Bruno Araújo e Dom Phillips: vítimas de uma violência histórica e cotidiana da Amazônia

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Invasão e tomada de territórios por facções vindas do Sudeste agravam situação de insegurança vivida pelas populações da Amazônia há décadas; das periferias às cabeceiras dos rios, Estado parece ter perdido o controle


Por Fabio Pontes
Dos Varadouros de Rio Branco


NESTA SEMANA o Brasil e o mundo lembram o um ano do inominável crime cometido contra o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Assassinatos bárbaros que chocaram e revoltaram a todos nós. Ficamos (e ainda estamos) estarrecidos. A revelação da forma covarde e brutal de como as vidas deles foram tiradas nos deixou em estado de choque. Para mim, enquanto colega de profissão de Dom Phillips, o episódio continua muito marcante. Fez-me criar uma sensação de insegurança, medo e precaução no exercício do jornalismo. Afinal de contas, sou um jornalista amazônida, que vive na Amazônia, e estou a toda hora lidando com a cobertura de temas perigosos, numa região historicamente violenta.

Dom Phillips e Bruno Pereira foram vítimas desta violência histórica que nos cerca aqui na Amazônia há décadas. À época do crime, tentou-se restringir os assassinatos apenas ao contexto político do Brasil, já que vivíamos um pleno desgoverno com Jair Bolsonaro ocupando o Palácio do Planalto. Nossa situação, que já era de pavor com a guerra travada entre PCC e CV pelo controle das rotas do tráfico nas fronteiras amazônicas, ficou pior com um governo que empoderou o crime organizado na Amazônia, facilitando o acesso a armas e a garantia de impunidade aos criminosos ambientais.

O desmonte de todas as políticas públicas promovido por Bolsonaro – incluindo a ambiental e a indígena – levou as facções criminosas vindas do Sudeste a não ficar só em suas áreas tradicionais de atuação – o tráfico de drogas e de armas. Elas também penetraram em práticas delituosas ambientais típicas da região amazônica, incluindo a extração ilegal de madeira, a grilagem com a venda de lotes, além da atuação no garimpo – sendo este último o crime mais fomentado pelo governo passado, e cujas maiores vítimas são as populaçoes indígenas.

Além de impor o terror para as populações urbanas do Norte brasileiro, essas facções estão embrenhadas nos mais longínquos pontos de nossa zona rural. Das comunidades ribeirinhas às extrativistas, dos projetos de assentamento às aldeias indígenas. Sim, nem mesmo as populações indígenas da Amazônia estão livres da influência de tais organizações. Aqui no Acre já há algum tempo acompanho a situação desta consolidação territorial do crime organizado. A sensação é a de que o Estado perdeu o completo controle da situação.

O assassiato de Dom Phillips e Bruno Araújo é o retrato desta omissão histórica do Estado brasileiro na garantia de sua presença nas fronteiras mais remotas da Amazônia. Se essa omissão é perceptível nos nossos centros urbanos, o que dirá nas cabeceiras dos rios. Não se sabe se o mandante (ou os mandantes) da execução de Dom e Bruno estão associados ao CV ou PCC. O que posso afirmar é que a forma brutal como ela foi feita lembra os casos cotidianos de assassinatos cruéis na nossa região. Em geral, as vítimas destas organizações sofrem torturas de todos os tipos antes do último suspiro. Notícias como essas nos são semanalmente apresentadas.

Em 2017, o Acre ocupou a segunda posição entre os estados mais violentas. Naquele ano, CV e PCC estavam no auge da guerra pela conquista desta tríplice fronteira Bolpebra: Bolívia, Peru e Brasil. Foram quase 64 assassinatos pra cada grupo de 100 mil habitantes. Segundo o Anuário da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rio Branco foi a capital com a maior ocorrência de mortes violentas intencionais do país, com 83,7 assassinatos por 100 mil pessoas. Após uma certa consolidação de território pela facção criminosa, as mortes foram diminuindo, mas as sequelas de pânico e insegurança persistem. A violência está em nosso cotidiano. Os mais pobres, moradores dos bairros nas periferias, são as maiores vítimas.

O Anuário da Violência 2022 mostra que um terço das cidades mais violentas do país estão nos estados que formam a chamada Amazônia Legal. Na região, a taxa de violência letal é 38% superior à média nacional. Pelos números temos uma perspectiva do estado de caos e de terra sem lei que vivemos por aqui. E, infelizmente, as estatísticas oficiais não contabilizam as “mortes silenciosas” cometidas pelo tráfico nas áreas mais remotas da selva. Como diz a população local, jovens que viram “comida de onça” ou “prato de piranhas” nos rios. A Floresta Amazônica não pode ser considerada um paraíso.

Um ano após a morte de Dom Phillips e Bruno Araújo, além de representar o pouco avanço na responsabilização dos envolvidos e as possíveis omissões do Estado, mostra que nada mudou nas nossas fronteiras amazônicas em termos de retomada territorial por parte do Estado na região. Ao contrário. A cada dia, as facções consolidam sua hegemonia, deixando todos nós constantemente ameaçados pela violência que elas praticam. As populações rurais, por conta da invisibilidade em que etão mergulhadas, são as mais expostas à truculência do “estado paralelo”.

O governo Lula precisa voltar suas atenções para uma política de fronteira da Amazônia. O crime na nossa região não se resume apenas a estereótipos do grileiro, do garimpeiro, do madeireiro ilegal. O buraco é mais profundo. Os 30 milhões de brasileiros da Amazônia precisam de paz. Há décadas somos vítimas de uma violência que muitos não enxergam – incluindo a violência social, da exclusão, aquela que deixa milhares na miséria. Nossa posição geográfica com os maiores produtores de drogas do continente agrava o cenário.

Infelizmente, Dom e Bruno são apenas mais duas vítimas desta mazela amazônica, que é a violência. A ausência do Estado – passando pela omissão dolosa dos últimos quatro anos – cria o ambiente propício para os criminosos.

Justiça por Dom e Bruno!

Justiça por todos os invisíveis assassinados diariamente nestas regiões esquecidas e abandonadas do Brasil.



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