Ausência do Incra impulsiona confrontos em busca por terras arrecadadas no sul do Amazonas

Na terça, 6, um grupo de 29 trabalhadores rurais foi expulso à bala quando tentava ocupar área recentemente arrecadada pelo Incra, em Lábrea. Essa não é a primeira vez que eles se veem sob a mira de escopetas e espingardas. Em 2024, alguns deles foram atingidos. Região já é marcada por intensos conflitos fundiários, com a atuação de pistoleiros contratados por fazendeiros. A ausência do Incra e do Estado como um todo agrava o cenário.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
A arrecadação de quase 30 mil hectares de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na região da Fazenda Palotina e adjacências, no município amazonense de Lábrea, começa a provocar uma verdadeira corrida por demarcação de lotes e, consequentemente, a intensificação da violência no campo na tríplice divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia, a conhecida Amacro. A área, que já é marcada por graves denúncias de violações de direitos humanos na disputa pela terra, pode se consolidar, ainda mais, como um “faroeste amazônico”.
Foi o que aconteceu na manhã da última terça-feira, 6, quando um grupo de 29 trabalhadores rurais foi expulso à bala de uma das áreas arrecadadas quando tentava construir um barracão para o início da ocupação. Segundo eles, em áudios e vídeos enviados ao Varadouro, o ataque aconteceu no limite das fazendas Fusão e Nova Holanda, no município de Lábrea, no Amazonas. A região está localizada bem na divisa com o Acre, distante pouco mais de 100 km da capital Rio Branco, pela BR-317.
Esta não é a primeira vez que esses mesmos camponeses se veem obrigados a abandonar os acampamentos sob a mira de escopetas e espingardas. Moradores da Vila Caquetá, no município de Porto Acre, os trabalhadores rurais tentam, desde o início do ano passado, ocupar áreas que eles afirmam ser de posse da União na divisa entre os dois estados.
As primeiras ocupações ocorreram no limite da Fazenda Fusão, localizada entre Senador Guiomard e Lábrea. Em todas as tentativas, os camponeses foram expulsos por pistoleiros que, segundo eles, estariam a serviço do fazendeiro. Houve até o caso de um deles ter sido vítima de tortura pelos jagunços. Além dos disparos de armas de fogo, eles têm seus barracos de lona queimados.
A divisa entre os dois estados, no trecho da BR-317 que liga Rio Branco a Boca do Acre, é conhecida pela atuação impune da pistolagem a serviço dos grandes latifundiários. Os casos mais notórios de violência acontecem contra as mais de 200 famílias do acampamento Marielle Franco, onde há graves denúncias de ameaças, disparo de armas de fogo e tortura.
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Há também denúncias da atuação de policiais militares do Acre e do Amazonas que atuariam como “seguranças particulares” dos grandes latifundiários na tríplice divisa amazônica.
Distante mais de mil quilômetros da capital Manaus, e com a completa omissão do governo estadual e órgãos federais, o sul do Amazonas se tornou, ao longo dos últimos anos, numa região marcada por graves crimes ambientais (desmatamento, queimadas e grilagem), além da disputa por terras onde a força econômica dos grandes latifundiários empurra os trabalhadores rurais para as periferias, e o Incra é omisso em políticas de reforma agrária para assentar quem realmente precisa.
Desde o fim de 2023, Varadouro acompanha in loco todas as denúncias de violações de direitos humanos contra os trabalhadores sem-terra em disputa na tríplice divisa Amacro.

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Rajadas de tiro
Na esperança de serem assentados pelo Incra nas terras recém-arrecadadas, um grupo de quase 30 trabalhadores rurais da Vila Caquetá foi rumo à região desapropriada para montar os barracos. A tentativa durou pouco tempo. Eles mal tinham chegado ao local para montar acampamento, quando começaram os disparos. “Foi tiro de rajada”, diz um dos ocupantes, que pediu anonimato. Sem saber de onde saiam os disparos, muitos correram para diferentes direções, enquanto outros deitaram no chão. Em vídeos enviados ao Varadouro, é possível ouvir o barulho dos tiros.
Por sorte, nenhum deles foi atingido, ao contrário do ocorrido um ano atrás, quando alguns foram alvejados de raspão por chumbos de espingarda calibre 12. Para evitar mortes, eles foram embora. Ao chegar ao ponto onde tinham deixado o caminhão, ele não mais estava lá.
Segundo os camponeses, o veículo foi guinchado pela Polícia Militar do Acre, mesmo a área de conflito estando localizada dentro do território do Amazonas. Sem o caminhão, eles tiveram que caminhar mais de 20 km pela BR -317 até a Vila Caquetá, local de moradia provisória deles. Apenas do local do ataque até as margens da rodovia foram mais 14 km a pé. Ao todo, tiveram que andar 34 km. Alguns deles só chegaram à vila na manhã de quarta, 7.
Sem trabalho nas propriedades rurais e sem um pedaço de terra para viver da agricultura, eles vivem de trabalhos provisórios (bicos) na comunidade rural que pertence ao município de Porto Acre.
A reportagem procurou a assessoria da PM Acre para comentar a situação, mas até o momento não obteve retorno.

Estado omisso
Apesar de já estarem oficialmente arrecadados pelo Incra, com a publicação da medida junto ao Diário Oficial da União, os quase 30 mil hectares ainda são alvo de disputa. Os fazendeiros, obviamente, não querem perder as terras que afirmam ser de suas propriedades. Neste caso, a arrecadação abrangeu parte das áreas das fazendas Palotina e Fusão.
Por outro lado, para os trabalhadores rurais que há anos lutam por um pedaço de chão, a notícia soou como uma vitória. Todavia, até o momento, o Incra Amazonas ainda não iniciou os trabalhos oficiais para a criação dos assentamentos. Enquanto isso, os agricultores tentam ocupar a terra para garantir o seu lote – mas encontram a resistência dos fazendeiros e seus pistoleiros.
A arrecadação da área pela autarquia federal cria expectativa não só para quem já está na região, mas também de outras. A busca por terras pelos pequenos agricultores é uma constante, já que a tríplice divisa Amacro é formada por grandes latifúndios ocupados pela pecuária e a soja. As áreas de floresta restantes ou são unidades de conservação ou terras indígenas – e mesmo assim também sob pressões de invasões.
Portanto, há uma forte demanda reprimida por assentamentos do Incra na divisa amazônica. Por isso, há uma perspectiva de uma corrida pela terra rumo a Lábrea com a recente arrecadação. São famílias que podem sair de Porto Acre, Rio Branco, Senador Guiomard, Acrelândia, Boca do Acre e de Porto Velho. A presença de estradas e ramais facilita este deslocamento.
Porém, a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Acre, Darlene Braga, diz não acreditar nessa corrida rumo ao sul do Amazonas. Para ela, a ocupação dessas áreas já está consolidada pelas famílias do Marielle Franco, da Fazenda Palotina, e dos trabalhadores do Caquetá, na Fusão.
Ela lembra, por exemplo, que nem toda a área ocupada pelas 200 famílias do acampamento Marielle Franco foi arrecadada. Uma parte permaneceu na fazenda. Ou seja, elas precisarão ser reassentadas. Caberá ao Incra e aos demais órgãos de Estado, destaca Darlene Braga, garantir sua presença na região para realizar assentamentos e evitar confrontos.

“Quando se arrecada uma terra, e há uma expectativa de uma corrida, eu acho que se o Incra se fizer presente, faz a reforma agrária, respeita as pessoas que estão lá, pode amenizar os impactos dos conflitos”, afirma a coordenadora da CPT.
“O Incra só faz a arrecadação quando é pressionado, e as pessoas já estão lá. Quando o Incra se faz presente, estabelece e leva as políticas, eu não vejo a possibilidade de uma corrida pela terra. O problema é que o Incra arrecada, e deixa ao deus-dará”, completa.
Ao que tudo indica, diante do histórico de omissões do Estado no sul do Amazonas, caberá às autoridades de Manaus e de Brasília assegurarem uma reforma agrária pacífica na região, onde o que possa prevalecer não sejam mais os disparos das armas dos jagunços contratados por fazendeiros, mas o que se estabelece o arcabouço legal do País.