Artista Local, essa entidade “alternativa” como uma fratura colonial exposta na Expoacre 

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“A Expoacre é um momento ímpar para nosso estado, pois além de impulsionar o setor agropecuário, também fortalece o turismo, a cultura e gera oportunidades de negócios para nossa população. Estamos confiantes de que esta edição será um sucesso e contribuirá para o desenvolvimento sustentável do Acre.”

(Governador Gladson Cameli) (Fonte: Agência de Notícias do Acre)

“Artistas locais reclamam falta de palco alternativo na Expoacre (de 2024)” 

(Manchete do jornal Ecosdanoticia de 27.08.2024)*

Ano passado, escrevi o texto que agora reproduzo aqui no Varadouro objetivando apontar e questionar as condições objetivas e materiais pelas quais o poder público estadual tem tratado o(a)s artistas locais no maior evento de massa, que é realizado anualmente há 48 anos na cidade de Rio Branco, a Feira Agropecuária do Acre.

Trata-se de um caso pelo qual se revela por si a maneira como o Estado estabelece na prática os modos padrões radicalmente desiguais de (des)consideração e (des)valor que dispensa às manifestações musicais, de um lado, da indústria cultural do brasilcentrismo (padrão imperial) e, de outro, da produzida no território acreano (padrão colonial), o que vai expressar o que tenho categorizado como modo de produção da colonialidade estética (esse padrão de poder e saber que nos governa como sujeitos esteticamente colonizados), justo isso que tem contribuído “para o desenvolvimento sustentável do Estado” (colonial), como afirma, na epígrafe, a velha frase sempre nova do governador do momento.

Falo pontualmente sobre o que aconteceu envolvendo a programação artística do evento ano passado. Mas poderia estar tratando de qualquer tempo, como posso estar falando de forma antecipada da sua 49ª edição, que acontecerá este ano, e nas dos anos seguintes. Não é previsão. É que as condições estruturais dispensadas às artes locais são de fato (i)mutáveis do tipo que, quando variam, variam sempre para o pior.

Estou exagerando, não é?

Vamos ao texto.

O que aqui será desenvolvido pode ser entendido como o registro de um dos modos como é produzida e mantida a colonialidade estética no Acre. Mas se for difícil entender essa tal de colonialidade, então considere este escrito como a história da forma que o(a) artista local vem sendo cunhado(a)/tratado(a) de alternativo(a) ao longo das 48 edições da Feira Agropecuária.

De fato, o maior evento de massa do Estado é a Expo-Acre-Juruá, que é realizado pelo governo estadual todo ano em Rio Branco. O mesmo modelo começou a ser reproduzido em outros municípios, começando por Cruzeiro do Sul em que ganha o nome de Expo-Juruá, onde o evento já acontece mais recentemente há alguns anos.

Muito embora o evento tenha um caráter multitemático, que vai de exposições de serviços, comércio e indústria em geral, especialmente voltados ao agronegócio e pecuária de interesses nacionais e internacionais, até entretenimento inclusive com uso de animais, o seu carro chefe de atração de público sempre foram os shows musicais, a velha cultura artística, cuja divulgação de massa do seu elenco, de fora e da casa, se dá sempre de forma diferenciada.

Comecemos por aqui.

Existem as chamadas atrações nacionais. São o(a)s artistas divulgados no marketing do evento, com ênfase e entusiasmo, nome por nome, foto por foto, trilha por trilha, história por história. E existem artistas cujos nomes não constam nesse material publicitário maior. São os tipos que não têm direito a ter nomes próprios nem de serem considerados nacionais. São reduzido(a)s – como se fosse algo único e homogêneo – às alcunhas coletivas de artistas locais, artistas da terra, artistas da região.

Mas o tratamento diferenciado não fica só na não-divulgação e alcunhas redutoras.

O(a) artista local não é convidado(a)/contratado(a) pela organização do evento. Para participar precisa fazer a sua inscrição e passar por uma seleção. Uma espécie de concurso, concorrência. O que é operacionalizado não pela organização do evento, mas pela Fundação Cultural do Estado, quem se diz entender de artistas locais, sobretudo pela sua conhecida especialidade de os colocar a concorrerem entre si nos editais anuais das chamadas leis de cultura.

O palco principal da Expoacre, destinado aos “grandes nomes” do sertanejo nacional, enquanto aos artistas acreanos lhe restam o que sobra de espaço e os piores cachês (Foto: Junior Aguiar/Secom)



O que não acontece com o(a)s nacionais, isto é, com aquele(a)s que a organização do evento – via empresa terceirizada – considera como atração nacional que são invariavelmente cantores, cantoras e duplas sertanejas. Os ditos nacionais estão na categoria que os franceses vão chamar de hors-concours, os fora de concurso, no caso, os fora de (ou fura) editais públicos, cuja qualidade é reconhecida pela empresa privada que o estado delegou para tal atribuição. Meio desviante de tratar o que considera excepcional.

De fato, o processo de escolha dos nacionais não passa por critérios públicos comumente estabelecidos em editais, senão pelo critério de gosto – o gosto do mercado – que eu suponho que a organização do evento suponha serem os gostos da massa, isto é, de toda a população, ou das próprias autoridades governamentais do momento. Nunca se ouviu falar em pesquisa no sentido do atendimento à vontade popular.

Mas o diferencial de tratamento não fica somente nas formas de divulgação, alcunhas e seleção.

Os valores dos cachets, a qualidade dos espaços de apresentações, dos camarins, da aparelhagem de som e luz, regalias outras de produção como a qualidade das estadias, alimentações e transportes e até as acomodações reservadas ao público, tudo é profundamente diferenciado entre os locais e os nacionais. O do bom e melhor para estes. O do que for possível, isto é, o que sobrar, para aqueles. Eis a medida do valor que se dá a uns e outros.
Estou exagerando, não é?

Agora vamos aos espaços de apresentação. O Parque de Exposições em que a Feira é promovida é um local permanente voltado para a realização anual deste evento. Nele tem uma arena construída especialmente para a realização de shows. A esse espaço foi dado o nome de Arena de Shows Amilton Brito, em homenagem ao empresário já falecido que, por muitos anos, foi responsável pela contratação dos artistas nacionais para a Feira. A rigor, a homenagem sempre tem sido endereçada ao dono do gosto.

Na Arena, que chamam também de palco principal, o(a)s artistas locais não se apresentam. Esse palco especial é exclusivo dos nacionais. Exceção a outra categoria de artistas muito em voga no show business dos últimos tempos por aqui que são o(a)s gospels, as celebridades da indústria do sagrado. Estes estiveram no palco principal e tinham um palco próprio à sua disposição no Parque, o Palco Gospel. Tá pensando o quê, Jesus!

O(a)s artistas locais se apresentam no que a organização da feira chama de palcos alternativos, aqueles minúsculos e mal acomodados espaços localizados em lugares em que a música divide, melhor dizer concorre, a atenção com outras atividades. Como já disse, não existe no Parque de Exposições uma arena de shows permanente e exclusiva reservada aos artistas locais. Estes ficam espalhados por espaços que a administração do evento por sua conta e (mal) gosto decide destinar.

Uns em stands cobertos, outros nem tanto. Todo ano acontece em um local diferente, onde sobra depois de tudo que se considere mais importante quanto à definição de espaço no local do evento. Terminada a Feira, desaparecem para reaparecem no ano seguinte noutro lugar. Para estes o status de provisoriedade é permanente.



“É a lei da indústria cultural se impondo sobre a administração da coisa pública colonizada e colonizante, na qual o(a) artista local é barrado(a), ano a ano, pelo critério da colonialidade estética que o(a) racializa como expressão de pouco ou nenhum valor dentro de sua própria casa, pela gestão de seu próprio governo.

Existem palcos que ficam literalmente nas ruas do Parque de Exposição. No meio do caminho – comendo poeira no entre lugar – no sem-lugar onde as pessoas passam para ir e voltar. O palco alternativo é algo no meio, não um fim. O acaso talvez encontrado. Nesse sentido, leia outro artigo meu em que falo sobre um show ocorrido numa das vielas do parque publicado aqui no Varadouro:

O fato é que tanto nos palcos alternativos quanto nas ruas, as condições de trabalho para os artistas e também para o público assistir não são adequadas. Para dizer o mínimo, não há disponibilidade de camarins para o artista nem de assentos para a plateia, por exemplo. 

Na edição da Expo-Acre do ano passado, a Fundação Estadual de Cultura Elias Mansour inovou com a criação de dois palcos simultâneos, o velho alternativo, desta feita cunhado de Palco Culturarte, destinado às apresentações dos artistas locais, e o Palco Sertanejo, este segundo para dar espaço aos chamados sertanejos locais. 

Em cada um dos palcos se apresentaram 27 artistas. Uma espécie de apartheid intra local. De um lado, os sertanejos locais. De outro, o resto local. Uma novidade estranha não fosse o normal e estratégico modo colonial de estratificação. 

Estou exagerando, não é?

Paralelo a tudo, não esqueçamos do Palco Gospel com a sua intensa programação de bandas e nomes locais desse considerado novo ramo da música popular brasileira e acreana.  Parece que com isso buscam demonstrar que Jesus pode ser regionalizado para o consumo pop do entretenimento religioso.

Na edição de 2023, os espaços onde estavam localizados os palcos alternativos, como só acontece invariavelmente todo ano, não são adequados. Detalhemos um pouco mais. O Palco Culturarte ficou localizado em meio aos brinquedos do parque de diversão, entre a fila da roda gigante e a praça de alimentação, além de estar ao lado de um bar cuja altura do som mecânico era maior que a do palco. Literalmente no meio do ruge-ruge. 

Lembro que ano passado e/ou em outros, o palco alternativo estava localizado ao lado dos banheiros químicos e em frente a uma rua de chão batido em que subia poeira quando os carros passavam. Parece que o que resta para os locais é a poluição de qualquer espécie. Estes espaços também costumam não ter nenhuma segurança para os artistas. Os de 2023 não tiveram. É cada um que se defenda, que se proteja!

A FEM informa também outra inovação, a de que os artistas locais passaram pelo crivo de uma comissão de avaliação. O que nunca havia ocorrido, afirma, quando a escolha era feita pelo organizador do evento, o terceirizado. Agora é outra coisa, diz a FEM. 

Seria mesmo? Na ficha de inscrição, o(a) artista proponente, essa entidade desconhecida, inclusive pela Fundação de Cultura, teve que enviar um portfolio com relato da carreira profissional e documentos comprobatórios. Por esta condição, parece que ficaram de fora do certame os que não são considerados profissionais.  

O que não se tem notícia é do rol de critérios que levaram a comissão a fazer a seleção dos 27 artistas locais e 27 sertanejos, no universo de 216 propostas que recebeu. Onde seria possível saber o que levou as demais 162 propostas não serem aprovadas? 

Em lugar nenhum público.

No paralelo, seguem os gospels, para quem não houve ficha de inscrição e seleção pela FEM. Como, com que critérios e por quem foram escolhidos? Será que criaram uma comissão de pastores? Mais umas inquietas indagações sem respostas. 

Como se pode ver, o(a)s artistas locais são os únicos nomes que supostamente passaram pelos critérios e processos de avaliação dos tipos comumente constantes da política cultural do Estado com a formação de comissão ao estilo das comissões das leis de cultura. Muito embora, no caso, não se tem notícias de comissões, processos, critérios e editais relacionados, mas tão somente de uma ficha de inscrição e do resultado, claro! 

Já quanto ao(a)s artistas nacionais, os critérios não são culturais do tipo senão do mercado da indústria cultural oriunda do brasilcentrismo.  Vale o que está fazendo sucesso a partir do centro econômico-cultural do país, a partir do sentido de sucesso que o dono do gosto adota. 

É a lei da indústria cultural se impondo sobre a administração da coisa pública colonizada e colonizante, na qual o(a) artista local é barrado(a), ano a ano, pelo critério da colonialidade estética que o(a) racializa como expressão de pouco ou nenhum valor dentro de sua própria casa, pela gestão de seu próprio governo. 

Estou exagerando, não é?

A escolha e contratação dos nacionais são terceirizadas. São empresas privadas que se responsabilizam pelo contrato e têm o domínio da bilheteria da Arena de Show.  Enquanto que para assistir aos locais, a população não paga, para assistir aos nacionais, ela paga. 

Os preços praticados no ano de 2023 para ingressar na Arena estiveram nas faixas de oitenta reais (individual) a quatrocentos e cinquentas reais (camarotes), podendo chegar até três mil e quinhentos reais, caso dos camarotes empresariais. Pobre não pode entrar na Arena de Shows para assistir aos nacionais, mas pode assistir de graça aos shows locais com os seus célebres desconhecidos. 

reclamando de quê?

Na edição de 2023, em razão da grita dos artistas locais, a FEM teve que conceder um pequeno aumento no valor dos cachets que havia estabelecido inicialmente. É que os preços ofertados não eram valores, eram humilhações, de acordo com os questionamentos. O que mesmo assim permaneceu sendo. 

Estou exagerando, não é?

Ademais, para quem acha tudo isso pouco (ou muito), é preciso considerar que, do preço do cachê contratado, se impôs a retenção sobre o mesmo do percentual de 30% em favor da empresa terceirizada, pela FEM, repassadora dos pagamentos. 

Além desse percentual, o artista se obriga a recolher, em favor do Tesouro Municipal, os 5% de Imposto sobre Serviços-ISS. E, dependendo do valor, ainda podem ser retidos do seu cachê, em favor do Tesouro Federal, valores referentes ao INSS e Imposto de Renda.  

Na ficha de inscrição, é possível saber dos valores dos cachês dos artistas locais. Só para se ter uma ideia, um show com dois artistas locais (que pode ser uma dupla sertaneja local) vale novecentos reais, dos quais serão descontados os 30% em favor da empresa contratante mais 5% de ISS em favor da Prefeitura… Feitos os descontos, cada artista local – no casa de dupla – leva para casa como pagamento de seu trabalho o valor de duzentos e noventa e dois reais e cinquenta centavos. Isto é, se não bebeu e comeu nada e se foi e voltou de carona para a Feira. 

Quanto aos valores dos cachês dos artistas nacionais não se tem notícia. Não sai em Diário Oficial. O contrato não vai para a internet. É segredo de Estado todo ano. Pelos preços praticados no mercado, o que se sabe é que são estratosféricos em relação aos cachês dos artistas locais, podendo chegar até o valor de um milhão (incluindo passagens, estadias, alimentações, transportes…). Mas para ser objetivo, a média paga no evento deve chegar a casa dos quinhentos mil reais. O que é muito!! 

Estou exagerando, não é?

No paralelo, seguem os gospels, cuja previsão de valor e pagamento de cachê não se tem notícia em lugar nenhum que seja público. 

Tocaram de graça? Quanta graça! 

O que faz um merecer tanto e outro quase nada? No imediato, vemos em plena ação a indústria e mercado culturais e religiosos protegidos e aliados aos poderes públicos em face da cultura local desprotegida.  Isso que eles consideram meritocracia cultural é uma construção política de caráter colonial naturalizada pela lei da indústria cultural que se impõe sobre o chamado estado da cidadania cultural. 

Estou exagerando, não é?

Estas condições são normas de Estado – esta instituição profunda da colonialidade –  postos em prática por todos os governos nesses 48 anos de evento. São produtos histórico-estruturais naturalizados pela educação do senso-comum do “sempre foi assim e assim sempre será” pelo qual somos feitos reduzidos (artistas e público locais) à condição de meros consumidores do que não é nosso, e incompetentes, por isso dispensáveis, como dignos criadores de si próprios. Como se auto nos negássemos frente ao enfrentamento da dor e da delícia de ser o que somos política e esteticamente.   

O fato é que, pelo tratamento que o Estado – como dispositivo colonial que é – tem dispensando a(o)s artistas locais (modo colonial) e nacionais (modo imperial), é fácil concluir que ele tem criado e mantido nesses 48 anos uma espécie de apartheid de valor estético, daí sua natureza racializante, pela qual estabelece uma espécie de ranking entre os melhores, daí superiores e merecedores do ideal, por isso justo, frente aos piores, daí inferiores, merecedores do péssimo, por isso também justo. 

O efeito colonial desse processo de produção social da figura do não-artista ou sub artista no seio da população local (ela enquanto reduzida a público consumidor) é possível perceber melhor, por ocasião do mesmo evento, no caso que registrei no artigo publicado aqui no Varadouro sob o título “O que não se vê é porque não existe? Pensando sobre a expressão de um arquétipo colonial 

Eis uma forma contundente e eficiente – como dispositivo colonial – de nos educar e dominar quanto ao gosto/valor estético no campo da música. Pense nuns condenados da arte a só consumir e reproduzir (dá valor) quase absolutamente o que não é seu, como se fosse norma natural esse ônus de aceitar essa coisa de se auto negar culturalmente! Que orgulho é esse pelo o que consome e não pelo o que cria, pensa e é? 

Estou exagerando, não é?  Eu digo que não!



*EM TEMPO: O ÁPICE DE NEGAÇÃO: 

A quatro dias do inicio do evento de 2024, o Jornal Ecosdanoticia publicou  matéria com o seguinte título: “Artistas locais reclamam falta de palco alternativo na ExpoAcre”

.(https://ecosdanoticia.net/2024/08/artistas-locais-reclamam-falta-de-palco-alternativo-na-expoacre/?fbclid=IwY2xjawE6tONleHRuA2FlbQIxMQABHWl4RTd69bNwhYFI1TaN9mBWP6EvxyzYaEeVnuDUKKxp9lmNIqbeMrJGEw_aem_IUe-Pie00xUeBGuwZPskHw)

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