CPI das ONGs busca rastro de dinheiro internacional para proteção da Resex Chico Mendes; por lá só há o rastro do fogo
Principal porta-voz da agenda anti-ambiental do bolsonarismo na Amazônia, o senador Márcio Bittar acusa ONGs de receberem dólares para manter moradores da Chico Mendes na “pobreza”. Para ele, a riqueza é obtida apenas ao se transformar a floresta em pasto. Dados do Inpe, Imazon e Ufac sobre a devastação sofrida pela UC revelam que, se de fato há grana internacional financiando ONGs, essas se mostram muito incompetentes, ao não protegerem nada
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
Enquanto a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes permanece pressionada pelo avanço de práticas criminosas que resultam no aumento do desmatamento e das queimadas, ocupando a posição número um entre as áreas protegidas mais ameaçadas da Amazônia Legal, o senador bolsonarista Márcio Bittar (União) continua com a sua ofensiva contra a unidade de conservação (UC). Após passar os últimos quatro anos liderando a articulação política para tentar aprovar o projeto de lei que desafeta áreas da UC (PL 6024), agora a sua estratégia é a de usar inócua CPI das ONGs, liderada por ele e outros membros da Bancada da Motosserra no Senado Federal.
Nesta quinta-feira (19), a CPI desembarca no Acre para uma “diligência” na Resex Chico Mendes. O objetivo seria denunciar – ou até desmascarar – o trabalho de organizações não-governamentais (ONGs) e da sociedade civil (Oscips), supostamente financiadas pelos governos estrangeiros, cuja atuação seria responsável por “travar” o progresso econômico dos moradores da reserva.
Por travamento, entenda-se bem, estão as escassas fiscalizações que ainda conseguem segurar (um pouco) o avanço da boiada e da grilagem sobre a unidade de proteção. Se de fato há ONGs na Resex Chico Mendes atuando com os dólares dos gringos, o trabalho delas, então, é de extrema incompetência ante os resultados de desmatamento e queimadas.
Famílias de seringueiros e seringueiras que ainda tentam sobreviver do extrativismo e denunciam a destruição da floresta são ameaçadas de morte. É o caso de dona Luzineide da Silva, da colocação Porangaba, seringal Albrace, em Xapuri. Como Varadouro mostrou em setembro, Luzineide teve parte de suas estradas de seringa desmatada e incendiada por um novo morador (grileiro) que adquiriu 10 hectares na propriedade vizinha. Por se posicionar contra a situação, ela foi ameaçada de morte.
Ontem Varadouro voltou a conversar com Luzineide. Por conta das ameaças, ela deixou de morar na colocação; teme pela vida dela e da dos filhos. “São 12 bocas para alimentar”, diz, referindo-se ao número de filhos e netos. Ao sair do seringal, ela perdeu sua principal fonte de renda, que é a produção de borracha e a coleta da castanha. Passou a sobreviver só do Bolsa Família. Mas o dinheiro é curto para sustentar tanta gente, e ainda pagar aluguel na rua.
“Eu sou extrativista. Eu vivo de cortar seringa e quebrar castanha. Nesta época era pra eu estar cortando [seringa]. Como a gente entrega [a borracha] só uma vez por mês, a gente tem que cortar todo dia. No fim das contas quem ficou fora de casa fui eu. Além de ter as terras invadidas, minha vida ameaçada, botaram em risco a minha família todinha, e eu que estou tipo me escondendo, como se eu fosse o criminoso”, desabafa Luzineide da Silva.
Não se sabe se a CPI das ONGs convidará extrativistas na mesma situação dela para prestar depoimento durante as sessões em Epitaciolândia ou em Rio Branco, na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). O certo é que os principais entusiastas da ofensiva de Márcio Bittar à Resex Chico Mendes são os mesmos que pleiteiam a aprovação do PL 6024, e os mesmos que iam ao gabinete do ex-ministro Ricardo Salles pedir o fim das fiscalizações do ICMBio – e de pronto foram atendidos.
O interesse pela desafetação da UC é óbvia: eles são os moradores da reserva que já devastaram toda a área de floresta das colocações, transformando-as em pasto, e respondem a incontáveis autos de infração emitidos pelo ICMBio. Alguns até já receberam ordem judicial para sair da reserva.
Um rastro de devastação
A mera apresentação do PL 6024 é apontada como o gatilho para o comércio ilegal de terras – a conhecida grilagem – dentro da Resex Chico Mendes, prática esta feita pelos próprios moradores, ao fracionarem as colocações. Os municípios do Alto Acre (Xapuri, Brasileia, Epitaciolândia e Assis Brasil) são os mais impactados.
De acordo com dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a Resex Chico Mendes foi a área protegida mais ameaçada e pressionada pelo desmatamento entre agosto de 2022 a julho de 2023. De acordo com o Imazon, este é o sexto ano consecutivo em que a UC acreana ocupa a primeira posição entre as áreas protegidas mais ameaçadas pela devastação na Amazônia Legal.
Conforme as análises do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (Labgama), da Universidade Federal do Acre (Ufac), em Cruzeiro do Sul, entre janeiro e setembro deste ano, a Resex Chico Mendes lidera o ranking das unidades de conservação do estado mais afetadas pelo fogo: são mais de 12 mil hectares de cicatrizes de queimadas.
Até o dia 17 de outubro, segundo os números do BD Queimadas, programa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Resex Chico Mendes ocupava a primeira posição entre as unidades de conservação federais com mais registro de focos de calor: 614. Quanto ao desmatamento, também conforme o Inpe, entre 2019 e 2022 a área devastada foi de 307 km2.
Reforço na Bancada da Motosserra
Entre 2019 e 2022 – pleno apogeu do bolsonarismo na política brasileira – a Bancada da Motosserra do Acre foi liderada pelo senador Márcio Bittar e a deputada federal Mara Rocha (MDB). Ambos eram os principais porta-vozes da agenda anti-ambiental do bolsonarismo aqui. Foi Mara Rocha quem apresentou, em dezembro de 2019, o PL 6024 na Câmara dos Deputados. Além de desafetar áreas da Resex Chico Mendes, a proposta rebaixa o Parque Nacional da Serra do Divisor para a categoria de APA (Área de Proteção Ambiental).
Com as eleições do ano passado, a bancada do Acre no Congresso Nacional ganhou uma nova configuração: ficou ainda mais reacionária e ofensiva às pautas de preservação da Amazônia e dos direitos dos povos indígenas. Ao disputar e sair derrotada para o cargo de governadora, Mara Rocha deixou espaço vazio na Bancada da Motosserra. Mas já há um sucessor para a vaga: o deputado Gerlen Diniz, do PP.
Nas últimas semanas, o parlamentar iniciou sua própria empreitada contra a preservação da Resex Chico Mendes – a desmatada e devastada unidade de conservação tão mirada pela classe política bolsonarista. No dia 10 de outubro, Diniz esteve reunido com o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Brasília, Mauro Pires, para tratar de “abuso na fiscalização” e as multas aplicadas pelos agentes.
Em sua conta no Facebook, o deputado registrou o encontro. Citou o caso de um morador identificado como Sr. Gurgel, que teria tido um curral destruído durante fiscalização na reserva. O problema é que, conforme informam fontes do ICMBio ao Varadouro, o senhor Weliton Miranda Gurgel não é morador tradicional da unidade de conservação. Está no grupo de pessoas que passaram a comprar lotes dentro da Resex – o que já configura uma ilegalidade.
O curral destruído, como o próprio Gurgel admite em vídeo, foi construído com madeira de castanheira – espécie protegida por lei. Segundo ele, a árvore estava derrubada havia “dois, três anos”, e ele apenas a cortou para construir o curral. Dentro da área invadida (ou melhor, comprada) por ele, os agentes do ICMBio detectaram desmatamento de 54 hectares, e quase 300 cabeças de gado. Segundo fontes, um dos trabalhadores que atuavam na derrubadas dos 54 hectares morreu ao ser atingido por uma árvore – tragédia comum de acontecer em desmatamentos ilegais.
Como se pode perceber, o Sr. Gurgel não é nenhum pobre coitado, um injustiçado e perseguido pelo ICMBio. Será que o nobre parlamentar não sabia disso? Qual o interesse de Gerlen Diniz em defender uma pessoa autuada pelo ICMBio por colocar abaixo 54 hectares de Floresta Amazônica numa área de proteção? O deputado PP bem poderia ter se informado melhor sobre a situação, antes de ir até a sede do ICMBio.
São estes e muitos outros exemplos usados pela classe política do Acre para acusar os órgãos ambientais de praticarem abusos e perseguições contra pobres trabalhadores rurais. Usando o termo da moda, essa é a narrativa clássica do bolsonarismo. São estes “pobres trabalhadores rurais” (já quase médio e grandes fazendeiros) que pleiteiam a aprovação de projetos como o PL 6024, para verem suas fazendas de gado de fora dos limites da Resex Chico Mendes – e se verem livres do ICMBio.
E desse jeito, com o apoio de uma ampla maioria de parlamentares eleitos pelo voto popular, que uma das mais importantes e estratégicas unidades de conservação do estado – uma das últimas áreas de Amazônia na Bacia do Rio Acre – vai ocupando, ano após ano, o triste topo das áreas protegidas mais ameaçadas da Floresta Amazônica.
Autoridades que deveriam atuar para combater a prática de crimes ambientais, parecem querer fomentá-la – seja por meio de projetos de lei, da intimidação ao trabalho de agentes ambientais, ou vivendo num mundo de teorias da conspiração que alimenta a famigerada CPI das ONGs.