Para os amigos do rei, o Acre é sempre uma Pasárgada
Gladson Cameli é sujeito de perfil político quase liquefeito. Difícil – senão impossível – de enquadrar em preciso espectro. Cabe um pouco aqui, outro tanto acolá. E ainda um tanto e meio por aí, quase ao sabor do cliente. Andarilho, saiu das fileiras da Frente Popular do Acre (FPA), por onde transitou por algum tempo, e debandou-se de corpo e alma para o lado bolsonarista, onde se tem demorado até agora. Coisa desconcertante é que até para enquadrá-lo no campo do bolsonarismo é forçoso acrescentar algumas observações, como forjar gradações ou subespécies de bolsonarismo.
É certo que Gladson deu apoio a Bolsonaro ao longo de seu desastroso e criminoso governo, inclusive na última campanha. Não seguiu Bolsonaro em tudo, porém. Exemplo mais saliente disso foi o modo como tratou da pandemia por aqui, seguindo recomendações técnicas as mais salutares. Por seu turno, o bolsonarismo, bem sabemos, é marcado pelas fake news, pela práxis anti-ciência, pelo discurso de ódio, pela truculência etc. Olhando deste ângulo, uma conclusão se impõe: neste caso, apoio e proximidade não representam identidade – pelo menos, não em sentido pleno.
Que Gladson seja antipetista, hoje e já há algum tempo, não resta dúvida. Mas, prezando pela precisão, se quisermos tratá-lo como bolsonarista, penso que deveríamos, talvez, defini-lo como um bolsonarista soft. É que ele não é de proferir discursos estridentes, com ameaças, destemperos, palavrões, ofensas e outras coisas aberrantes, como é do feitio do líder da extrema-direita que por aqui grassa. Bolsonarismo puro, raiz, é conteúdo e forma. Entre Bolsonaro e Gladson, nem tudo coincide. Este sempre procura (a)parecer como simpático, generoso, divertido. Estão aí suas dancinhas no Tiktok que não nos deixam mentir. Talvez mesmo por isso, embora não seja bolsonarista raiz, em que pese o sofrível desempenho de seu governo, não perde apoio desse grupo nem dos antipetistas.
E assim foi… até poucos dias atrás… A covarde violência cometida contra as centenas de famílias que estão nos acampamentos Marielle Franco e Terra Prometida traz luz nova à cena e, sobretudo, à persona Gladson Cameli. Prisões, cacetadas, bombas de gás lacrimogênio contra idosos, mulheres e crianças. Fora de toda dúvida, esta é uma das páginas mais tristes e vergonhosas de nossa história. Por este prisma, já é até possível perceber, por baixo da pele de cordeiro simpático, o vulto do lobo bolsonarista. Neste episódio, o governador deu claras mostras de que tem pedigree e pertence, com justiça, à matilha dos lobos iracundos.
É consabido que, por sua história e natureza, nossa polícia já tem uma tendência – historicamente comprovada – de tratar cidadãos como se fossem bandidos, não distinguindo, em caso de manifestações e ocupações, entre uns e outros. No entanto, a violência que ela exerceu, no caso em tela, veio ordenada de cima. Embora alguns policiais estejam sempre babando de raiva, a polícia foi apenas executora da ordem. É possível mesmo dizer que, se fossem inquiridos, é provável que uns tantos daqueles policiais manifestassem contrariedade com a intervenção nos acampamentos.
Muitos de nós conhecemos alguém que foi buscar em outro estado a oportunidade que por aqui inexiste, resultando numa espécie de diáspora acreana. Para os que ficamos, a terra se mostra árida, sufocante, hostil.
Ora, sabendo que a ocupação ocorreu em grande parte por falta de uma política habitacional, por sua indiferença, Gladson deveria ter agido de modo diferente. Por óbvias razões, é a ele que devemos atribuir o feito – digno de um bolsonarista raiz – de tratar como questão policial aquilo que é, em essência, uma questão social. Lembro que, recentemente, Gladson deu um carro para o ganhador do rodeio na Expoacre. Na verdade, o prêmio era uma moto. Mas, a fim de aparentar aquela persona simpática e generosa que viraliza nas redes sociais, deu ao vencedor um carro no lugar da moto.
Forçoso é perguntar: Por que não tratou as pessoas dos acampamentos, sabidamente necessitadas, com as mesmas simpatias e generosidades? Por que não tirou nenhuma daquelas sofridas mulheres para dançar? Por que não sorrisos, por que não gracejos? Doravante, quando virmos Gladson dançando, sorridente, saberemos que ele dança sobre os entulhos a que foram reduzidas as casas, os sonhos e os direitos daquele povo já bastante sofrido. É da dor de gente como aquela que o governador se rir. Em face disso, mesmo com nuances na forma, Gladson vai assumindo paulatinamente perfil mais próximo ao de um bolsonarista raiz: indiferente, truculento, irresponsável, incompetente, enredado em denúncias de crimes vários etc.
Há alguns poucos anos, vivíamos numa euforia. O clima era tal que o Acre parecia o início do Brasil, e não o fim da linha. Muitos acorreram para cá, de mala e cuia. Havia boas expectativas – em parte irreais, propagandisticamente forjadas, claro; mas em parte também reais.
De repente, no curso de uns poucos anos, parece que a coisa se inverteu. O que em parte era um “paraíso” de promessas virou um todo de purgatório. Muitos de nós conhecemos alguém que foi buscar em outro estado a oportunidade que por aqui inexiste, resultando numa espécie de diáspora acreana. Para os que ficamos, a terra se mostra árida, sufocante, hostil. Abandono, descaso, crime por todo lado. Só ao custo de muita teimosia a esperança pode vicejar nessas paragens. N’alguma medida, a violência exercida nos acampamentos Marielle Franco e Terra Prometida foi também exercida sobre todos nós e representa, de modo insofismável, o que é hoje o Acre.
Não há espaço aqui para aqueles homens e mulheres, para sua cidadania, para seus sonhos. Por outro lado, há largo espaço para madeireiros e empreiteiros. Verdade seja dita: para os de baixo, o Acre virou um purgatório; enquanto isso, em contraste, para os familiares e amigos do rei, o Acre é sempre uma Pasárgada.
Israel Souza é Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
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