BIODIVERSIDADE AMEAÇADA

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Com alterações no clima, quelônios nascem com atraso nas praias do Guaporé

Quelônios durante processo reprodutivo nas praias do rio Guaporé, em Costa Marques (Foto: Zeca Lula)



Montezuma Cruz
dos varadouros de Porto Velho


Um mês depois do habitual prazo para a eclosão, aconteceu finalmente, na madrugada de quinta-feira, 28 de setembro, o nascimento de tartaruguinhas nas praias do rio Guaporé, no município de Costa Marques, a 712 quilômetros de Porto Velho, na fronteira brasileira com a Bolívia. Considerada um dos mais lindos espetáculos da biodiversidade no mundo, a eclosão atrasou, pois não choveu o suficiente no mês de agosto.

O ambientalista Zeca Lula, dirigente da organização Ecovale, correu para a praia e, ao amanhecer do dia, fez fotos. Na semana passada, seu grito quase chegava a Porto Velho alertando para a possibilidade da perda dos filhotes.

Zeca Lula organiza um calendário anual que não apenas estuda os quelônios, mas sugere mutirões aos órgãos ambientais com objetivo de assegurar o êxito na procriação atualmente ameaçada por predadores, por traficantes de animais e por alterações climáticas na fronteira brasileira com a Bolívia.

No histórico dos quelônios brasileiros, essa procriação é um sacrifício, porque a fêmea demora 25 anos para desovar. Na eclosão, os filhotes que sobrevivem aos predadores caminham sozinhos até as águas do rio. É o que se vê desde quinta-feira.

Durante três décadas, Zeca Lula supervisiona a desova de tracajás, tartarugas e o matamatá, desta vez, com grande preocupação: “Normalmente, os tracajás começam a desova no final do mês de agosto; em seguida é a vez das tartarugas, e matamatá (*) e toda a desova se estende durante o mês de setembro, mas até quarta-feira a desova estava atrasada.”

Segundo estimativa da Ecovale, nas 14 praias sob o seu controle e vistoria, a cada ano aproximadamente 40 mil espécies deixam três milhões de ovos nas covas.

“Não sei a razão desse fenômeno, e se eles (quelônios) saírem fora de época, pode não dar tempo para a eclosão, porque muitos filhotes morreriam nas covas”, disse Zeca Lula.

O regime de chuvas interfere na sazonalidade reprodutiva dos quelônios, porque eles dependem de uma dinâmica no volume de águas e da abertura das praias, explica ao Varadouro o biólogo Tiago Lucena da Silva, coordenador do Laboratório de Biologia Animal da Universidade Federal do Acre (Ufac) no Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul.

“Isso termina influenciando negativamente nesse aspecto, mas a forma de uso da praia também conta, já que os quelônios dependem da temperatura para a formação do sexo masculino ou feminino”, assinala.

Segundo o biólogo Tiago Lucena, o perfil de mudança climática influencia não apenas no período de desova como na razão sexual: quantos machos e quantas fêmeas nascem.



“A longo prazo, isso pode ser um grande problema para as populações. Além do animal e da importância da conservação, do papel ecológico que eles desempenham, eles representam um aspecto importante para a segurança alimentar de algumas comunidades, que dependem desses recursos como forma de subsistência”, diz Tiago, com base na experiência acreana.

A desova ocorre sob a água no período em que os lagos sazonais começam a baixar rapidamente. O desenvolvimento do embrião se inicia quando os ovos são expostos ao ar durante o período de seca.

Os filhotes emergem dos ninhos no início do período das chuvas na estação úmida seguinte. Uma membrana impermeável reduz a absorção de água pelo ovo permitindo que eles fiquem mais de três meses emersos. Na maioria das espécies, entretanto, o afogamento dos ninhos traz consequências deletérias aos embriões.

O rio Guaporé tem mais de 50 quilômetros de praias. O ex-secretário estadual de Meio Ambiente de Rondônia Marcílio Lopes sugeriu, em 2020, a ampliação da Área de Preservação Permanente (APP) para Área de Preservação Integral, o que possibilitaria a inclusão das praias dentro da extensão do Parque Estadual Serra dos Reis, que tem o apoio do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa).

Enquanto o pedido de Lopes ficou nas gavetas da burocracia ambiental brasileira, técnicos ambientalistas desembarcam mais uma vez em Costa Marques. Lá existe, desde o século passado, o tráfico de animais, em prejuízo à conservação da espécie.

Ladrões arrastam das praias tartarugas acima de cem quilos. Ao mesmo tempo, aves predadoras seguem “normalmente” atacando quelônios e nunca foram controladas pela reduzida fiscalização estadual. Mesmo com a barriga carregada de ovos, tartaruga e tracajá fêmeas são alvo de traficantes. Cada tartaruga põe aproximadamente cem ovos, porém, apenas 10% dos ovos sobrevivem ao ataque de gaivotas, urubus, jacarés, peixes, além de outros pássaros e aves.

Quando não são atacados, os filhotes também irão habitar afluentes do rio Guaporé numa extensão de 1.400 quilômetros. As comunidades Santo Antônio e Santa Fé são praticamente o paraíso da rica biodiversidade que inclui os quelônios.

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