Boas lembranças de uma memória ruim

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O Mestre Elson Martins, no seu belo artigo “A margem e o centro do seringal”, narra um pequeno aspecto de sua grande amizade com Chico Mendes e lembra as semelhanças e diferenças de suas origens. Nascido também num seringal, Elson carregou a culpa de ser filho de seringalista, “patrão” no dizer antigo, morador da margem do rio, e ao mesmo tempo da inveja que sentia dos meninos filhos de seringueiros, que moravam no centro da mata, usavam sapatos de seringa e as roupas encaronchadas, sabiam caçar e outros misteres e mistérios da vida na floresta.

Por esses dias andei comentando a proposta de um deputado, que seria cômica se não fosse um escárnio, de declarar a cavalgada de abertura da Feira Agropecuária um patrimônio cultural do Acre. Imagine o valor de tal patrimônio: um bando de vaqueiros de boutique (cowboys e cowgirls) em carros animados por música brega e cerveja, acompanhando os vaqueiros de rodeio que montam seus cavalos no trajeto da margem do rio até o Parque de Exposições. Os animais, que não tem culpa dessa presepada, cobrem com suas fezes o asfalto da Via Chico Mendes e a memória de um povo que foi massacrado e expulso de suas terras pela pecuária.

Ao ler o artigo do Elson, lembrei do profeta iracundo Luís Carvalho, também um dos fundadores do Varadouro, que dizia: “essa briga entre seringueiros e seringalistas vai acabar quando a maioria dos deputados da Assembléia Legislativa tiver sobrenome alemão ou italiano, aí a briga vai ser dos nativos contra os invasores”. Luís viveu até ver a briga ser vencida pelos que hoje já não são mais invasores, são donos da terra e querem ser donos da História.

Há invasões e conflitos mais antigos em nossa alma, opondo os migrantes nordestinos aos povos indígenas. Temos a ferida ainda não curada da escravização dos povos africanos e, se puxarmos um pouquinho mais pela memória, notaremos nas feições e costumes a herança de guerras medievais entre europeus e árabes, que também tem suas divisões históricas entre nós muito bem representadas na luta palestina de outro fundador do Varadouro, o saudoso Abrahim Farhat.

Sem termos superado os longos, fundos e ancestrais conflitos da civilização que carregamos junto com a cruz da condição humana, vamos empunhando nossas armas, das mais toscas às mais sofisticadas, na guerra permanente de todos contra todos em que transformamos o mundo. Arriscamo-nos a vencer a mais antiga de todas as guerras, contra a Natureza, e assim acabarmos de vez com tudo. Não haverá mais guerras, sequer haverá diferença entre centro e margem, quando não houver mais floresta.

Até lá, entretanto, a luta continua. Reservo-me o direito de não incluir cocô de cavalo no meu patrimônio cultural, mesmo que uma lei assim o faça. E não me considero representado no Congresso pelos senadores que votaram a favor do famigerado “marco temporal” com o qual pretendem impedir a demarcação das terras indígenas, mesmo que tenham sido eleitos com milhares de votos infelizes de um povo que esqueceu de si mesmo.



Toinho Alves, jornalista e escritor acreano. Fez parte do jornal Varadouro na década de 1980

caissame@gmail.com





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