anos de idade em 1970, mas me lembro do que aconteceu: os garimpeiros levaram o caos para a cidade. Militares trazidos pelo então secretário de segurança, major paraquedista Ivo, conseguiram restabelecer a ordem”, contou a este repórter o filho do governador, jornalista João Carlos Marques Henriques, que mora em Brasília.
● Naquele período, grandes carregamentos de cassiterita procedentes do Estado do Amazonas atravessavam Rondônia para abastecer indústrias paulistas e fornos da Usina Siderúrgica de Volta Redonda (RJ).
● “Foi uma judiação, os garimpeiros não tinham para onde correr e vieram pressionar o governo do território”, contou o memorialista Anísio Gorayeb, já falecido. “Éramos vizinhos do governador Marques Henriques, e notamos quando ele pediu que o filho ficasse em casa para ter mais segurança”.
● Naquele ano a Sinopse Estatística do Brasil editada pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Geral relacionava na produção rondoniense produtos vegetais – borracha, castanha-do-para, madeiras, óleos vegetais, e poaia (ou ipecacuanha).
● A borracha alcançava a produção de 3.991 toneladas, totalizando 13,3 milhões de cruzeiros; a castanha-do-pará, 1.567 toneladas, ao preço total de 2,2 milhões, conforme dados do IBGE em 1969.
● E o minério de estanho (cassiterita) beneficiado, do qual atualmente Rondônia é o segundo produtor nacional, alcançava 3.399 toneladas, no valor de 20,1 milhões de cruzeiros, totalmente vendidas aos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
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Edição de vídeo: Raissa Dourado
Fotos: Arquivo OAB nacional, Museu da Memória Rondoniense e Arquivo OABRO