As águas de março que arrastam os balseiros do inverno

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O maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, ou simplesmente o mestre Tom Jobim, já nos cantarolava que ás águas de março fecham o verão. Todavia, aqui no modo de vida tradicional dos povos da floresta, aprendemos que essas águas de março vêm para fechar o nosso “inverno amazônico”. Sim, sabemos que, do ponto de vista científico, no Hemisfério Sul estamos no verão – pelo menos até o próximo dia 20.

Mas aqui nestes cantinhos da Amazônia, falamos que só temos duas estações: o verão (que se refere aos meses da estação seca) e o inverno (a temporada das intensas chuvas). Noutros tempos, como nos dizem os mais velhos, sabíamos precisamente a data de começo de um, e o fim do outro.

Agora, com as mudanças climáticas, tudo está diferente. O clima na floresta e pelos nossos varadouros mudou muito. Dizem que a seca está mais prolongada e quente, enquanto o inverno mais curto. O problema é que quando chove, o céu desaba sobre nós.

Um dos efeitos são as enchentes mais recorrentes e intensas.

E o mês de março parece trazer com ele todo o aguaceiro acumulado ao longo do ano. Não só o aguaceiro, mas todo os paus e troncos de árvores encalhados nos barrancos e nos leitos dos rios.

Quando o rio Acre enche, ele vem arrastando levas e levas de balseiros.

Falamos por aqui que quanto mais balseiros são arrastados pela força das águas, maior será a alagação. Balseiros que se acumulam nas pilastras da já chacoalhada Ponte Metálica. Quando a enchente é muito grande, os paus ficam presos até na própria ponte.

Pelo terceiro ano consecutivo, a população de Rio Branco é impactada por uma alagação do rio Acre. E todas elas em março. Em 2023 ocorreu pelos últimos dias do mês, já entrando em abril. Em 2024, entre o fim de fevereiro e o começo de março. Agora, desde segunda-feira, o manancial ultrapassou a cota de transbordamento, que é de 14 metros.

Nos últimos anos, tenho me dedicado a escrever reportagens sobre o rio Acre. Um manancial que, historicamente, sofre um grave processo de degradação – seja pelo desmatamento de sua margem ciliar, pela extração predatória de areia, pelo despejo de lixo e de esgoto sem tratamento. Metade da população acreana está inserida às margens do rio – daí pode se imaginar os impactos e pressões.

Como escrevi no começo do ano, ao menos desde a década de 1970, o rio Acre já perdeu quase metade de sua mata ciliar. Toda essa floresta de borda foi desmatada não só pela ocupação desordenada de suas margens pelas cidades, mas sobretudo pela atividade agropecuária.

Transbordamento do rio Acre provoca acúmulo de balseiros em pontes, como esta que liga Brasiléia a Epitaciolândia (Foto: Marcos Vicentti/Secom)



Não há a menor dúvida de que essa perda da mata ciliar tem contribuído sensivelmente para as oscilações extremas do manancial. Costumo usar a expressão “rio Acre, um rio de extremos”. Quando ele não está na cota máxima de transbordamento, ele atinge nível críticos de vazante. Nos meses de seca, chega a apartar em alguns pontos de seu leito. Em Rio Branco, o abastecimento de água para os mais de 360 mil moradores fica comprometido.

Os eventos climáticos extremos que passaram a atingir essa parte da Amazônia foram (e são) potencializados pelo grave processo de desmatamento da mata ciliar do rio Acre e pela degradação da poluição.

Para amenizar os danos da enchente, a Bolívia quer construir muros de contenção para proteger a população de Pando. Aqui deste lado da fronteira há muito se discute a construção de barragem.

Mas seria o concreto a solução para o problema?

O reflorestamento, na minha visão, seria o melhor caminho.

Menos concreto, mais floresta.

Para isso, é preciso uma política de Estado séria para recompor a mata ciliar do rio Acre. Se assim não for, passaremos a conviver mais e mais com as oscilações extremas de um rio de extremos.

Todos os governos falharam em não olhar e solucionar a verdadeira razão deste problema. O atual afirma ter proposta de reflorestar. Enquanto tudo fica no campo das promessas, vamos ter que conviver com um “novo normal” mais e mais extremo – e muito preocupante.

É cada um buscar a sua própria adaptação – e sobrevivência…

Até a nossa próxima epístola escrita desde os varadouros do Aquiry – onde o vento faz a curva…

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