Cúpula da Amazônia: fronteira Brasil, Bolívia e Peru sofre consequências ambientais e sociais com projetos de estradas para “integração regional”
Construída durante os governos do PT no plano nacional e acreano, a Rodovia Interoceânica deixa como legado o aumento dos crimes ambientais na tríplice fronteira, como a extração predatória de madeira e a intensificação do garimpo. Região também passou a ser ameaçada com projeto bolsonarista para a abertura de uma nova estrada, numa das regiões mais intactas da floresta na Panamazônia
Fabio Pontes
Dos Varadouros de Rio Branco
ENQUANTO o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenta assumir o protagonismo de preservação da Floresta Amazônica, reunindo as forças políticas dos governos da chamada Amazônia Internacional (ou Panamazônia), com a realização da Cúpula da Amazônia, em Belém, iniciativas solitárias e invisíveis desenvolvidas nas regiões fronteiriças, há décadas, parecem ter resultados bem mais práticos para as comunidades locais.
É o caso, por exemplo, do projeto MAP, uma iniciativa formada por pesquisadores e acadêmicos dos três estados (ou departamentos) que formam a tríplice fronteira Bolívia, Brasil e Peru (Bolpebra): Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia. Juntas, as três primeiras palavras de cada um deles formam a sigla MAP. Uma região de fronteira delimitada pelas bacias dos rios Acre, Purus e Juruá, além do Madre de Dios, que no Brasil passa a se chamar Madeira.
A partir dos estudos e monitoramentos realizados pelos cientistas, é possível mensurar os impactos dos eventos climáticos extremos, bastante comuns na região, com a emissão de alertas para as autoridades. Desde 2012, as grandes enchentes do rio Acre deixam cidades e povoados dos três países debaixo d’água. No período seco, as queimadas ameaçam a preservação da floresta, além da poluição do ar.
A fronteira MAP é impactada por projetos de infraestrutura, sobretudo a abertura de estradas, em nome da integração sul-americana. Uma delas, inclusive, é herança dos governos do PT no plano nacional e local: a Rodovia Interoceânica, cuja promessa era fazer do Acre o corredor das exportações brasileiras pelo oceano Pacífico, através do litoral peruano. Todavia, tal projeto não se concretizou por a estrutura da estrada, no meio da Cordilheira dos Andes, mostrar-se inviável para o transporte de grandes cargas.
Seu legado, infelizmente, tem sido a consolidação do narcotráfico na tríplice fronteira – com a consequente consolidação da violência -, bem como a prática de crimes ambientais. A região de Madre de Dios é a mais impactada neste último caso, com o aumento da extração predatória de madeira e do garimpo ilegal. Além das comunidades tradicionais, tais atividades causam impactos para as populações indígenas isoladas. A fronteira Brasil-Peru detém um dos maiores registros da presença de grupos indígenas isolados.
Nos últimos quatro anos, outra grave ameaça para a preservação da Amazônia foi o projeto de construção de uma nova rodovia entre os dois países, agora na região do Juruá-Ucayali. Patrocinada pela classe política bolsonarista do Acre, a estrada interligaria a cidade de Cruzeiro do Sul a Pucallpa. O traçado passaria dentro de uma das regiões mais bem preservadas da Floresta Amazônica (rica em biodiversidade), cujos desastres ambientais são inestimáveis.
Para entender um pouco mais da complexa realidade da fronteira panamazônica, Varadouro conversou com o antropólogo social boliviano Guillermo Rioja-Ballivián. Ele mora em Cobija, capital do departamento de Pando, e integra o Comitê Científico da Iniciativa Trinacional MAP. Também é professor da Universidade Amazônica de Pando.
“Decisões tomadas nos centros de poder determinaram que a região MAP se voltasse para economias predadoras do meio ambiente: a exploração descontrolada da mineração de ouro, a expansão da pecuária, as plantações de monoculturas e, recentemente, a prospecção de petróleo e gás têm gerado um rápido aumento do desmatamento e da poluição das águas”, define o pesquisador.
Leia a entrevista:
Varadouro: O presidente do Brasil iniciou um processo convocando todos os países da Panamazônia a aplicarem políticas cojuntas para a preservação da floresta. Qual a importância de iniciativas como essas?
Rioja-Ballivián: Qualquer iniciativa que vise a melhorar o uso sustentável da Floresta Amazônica é bem-vinda, porém há interesses políticos que nos levam a pensar que somente em um momento histórico de progressivas coincidências esse processo é possível. Podemos chamar isso de “narrativa de conservação da Amazônia”, pois, fora dos discursos, há interesses de Estados que competem com a lógica do mercado, e também há compromissos transnacionais que anulam, de fato, o que é dito em entrevistas e interpelações sociais. O “fenômeno garimpeiro” em rios amazônicos, por exemplo, e sua ausência ou lenta resolução atestam o que foi dito acima. Da mesma forma, a prospecção de petróleo e gás em áreas protegidas e territórios indígenas responde pelas incongruências daquele momento histórico. Esses crimes, considerados como crimes ambientais, gozam de impunidade em muitos de nossos países amazônicos. Teremos que aguardar os resultados da Cúpula da Amazônia para visualizar melhor as repercussões desta interessante iniciativa.
V: Historicamente, os países sul-americanos formados pela Amazônia parecem estar de costas quando o assunto é preservação ambiental. A Cúpula da Amazônia é um primeiro passo para mudar essa realidade?
Rioja-Ballivián: Não só os países da América do Sul, a crise é global e a urgência faz com que a preservação ambiental aconteça, principalmente, por meio do combate frontal aos fatores que impulsionam as mudanças climáticas. Vejamos alguns antecedentes imediatos: nos últimos dias o Parlamento Andino (Peru, Colômbia, Equador e Bolívia) aprovou um marco regulatório para processar os autores do crime de extração ilegal de madeira perpetrado nas florestas amazônicas. Entendamos esses fatos como exemplos interessantes de políticas públicas voltadas à mitigação e gestão de desastres ambientais, causados por atividades econômicas que destroem o meio ambiente. Na projeção para a Cúpula da Amazônia, o presidente do Brasil mostrou o teor que vai nortear as discussões de alto nível: garantiu, em entrevista, que os países desenvolvidos serão chamados a financiar a sustentabilidade das florestas tropicais do mundo. Entre as propostas que surgiram da Reunião Técnico Científica da Amazônia, realizada em Letícia, na Colômbia, no início de julho, os representantes dos governos amazônicos reafirmaram o compromisso de preservar a Floresta Amazônica, a sua biodiversidade e seus mananciais, bem como para garantir os direitos dos povos nativos. Esperamos que essas propostas e exemplos de decisões políticas corretas sejam o início de uma mudança necessária nas políticas públicas relacionadas à Amazônia.
V: Mais do que iniciativas de proteção da Floresta Amazônica, os governos estão muito mais preocupados com projetos de infraestrutura, como a abertura de rodovias em nome da integração econômica regional. Quais são os impactos dessas políticas para as regiões de fronteira?
Rioja-Ballivián: A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) conta com o apoio técnico e financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Corporação Andina de Fomento (CAF) e do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia Hidrográfica Plata (FONPLATA) e desenvolve dez Eixos de Integração e Desenvolvimento, incluindo os eixos Amazônia e Peru-Brasil-Bolívia. IRSA é o esforço definitivo para penetrar nos últimos lugares remotos e selvagens da América do Sul, por sua inserção global como uma região exportadora de matérias-primas, como biodiversidade, hidrocarbonetos, ouro, urânio, energia hidrelétrica, fronteira agrícola (agrocombustíveis) e todo o resto que é rentável para a acumulação de capital. Este gravíssimo tema não é abordado nas conversas de alto nível de nossos países como uma ameaça real à vida da Amazônia, pois, de fato, o desenvolvimento de infraestruturas é um negócio lucrativo, tanto para grandes interesses transnacionais quanto para interesses privados, regimes de plantão e seus funcionários corruptos.
“a expansão da pecuária, as plantações de monoculturas e, recentemente, a prospecção de petróleo e gás têm gerado um rápido aumento do desmatamento e da poluição das águas, causando enchentes e secas cada vez mais frequentes no quadro da crise climática.”
V: Aqui na fronteira Madre de Dios, Acre e Pando temos a Iniciativa MAP formada por cientistas e acadêmicos. Qual a importância de ter mais projetos como esses na Panamazônia?
Rioja-Ballivián: A iniciativa MAP é, antes de tudo, uma construção social, interessada em visualizar alternativas de desenvolvimento sustentável na região. Por isso, é possível afirmar que é uma iniciativa fundada por um grupo gerador de pessoas, que geram articulações de ativistas acadêmicos, ONGs, organizações urbanas, organizações camponesas e indígenas, universidades e algumas instituições públicas, para gerar propostas de sustentabilidade e desenvolvimento regional de “baixo para cima”. A Iniciativa MAP mostra com suas ações o que Gudynas chama de redefinição de fronteiras, onde os movimentos cidadãos buscam reapropriar-se da gestão territorial. Este processo é exemplar no que diz respeito às alianças transfronteiriças e deve servir de modelo para tentativas de integração regional em outras fronteiras da Panamazônia.
V: Quais são os maiores desafios para a fronteira MAP?
Rioja-Ballivián: O chamado Sudoeste Amazônico é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta. O coração desta região é compartilhado por Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia), no que foi chamado de Região Trinacional MAP. Nas últimas décadas, após a abertura de rodovias, principalmente a Interoceânica Sul, uma migração vertiginosa e decisões tomadas nos centros de poder determinaram que a região MAP se voltasse para economias predadoras do meio ambiente: a exploração descontrolada da mineração de ouro, a expansão da pecuária, as plantações de monoculturas e, recentemente, a prospecção de petróleo e gás têm gerado um rápido aumento do desmatamento e da poluição das águas, causando enchentes e secas cada vez mais frequentes no quadro da crise climática. Acredito que enfrentar estes problemas deve ser uma prioridade para os três governos nacionais e subnacionais.
V: Quais são os grandes desafios da Bolívia para a proteção da Amazônia? E o que o país tem para apresentar como bom exemplo?
Rioja-Ballivián: Como dados oficiais, o vice-ministro da Defesa Civil, Juan Carlos Calvimontes, informou que em 2021 os incêndios atingiram 4,2 milhões de hectares queimados, em 2020 5,2 milhões de hectares queimados e em 2019 mais de 5,3 milhões, considerada a maior queimada dos últimos anos. Este é, então, o maior desafio causado pela irresponsável dotação e legalização de invasões de terras florestais e as concomitantes queimadas, muitas das quais se transformam em incêndios florestais devido ao mau manejo do fogo. Talvez, o maior exemplo que a Bolívia possa dar em resposta a este grave problema seja a crescente mobilização cidadã, juvenil, como o Movimento Cidadão de Não Violência “Ríos de Pié”, cujo líder, Jhanisse Vaca Daza, afirma: “Estamos lutando por um país que tenha liberdade e democracia, sonhamos com uma Bolívia que tenha um governo transparente e sem corrupção, queremos um país onde todos os bolivianos tenham segurança, o meio ambiente e nossos recursos naturais sejam respeitados”.
V: O que a Bolívia pretende apresentar na Cúpula Amazônica de Belém?
Rioja-Ballivián: Desmascarada a política de duplo discurso dos dois últimos governos bolivianos, as sociedades civis amazônicas, representadas no Fórum Social Panamazônico (FOSPA Bolívia), pressionaram os chefes de Estado da Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e a Venezuela para que adotem decisões urgentes para evitar o ponto sem volta para a conservação da Amazônia; delimitar e titular as reivindicações territoriais dos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades tradicionais; suspender todas as pesquisas e autorizações para exploração de hidrocarbonetos; declarar emergência climática na Amazônia e exigir que os nove governos dos países amazônicos cumpram seus compromissos climáticos; interromper a expansão da fronteira agrícola; promover um plano de transição para salvar a Amazônia da mineração e da contaminação por mercúrio, entre outras questões relevantes. Por sua vez, o governo boliviano proporá um bombástico “Programa Florestal Regional Amazônico com Abordagem Conjunta de Mitigação e Adaptação Não Baseada em Mercados de Carbono”, que supostamente é uma estratégia para fortalecer os processos de regulação e gestão de áreas protegidas transfronteiriças e nacionais, evitando processos de degradação florestal, incêndios florestais e perda de cobertura florestal, enquanto, no mundo real, não ideologizado, a apropriação de terras públicas por migrantes invasores constituídos como “comunidades camponesas” se dá por meio de doações gratuitas de terras na Amazônia boliviana, para correligionários do atual governo. As terras recebidas não são destinadas à agricultura, pelo contrário, estão localizadas em florestas ou próximas a elas, consequentemente, de longe, foi nessas comunidades camponesas onde ocorreram as maiores queimadas dos últimos anos na Bolívia e, concomitantemente, os incêndios florestais..