As promessas para os anos que se seguem é de que vivenciaremos eventos climáticos de intensidades e em frequências nunca antes vistas. Seja pelo excesso ou pela ausência de água, provavelmente somos a geração que começará a testemunhar os efeitos radicais da bagunça que o 1% da humanidade tem feito neste planeta. Sim, 1% da humanidade e não toda ela, já que a esmagadora maioria de nós, 99% afinal, não detém significativo poder de decisão acerca de como produzir e reproduzir a vida. Aliás, boa parte da humanidade se dedica mesmo a nadar contra a corrente dos extremos e a semear a abundância: nada de copo meio cheio ou meio vazio, mas uma grande cumbuca onde todos podem saciar a sede do corpo e do espírito sem desperdícios.
Muitas propostas de abundância provêm das mulheridades acreanas, seja na urbe, nos ramais, na floresta, no campo e às margens dos rios, há iniciativas demonstrando que outra relação com a terra e entre seus seres é possível – e necessária. Nos próximos textos desta coluna, com o apoio das raízes das equipes Samaúma Acadêmica e Samaúma Comunicação, me dedico a apresentar mais de perto algumas das atividades do Programa Curricular de Extensão “Samaúma Vivificante: o bem viver e a educação feminina de(s)colonial”, desde seus projetos abundantes de apostas em um “futuro ancestral”.
Nestas linhas, compartilhamos um pouco sobre as “Oficinas de Temperos: os Saberes culinários/medicinais das Mulheres da Floresta” que ocorreram em Acrelândia. Durante as oficinas, mulheres agricultoras e produtoras familiares do Projeto de Assentamento Orión compartilharam seus conhecimentos e práticas que integram a cultura, a saúde e a resistência de seu viver. Este projeto está alinhado ao Tronco da Samaúma nas seguintes linhas temáticas: Rituais de Comensalidade, Medicinas Naturais e Oralidades.
Dentre os objetivos de sua realização, esteve a promoção de discussões sobre soberania e segurança alimentar, construídas por essas mulheres dia após dia em seus territórios mesmo em contextos de desigualdade e exploração. A oficina proporcionou momentos de troca de conhecimentos alinhados às estratégias educacionais que valorizam os saberes de mulheres agricultoras. Elas prepararam temperos caseiros com toda sua abundância e diversidade de sabores e de benefícios ao organismo humano.
Durante a Roda de Conversa “Saberes e Sabores”, as participantes compartilharam receitas, conhecimentos e também suas trajetórias de vida. Imagine um grupo de mulheres se reunindo para trocar experiências e receitas que passam de geração em geração. Elas não estão apenas cozinhando, estão tecendo histórias, reverenciando suas ancestralidades e fortalecendo suas comunidades, ou seja, estão apostando em futuridades de abundância. Essa troca de vivências é crucial para evidenciar a importância dos saberes tradicionais que não se encontram nos manuais acadêmicos, mas nas vozes das mulheres que tocam suas vidas com práticas ancestrais.
Práticas que compartilhadas e multiplicadas constituem uma tecnologia de enfrentamento ao nutricídio – termo cunhado por Llaila Afrika a fim de conceituar a fragilização da saúde de corpos negros em razão do acesso a alimentos de baixo valor nutricional por terem passado por processos de industrialização que barateiam seu valor de troca, mas à custa de lhes retirar suas propriedades naturais, as quais o organismo humano necessita para se equilibrar. Ademais, podemos enxergar o nutricídio como uma política alimentar que promove a não regulamentação do uso de substâncias prejudiciais à saúde, seja por meio do cultivo, da fabricação ou do armazenamento do item. Quando apenas certos corpos têm acesso a gêneros alimentícios de qualidade e a população preta e periférica se vê privada de comer bem, estamos diante de uma sociedade que sonega direitos essenciais para se viver dignamente, afinal, alimento é vida e se faz crucial para vivenciar todos os outros direitos constitucionalmente assegurados.
Os encontros das oficinas não foram apenas um espaço de aprendizado culinário, mas também um ato de resistência. Ao preparar temperos caseiros com plantas cultivadas na agricultura familiar, essas mulheres enfrentam o nutricídio e promovem a soberania alimentar em suas comunidades. Elas mostram que é possível combater a exploração e garantir uma alimentação saudável e nutritiva com baixo custo e de amplo acesso.
Sônia Maria e Maria das Graças, profissionais da agricultura familiar de vasta experiência, foram as idealizadoras, proponentes e facilitadoras das oficinas, que também revelaram a importância de reconhecer e valorizar as trajetórias individuais e coletivas. As histórias de vida dessas mulheres são um testemunho da capacidade de reinvenção e de resistência frente às adversidades. Ao compartilhar suas experiências, elas constroem um futuro mais justo e saudável para todos.
Para Maria das Graças, “Foi muito importante levar nossos conhecimentos e saberes às mulheres companheiras do campo. A Oficina de Temperos foi uma bênção e fazer parte desse projeto foi muito gratificante”. Já Sônia Maria relembrou sua infância e a dura jornada até Acrelândia: “A viagem foi difícil. Nós viemos de ônibus e gastamos 15 dias do Paraná até aqui. A estrada era de barro, tivemos que parar várias vezes para tirar paus do caminho. Quando chegamos, era tudo mata. Tivemos que derrubar um pedaço da floresta para armar um barraco de lona. Foi assim que começamos nossa vida aqui”. Suas palavras ilustram a resiliência e a força das mulheres que desbravaram a Amazônia em busca de uma vida melhor e, nessa toada, contribuíram para feitura da diversidade biológica e cultural deste chão.
Nesse sentido, “Oficinas de Temperos: Os Saberes Culinários/Medicinais das Mulheres da Floresta” é um exemplo inspirador de como a união e a troca de saberes podem transformar realidades. Em Acrelândia, essas mulheres mostram que a floresta e seus ensinamentos são fundamentais para enfrentar as intempéries e semear o bem-viver.
Em um mundo onde tudo é transformado em mercadoria, desde a educação até a terra e as sementes, as mulheres da floresta resistem. Elas nos ensinam que o verdadeiro valor está no cuidado com a natureza e na sabedoria ancestral que nos conecta com ela. Que possamos ouvir e aprender com essas vozes, pois são elas que nos guiam rumo a um futuro mais harmonioso e respeitoso com todos os seres.
Escritor por Célia Santos, Leonísia Moura e Ligia Mikal.
Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos. Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.
leonisia.mouraf@gmail.com