Chico Mendes e Che Guevara por Xapuri

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Chico Mendes foi um revolucionário amazônico ousado e terno. Che Guevara foi exaltado por Jean-Paul-Sartre, filósofo e um dos maiores nomes da literatura mundial, como “o ser humano mais completo da nossa época”. Apesar da existência de contradições e impossibilidades, não é de todo incrível que os dois, Che e Chico, tenham se encontrado nas proximidades de Xapuri, no Acre, durante a guerrilha na Bolívia que levou o primeiro à morte. Chico disse que viu Che e falou com ele. É bom aceitar que alguma força tenha empurrado os dois para esse encontro simbólico.

O sociólogo e escritor Pedro Vicente Costa Sobrinho, que viveu um bom tempo no Acre como delegado do Sesc e professor da Universidade Federal do Acre, publicou em seu livro “Exercícios Circunstanciais”, Editora Coivara, de Natal, em 1977, interessante capítulo sobre Chico Mendes.

O livro contém uma entrevista com o líder sindical e ambientalista assassinado em 22 de dezembro de 1988, em que ele diz ter mantido um encontro ocasional com Che Guevara. A revelação não é comum nas centenas de entrevistas que Chico concedeu em vida. E pessoas que foram muito próximas dele se espantam quando ficam sabendo do encontro.

O que todo mundo sabe e não questiona é que Chico foi alfabetizado no meio da floresta por um comunista, Euclides Távora, que era tenente da Coluna Prestes do movimento de 1930, e que se refugiou num seringal de Xapuri, próximo de outro seringal onde nosso herói amazônico nasceu.

Com ele, Chico aprendeu, além do bê-á-bá, bons rudimentos das teorias revolucionárias marxistas. Tanto que, num dado momento dos anos oitenta, por alguns meses pensou e agiu no sentido de transformar seringueiros em grupos de guerrilheiros, para fazer frente ao desmatamento empreendido na região por fazendeiros recém-chegados do centro-sul do país.

Conversa no entroncamento

O encontro com Che Guevara, Chico relatou a Pedro Vicente assim:

“Nunca tinha visto seu retrato nos jornais, até porque não tinha nem revistas ou jornais no seringal. Tinha ouvido seu nome através da Rádio Central de Moscou. Não me recordo bem o ano, creio ter sido em meados de 65 ou 66, eu estava caminhando do seringal para a cidade (de Xapuri).

As pessoas costumavam fazer longas caminhadas pela BR-317, na estrada velha, em direção a Brasiléia ou a Xapuri. Passava muita gente. Eu estava cansado e parei no bar, no entroncamento, a 12 quilômetros de Xapuri. Naquele instante chegou um cidadão vindo das bandas de Rio Branco.

Demonstrava ser uma pessoa muito educada, encostou-se no bar e puxou conversa comigo e com outros que estavam próximos. Falou que tinha interesse em conhecer a selva amazônica, principalmente, os seringais e a selva boliviana. Indagou se eu era seringueiro, respondi que sim e há muitos anos.

Perguntou se eu não gostaria de acompanhá-lo até os seringais da Bolívia, pois não tinha costume de caminhar na selva. Precisava de uma pessoa que conhecesse os varadouros e o levasse na direção da fronteira. Dava para identificar que não era brasileiro, misturava um pouco de português com espanhol.

Ele conduzia uma mochila, falou que tinha joias que aproveitava a viagem para vendê-las e sobreviver durante o percurso. Não dispunha de muito dinheiro, mas perguntou quanto eu queria por dia para ir com ele até onde pudesse.

Não aceitei o convite. Alguém me disse que era perigoso, podia ser um bandido. Não acreditei, mas não podia ir. Alguns meses depois, em Xapuri, passei diante da delegacia e um retrato me chamou a atenção. Dizia que Che se encontrava em território boliviano para organizar o terror na região.

Fiquei abalado. Lembrei-me que havia visto e conversado com aquela pessoa no entroncamento. Nunca pude imaginar, pensei comigo mesmo, que aquela pessoa fosse um terrorista. Olhei várias vezes a fotografia. Não tive a curiosidade de pegar uma propaganda, um cartaz e guardar comigo. Tempos depois, ao ler o livro sobre a guerrilha do Che na Bolívia, reafirmei a convicção de que cruzei com ele. Posso afirmar com certeza, era o Che!”

O disfarce

Essa é uma história que exige a intervenção de um bom historiador e pesquisador para confirmá-la. Como sou apenas um cronista, vou me limitar a lembrar de algumas passagens que li na biografia de Che Guevara feita por Jon Lee Anderson e publicada em português pela editora Objetiva, em 1997. Trata-se de um calhamaço de 920 páginas que encerra com a trágica aventura do grande revolucionário na Bolívia: Che foi assassinado por militares bolivianos em 9 de outubro de 1967, aos 39 anos de idade, na região do Beni, portanto não muito distante de Xapuri.

No ano de 1966 em que Chico Mendes teria se encontrado com Che, o grande revolucionário das Américas Latinas iniciava suas operações de guerrilha na Bolívia, com velhos companheiros de Sierra Maestra e alguns novos guerrilheiros treinados em Cuba, somando um grupo de 29 militantes. Guevara queria transformar a Bolívia num “Vietnam das Américas”, e, a partir daí ,fazer a grande revolução transcontinental. A base escolhida para início das operações ficava no sul da Bolívia, no lado oposto à fronteira com o Acre. Entretanto, Che preferia desde o começo a região do Beni, do lado de cá, o que pode significar que ele já a conhecia e, neste caso, poderia ter entrado na região pelo Acre, e cruzado com Chico Mendes.

Contra essa possibilidade, porém, pesa o rigor da segurança que cercava Che Guevara por onde quer que ele fosse. Se bem que na época, a estrada de Xapuri e Brasiléia, caminho para a Bolívia via Cobija, no Departamento de Pando, não tinha as grandes fazendas que tem hoje. Era ainda um caminho por dentro da selva. E dentro da selva, Che se transformava num ousado comandante de guerrilha.

Outro ponto contraditório é que para iniciar sua aventura final na Bolívia, Che passou por radical operação em seu visual para não ser reconhecido: arrancou fio a fio parte de sua cabeleira, tornando-se meio careca, e colocou uma dentadura postiça para “engordar” o rosto. Além disso, cortou o restante do cabelo e passou a utilizar óculos na figura de um homem de negócios de origem uruguaia, com o passaporte de Adolfo Mena Gonzalez. Foi assim que ele desembarcou em La Paz.

Antes, ainda em Cuba, Fidel Castro organizou um encontro de despedida convidando todos os ministros e os velhos companheiros de Che na revolução. Apresentou a eles, como brincadeira, o “industrial uruguaio”, e ninguém reconheceu o velho amigo e comandante da revolução cubana. Com o mesmo disfarce, Che despediu-se da família, sendo apresentado aos filhos como “Tio Ramon”; não podia revelar-se por questões de segurança.

Uma das filhas, Aliusha, de quatro anos, abraçou Che (o pai), deu-lhe um beijo e depois comentou com a mãe:

“Mama, acho que esse velho está apaixonado por mim”. Che ouviu o comentário e chorou.



Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, foi o criador do Varadouro na década de 1970. Também foi correspondente de O Estado de São Paulo para a Amazônia. Teve passagens pelas imprensas do Acre, do Amapá e do Pará. Agora, volta a escrever nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.

Contato: almanacre@gmail.com
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