Na década de 80, Chico saiu de Xapuri para participar de encontro do sindicato dos trabalhadores do seringal Humaitá, hoje cidade de Porto Walter
Leandro Altheman
Dos Varadouros de Cruzeiro do Sul
ANTES DE EXISTIR a BR-364, havia um Varadouro que ligava Cruzeiro do Sul a Rio Branco. Era apenas uma picada aberta por experientes mateiros, caboclos e indígenas. Nos primeiros anos do Acre, ainda território, esta era a única ligação terrestre entre a capital Rio Branco, e uma Cruzeiro do Sul recém destituída do título de capital do Departamento do Alto Juruá. Não dava para chamar aquilo de ‘ligação’. Rio Branco não era mais do que uma ‘capital virtual’. Por um século, o rio Juruá continuou sendo o principal caminho que ligava Cruzeiro do Sul à sua capital real, Manaus. Essa foi uma das razões para a diferenciação cultural e histórica entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul – ou entre o Vale do Acre e o Vale do Juruá -, muito embora os cruzeirenses nunca tenham se confundido como amazonenses.
Lá nos anos 70-80, período da redemocratização brasileira, o Varadouro foi o mais importante meio de comunicação do Acre. Num período crítico para o estado do Acre, quando a pecuária avançava sobre os antigos seringais – e sobre os direitos dos seringueiros, indígenas e a Floresta – foi o Varadouro quem primeiro deu voz a estes ‘invisíveis’, sem os quais o estado do Acre sequer existiria. Mérito de jornalistas como Elson Martins, que teve a coragem de fazer um jornalismo comprometido com quem mais precisava ser ouvido.
Pouca gente sabe, mas Chico Mendes esteve no Vale do Juruá para ajudar a organizar o movimento sindical e as lutas dos seringueiros e ribeirinhos da região. Na década de 80 houve um grande encontro promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, no então seringal Humaitá – hoje sede do município de Porto Walter.
Ainda menos conhecida foi a luta daqueles seringueiros juruaenses. Enquanto no Vale do Acre, se organizavam para permanecerem em suas terras, contra os interesses de pecuaristas vindo sobretudo do Sul e Sudeste do país, no Juruá essa luta era mais, digamos, ‘doméstica’. Houve um gradual abandono por parte dos seringalistas, que estavam obrigados pelo sistema semifeudal e senhorial que vigorava nos seringais, de prestar assistência aos seringueiros.
Com o declínio do preço da borracha, se tornou inviável, por exemplo, levar remédios e víveres para os locais mais ermos dos territórios gigantes que eram estes seringais arrendados no Juruá. Contudo, estes mesmos seringalistas não abriam mão de receber a chamada ‘renda’: um imposto cobrado ao seringueiro sobre a produção de borracha, que nos faz lembrar os barões da idade média.
Então, enquanto a luta dos seringueiros do Vale do Acre se deu contra os pecuaristas ‘paulistas’, ou a chamada bovinização como bem definiram as páginas do Varadouro, no Vale do Juruá foi contra os seringalistas – a maioria famílias que têm seus nomes associados às principais casas comerciais da cidade de Cruzeiro do Sul. Ou seja, uma briga mais ‘doméstica’, por assim dizer. Pela falta de um Varadouro juruaense, essa peculiaridade se tornou pouco conhecida, exceto pela memória de gigantes como Txai Antônio Macedo.
Outra peculiaridade é que o conceito de Aliança dos Povos da Floresta foi pensado no Vale do Acre, por pessoas como Chico Mendes, e não duvido, talvez pelos jornalistas ativistas do Varadouro – mas a efetivação da Aliança dos Povos da Floresta se deu mesmo, no Juruá. Por questões geográficas e históricas, havia maior proximidade entre os seringueiros descendentes de nordestinos e aqueles que até a década de 80 eram chamados localmente de ‘caboclos’; na verdade, indígenas legítimos que tiveram suas identidades sufocadas pelo processo colonial da borracha. Caboclos existem de fato, mas isso já é outra história.
Fato é que o antropólogo Terri Aquino, mais diretamente ligado aos povos indígenas em processo de reconhecimento étnico, e Antônio Macedo, mais diretamente ligado aos seringueiros, embora tenham os dois atuado em ambas as frentes, acabaram por dar realidade concreta ao que era somente um ideal: a Aliança dos Povos da Floresta. Não é à toa que Txai Terri e Txai Macedo são versos na canção ayahuasqueira de Thiago Moreno que celebra o Acre do Santo Daime de Mestre Irineu e do Uni dos Pajés de tantos povos e nações.
O daime/ayahuasca foi também esse Varadouro espiritual que encurtou as distâncias entre seringueiros praticantes de um cristianismo popular bastante sincrético e os indígenas com seus muitos tipos de xamanismos nativos. Mas isso também é outra história.
Com 17 anos de atuação no jornalismo ambiental e investigativo, o acreano Fábio Pontes traz essa versão ampliada e ressignificada do Varadouro, na sua edição do século 21, buscando também ampliar a atuação para o Vale do Juruá – região com maior área de cobertura florestal do Acre, com maior número de povos indígenas, com a maior participação da agricultura familiar na economia local – e não, por acaso, também a região com os piores indicativos sociais, agravados pelo isolamento e pelo êxodo.
Além das ameaças, digamos, ‘naturais’ – de desastres ambientais agravados pela desigualdade social, há ainda uma outra ameaça mais silenciosa, que é justamente o sufocamento das vozes locais pelo discurso-narrativa importado, e financiado, imposto sobretudo pela grande imprensa nacional e internacional – que adora impor seu ponto de vista, coroado pelo alto da ignorância de seus apartamentos.
Por isso tudo, a importância do Varadouro é hoje vital: uma publicação feita por jornalistas amazônicos, preocupados, sim, com as questões ambientais, mas também sentindo na pele as agruras de viver e fazer jornalismo na Amazônia.
O jornalismo alternativo e independente da Amazônia precisa de sua ajuda para sobreviver