ÀS MARGENS DA PROTEÇÃO

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Crise do clima e degradação do igarapé São Francisco deixam bairros de Rio Branco mais expostos a enchentes

A pé ou em canoas, moradores da Vila Ivonete tentam retirar bens de casas e comércios; bairro é um dos mais afetados por transbordos do igarapé (Foto: Acervo Varadouro/2021)



No dia 23 de março de 2023, pelo menos sete igarapés transbordaram em Rio Branco, atingindo milhares de famílias. Entre eles, a situação mais preocupante é a do igarapé São Francisco, um dos principais afluentes do rio Acre e responsável por 70% da drenagem natural do município. Com o aumento das chuvas, moradores das áreas atingidas se preocupam que a situação se repita em 2024.

Veriana Ribeiro
dos varadouros de Rio Branco


Rio Branco enfrenta um desafio constante: os transbordamentos de rios e igarapés nos períodos de chuva, ou o inverno amazônico, resultando em enchentes devastadoras que atingem milhares de famílias. No dia 23 de março de 2023, a cidade testemunhou mais um capítulo dramático de seu contínuo embate com os eventos climáticos extremos – sejam eles as enchentes ou as secas. Devido uma chuva intensa que atingiu o município, o nível do rio Acre passou de 9,76 metros pela manhã para 14,65 metros na parte da noite, uma velocidade nunca vista pelos registros oficiais, e bem acima do esperado. Foram mais de 180 mm de chuva em 24 horas. Ao subir, ele represou cerca de sete igarapés, que também transbordaram: Almoço, Judia, São Francisco, Dias Martins, Batista, Fundo e Liberdade.

Entre os igarapés, sobressai-se a situação do São Francisco, um dos principais afluentes do rio Acre, com 20 km de extensão e responsável por 70% da drenagem natural do município. A bacia hidrográfica do Igarapé São Francisco abrange uma área de 45.440 hectares, entre a BR-364 e a AC-90 (Transacreana), com 7% de área urbana da capital e 93% de zona rural de Rio Branco e Bujari. A bacia inclui unidades de conservação estaduais, como a Área de Proteção Ambiental (APA) do Igarapé São Francisco, e parte da APA Lago do Amapá, além da Área de Proteção Ambiental Irineu Serra, sendo esta última de gestão municipal.

Estas UCs foram criadas para proteger a vegetação nas margens do córrego que auxiliam na absorção de águas pluviais e na prevenção de erosão. No entanto, o desmatamento na bacia aumentou mais de 82% entre 1985 e 2021, segundo dados apresentados na Carta Consulta do Governo do Acre e o Tribunal de Contas do Estado (TCE-AC), em abril de 2023.

As cheias dos igarapés, em especial o São Francisco, têm se tornado cada vez mais frequentes e intensas, trazendo desafios significativos para os moradores que vivem na região. Esses eventos estão diretamente relacionados ao crescimento urbano desordenado da cidade, que tem contribuído para a impermeabilização do solo e a redução das áreas verdes, além da crise climática, responsável por tornar o Acre uma das regiões mais sensíveis da Amazônia para eventos climáticos extremos, como a chuva de quase um ano atrás.

Para entender a atual situação do igarapé São Francisco, Varadouro conversou com moradores, especialistas e com a Secretaria Municipal da Defesa Civil de Rio Branco.

Quando a água invade

Desde 2004 moradores de bairros localizados ao longo do leito do igarapé convivem com o medo de ter suas casas invadidas pela água. Eventos climáticos extremos elevam preocupações (Foto: Varadouro/2021)

A técnica em segurança do trabalho Chrislany Gross Chagas, 38 anos, mora sua vida inteira próxima ao Igarapé São Francisco, no bairro Vila Ivonete, um dos mais atingidos pelos transbordos.

Ela relembra uma infância despreocupada, brincando nas margens do córrego. “Foi uma infância muito boa na rua em que moro, tenho lembranças boas. O Igarapé era uma coisa saudável, dava para a gente brincar, tomar banho. Por mais que tivesse o esgoto caindo dentro, ainda dava para a gente fazer alguma coisa. Hoje não dá mais, né?”, lembra com saudosismo.

Ela foi uma das 6.400 pessoas atingidas diretamente pela alagação do Igarapé São Francisco, em março de 2023, quando choveu 187,7 milímetros de água em um período de 12 horas. Com isso, as águas transbordaram com rapidez, o que impossibilitou que muitas famílias conseguissem retirar seus móveis a tempo. “Eu perdi tudo, praticamente. Consegui tirar mesmo a geladeira, o fogão, as roupas e os bichos”, lembra Chrislany, que teve a casa invadida pelas águas.

Ao longo dos anos, a relação com o igarapé passou das brincadeiras infantis para o constante medo das enchentes, cada vez mais comuns. Se no passado ter o velho Chico como vizinho era motivo de alegria, hoje é de muita preocupação para os moradores dos bairros ao longo de seu curso.

A primeira cheia ocorreu em 1997, depois disso houve transbordamento nos anos de 2004, 2021 e 2023. A cirurgiã-dentista Marília Mendes, 31 anos, mora há 23 anos próxima ao igarapé – também na Vila Ivonete – e já presenciou três cheias. “Na mais recente, em março de 2023, perdi exatamente tudo dentro de casa. A água chegou próximo ao telhado”, recorda. Com o aumento das chuvas, o medo é que o desastre se repita este ano. “Meu maior medo é que a proporção seja a mesma do ano passado.”

Entre os moradores, persiste a insatisfação com a falta de ações efetivas do poder público. “Eu gostaria que a situação fosse resolvida com a criação de uma barragem para que, nos momentos de cheia, fosse aberta para escoar água em um terreno inabitado. E que as ações de limpeza do igarapé e esgoto fossem periódicas, não somente após as enchentes”, reclama Mendes.

A cidade que cresceu em volta do igarapé

Segundo dados da prefeitura, mais de 70 bairros foram erguidos ao longo das últimas quatro décadas na bacia do igarapé São Francisco (Foto: Varadouro/2021)

O professor e pesquisador da Universidade Federal do Acre (Ufac) Alexandre Hid tem uma relação de longa data com o igarapé. Além de pesquisar a região, ele mora há mais de 30 anos em uma casa próxima ao manancial. A família sabe muito bem como é lidar com os transbordos.

“Tem uma área preservada de floresta muito bonita, com o curso de água. É espetacular, [o igarapé] é caudaloso e tem um diferencial”, comenta. Porém, como teve a casa invadida nas últimas enchentes, ele se preocupa com as futuras cheias. “Hoje, todos os moradores próximos ao Igarapé São Francisco vivem apreensivos. Uns apreciam o curso d’água, outros temem. Na situação atual de crise climática, existe uma imprevisibilidade do que pode acontecer”, afirma Hid.

Segundo ele, o igarapé São Francisco enfrenta uma série de desafios ambientais que ameaçam sua saúde e sustentabilidade. Um dos principais problemas é a poluição, causada principalmente pelo despejo de esgotos sem tratamento e de resíduos sólidos nas águas do igarapé. Essa poluição compromete a qualidade da água e afeta a vida aquática, prejudicando a fauna e a flora que dependem do ecossistema do igarapé. Além disso, a urbanização desordenada às margens do manancial contribui para acelerar o processo de degradação, com a impermeabilização do solo, o desmatamento e a compactação do terreno, o que aumenta o escoamento superficial de águas pluviais contaminadas para o igarapé. Ao todo, são mais de 70 bairros construídos no entorno da bacia, sendo que 21 estão às margens do córrego.

“Hoje nós temos cerca de 50% de toda a cidade de Rio Branco na bacia do São Francisco, o que torna essa bacia extremamente importante em termos de drenagem natural. A cidade cresceu e quando a cidade cresce, ela vai impermeabilizar por onde passar. A água que antes caía ali, que infiltrava [no solo], ela corre pelo asfalto. E vai se direcionar às bocas de drenagem e aos rios. Então é muita água que tá chegando, no Igarapé e nos seus afluentes, em pouco tempo”, explica. Ao mesmo tempo, o rio vai perdendo a profundidade ao longo do tempo. “A calha, com o crescimento da cidade, vai sendo assoreada”.

Para ele, a solução é complexa e precisará de uma atuação conjunta de órgãos e instituições, em parceria com a sociedade civil. “O primeiro lugar é você conhecer a bacia, você conhecer o território. Isso aí é fundamental, né? Além desse estudo, você tem que entrar com um estudo também de engenharia civil. A partir dessas informações, você tem elementos para que a sociedade civil, junto com o poder público, tenha uma governança sobre esse território”, afirma.

Alexandre acredita que a mudança precisa atingir o Plano Diretor da capital acreana e a forma de ocupação do solo, protegendo as áreas de preservação e construindo bacias de detenção. Também é necessário atuar na educação ambiental e na retirada de famílias que moram em áreas de risco. “Uma cidade é boa se ela é uma cidade sustentável. Tanto em termos ambientais, quanto em termos sociais. Então, você, por exemplo, não pode ter uma cidade que coloque as pessoas em lugares que elas não podem ficar”, diz o pesquisador.

O jornalista e ambientalista Antonio Alves critica o desenvolvimento urbano de Rio Branco ao longo das décadas. Ele destacou que o Plano Diretor, iniciado nos anos 1980, não conseguiu conter o crescimento desordenado da cidade. A falta de planejamento resultou na ocupação desenfreada das margens dos igarapés e na expansão para áreas de maior vulnerabilidade a enchentes e deslizamentos.

Afluente do rio Acre, igarapé São Francisco também tem relação com a identidade espiritual de Rio Branco, em especial com o Daime (Foto: Varadouro/2023)

“É preciso ter uma uma política de longo prazo e um novo planejamento que leve em consideração as mudanças climáticas, os eventos extremos e a nova composição da vida social e econômica da população. Desenvolver projetos que modifiquem a realidade atual, transformando a infraestrutura existente numa infraestrutura de melhor qualidade e adaptada às mudanças climáticas, também proporcionando a restauração do meio ambiente, já que a ocupação atual proporciona a devastação”, defende.

Alves ressalta a importância histórica e cultural do igarapé São Francisco, tendo em vista que as comunidades tradicionais do Daime – manifestação religiosa da região amazônica que surgiu nas primeiras décadas do século XX e tem como base o uso sacramental da ayahuasca – surgiram nesta bacia hidrográfica, algo detectado pela Prefeitura de Rio Branco no início dos anos 2000, e que resultou na criação da APA Irineu Serra.

“A linha de surgimento e crescimento dos centros da ayahuasca, principalmente do Daime, está associada ao igarapé São Francisco. Portanto, era importante recuperar o conhecimento dessa história, preservar os lugares onde essa história se desenvolveu e aconteceu. E, associado a isso, preservar a presença de populações que convivem bem com o igarapé e preservam a vegetação nas margens dele”, afirma.

No entanto, ele lamenta que essas descobertas tenham sido ignoradas na prática, sem gerar projetos efetivos de revitalização. “Isso não gerou projetos, planos, investimento, dinheiro, obras e serviços específicos. Ficou só no papel. E aí os limites urbanos, o Plano Diretor, o zoneamento e todos esses documentos de planejamento da cidade viraram letra morta”, critica.

Enxugando gelo

A Secretaria Municipal da Defesa Civil de Rio Branco, comandada pelo tenente-coronel Cláudio Falcão, atua em ações de limpeza e auxílio às famílias atingidas pelas águas do São Francisco. Na última cheia, devido ao alto índice de chuvas, o contingente era insuficiente para atender à demanda. “Não tem equipe suficiente. Isso não é só em Rio Branco, mas em qualquer cidade que ocorrer isso [chuvas intensas em um curto período]. Nós calculamos que foram 13.000 pessoas de alguma forma atingidas ao mesmo tempo. Para você dar atendimento a esta quantidade, simultaneamente, é preciso ter um poder operacional fora do comum. E isso não existe. Não existe no Brasil, e nem aqui em Rio Branco”, explica.

De acordo com ele, na última ação de limpeza foram retiradas cerca de 800 toneladas de lixo, incluindo desde vegetação até carcaças de carros e animais mortos. Essa foi uma das ações desenvolvidas após a enchente de 2023 para tentar mitigar o problema para este ano, porém, a solução é temporária e vai depender da quantidade de chuva, cada vez mais imprevisível. “Você limpa uma área aqui do igarapé e quem está acima vai sujar de novo. Então você vai ficar enxugando gelo”, comenta Falcão.

Outra questão que chama a atenção da Defesa Civil é a ocupação de famílias das chamadas áreas de risco, ou seja, terrenos que fazem parte da calha do igarapé. As populações que moram nestas regiões já vivem em situação de vulnerabilidade social e são as primeiras a ser atingidas, antes mesmo do rio Acre e seus afluentes alcançarem a cota de transbordamento. Desde março, o órgão retirou mais de 600 famílias, que foram destinadas a aluguel social, mas destacou a importância de monitorar essas áreas regularmente para evitar novas ocupações ilegais.

“Tem famílias que estão morando não na margem, mas dentro do igarapé. Então, evidentemente que essas famílias vão ser atingidas. Nós já começamos a fazer esse trabalho.” A prefeitura estima que pelo menos duas mil famílias nesta situação de alto risco precisariam ser retiradas da região. Recentemente, o prefeito Tião Bocalom (PP) anunciou a construção de mil casas populares. O número, como se vê, é insuficiente para retirar as famílias que estão em zonas de risco.

Nos últimos anos, o governo estadual divulgou algumas ações em relação ao Igarapé São Francisco, como o projeto de revitalização que abrange desde o pólo moveleiro na BR-304 até sua foz no rio Acre, apresentado pelo governador Gladson Cameli (PP) em 2020 ao então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles; o grupo de estudos formado pela Ufac e por órgãos estaduais como as secretarias de Habitação e Urbanismo (Sehurb), de Meio Ambiente (Sema) e de Obras Públicas (Seop); a criação de um fundo especial para a recuperação da Bacia do Igarapé São Francisco, em Rio Branco, no valor de R$ 250 milhões; e o Plano de Ação para Combate aos Riscos na Bacia do Igarapé São Francisco, desenvolvido em abril de 2023, após a última enchente do igarapé. No âmbito municipal, a Prefeitura de Rio Branco também divulgou ações de educação ambiental com moradores da região, para tentar diminuir os impactos da poluição.

Processo de crescimento desordenado da capital acreana foi (e é) um dos principais fatores a acelerar o processo de degradação do manancial (Foto: Varadouro)

O que diz o poder público

Varadouro questionou a Secretaria de Meio Ambiente (Sema), assim como a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia), sobre as ações desenvolvidas em relação ao igarapé São Francisco, mas até a publicação da reportagem não obtivemos resposta.

Como sempre, em todos os meses do inverno amazônico, a Defesa Civil se prepara para os efeitos de eventuais chuvas extremas, como a de março de 2023. Para isso, o órgão avalia o seu poder operacional e a capacidade de resposta a desastres naturais através de simulados, além de realizar a medição periódica dos leitos. Todavia, estas são respostas emergenciais para as tragédias, e não resolvem o problema em sua origem.

“Agora, uma ação integrada é outra coisa. Nesse caso do São Francisco, eu acredito que não é o governo municipal que vai resolver, não é o governo do estado que vai resolver e não é o governo federal que vai resolver. Quem vai resolver são os três juntos, com a colaboração da sociedade”, afirma Cláudio Falcão.

Enquanto a velha máxima do “é melhor prevenir do que remediar” não sai do papel, os moradores dos bairros localizados às margens do velho e maltratado igarapé São Francisco convivem com o trauma de terem, a cada época de chuvas, suas casas invadidas pelas águas. Para uma cidade tão impactada por eventos climáticos extremos como é Rio Branco, ações eficientes e imediatas de mitigação são urgentes – tanto quanto temos uma urgência climática.

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