Se ela sobreviveu e pode contar, devemos ouvir (e com atenção)

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Como a matéria-prima do meu trabalho é a memória da violência de gênero, estou relendo o livro de Maria da Penha “Sobrevivi: posso contar”. A mesma Maria da Penha que dá o nome de uma das melhores leis do mundo feita para proteger as mulheres da violência doméstica e familiar a que são submetidas historicamente. É uma história de sofrimento, sim, mas também de muita luta, esperança e fé.

Assim têm sido também as histórias de mulheres acreanas que tenho escutado. Não escuto sobreviventes, escuto as familiares que têm de atravessar a vida com o luto do feminicídio. Uma outra dimensão da violência de gênero. Mães, filhas e irmãs que precisam, todos os dias, reaprender a viver com a irreparabilidade de suas perdas e a tentativa de criar uma distância saudável entre o passado traumático e o presente, a fim de abrir espaço para o futuro. É por meio delas que busco as vozes silenciadas das vítimas de feminicídio

Ler Maria da Penha, uma sobrevivente que mudou a dinâmica da violência de gênero na institucionalidade brasileira, é como uma bússola e um patuá. Ensina-me e me dá força para seguir. Nestes dias, estou lendo sobre seu cotidiano de reabilitação no Hospital Sarah Kubitscheck após o tiro de revólver que levou nas costas enquanto dormia. Era o início da década de 1980 e Maria da Penha estava em outra cidade para o tratamento. Além das grosserias do marido, da saudade das filhas pequenas e da notícia de que nunca mais voltaria a andar, ela precisou enfrentar a dinâmica hospitalar dolorosa e exaustiva para conseguir fazer coisas básicas, como escovar os dentes e evitar a criação de escaras em suas costas.

Eram as consequências da primeira vez em que ela sofreu uma tentativa de homicídio. Ela ainda descobriria que o marido, pai de suas filhas, era seu algoz e ainda passaria por novas violências letais e por longos anos de conivência do Estado brasileiro com elas. A existência da Lei Maria da Penha é fruto da luta de muitas mulheres e do constrangimento internacional que o Brasil passou nesse percurso. Eu não consigo ter a dimensão do que essa mulher atravessou e tudo me surpreende, principalmente sua força e sua fé.



“Refletir sobre o que seria uma morte causada por menosprezo ou discriminação à condição de mulher é um dever ético que deve ser levado a sério com muito estudo e pesquisa. Não adianta comemorar a diminuição das taxas de feminicídio se há situações que escapolem às classificações institucionais.”





É com muita indignação e revolta que, hoje, leio a notícia de que Maria da Penha, novamente, precisou recorrer à proteção do Estado brasileiro contra violência de gênero, nas palavras da professora Débora Diniz: “agora, de gente de fora da casa, homens anônimos e enfurecidos que tomam Maria da Penha como uma inimiga do poderio masculinista”. O mesmo espectro de homens que fizeram com que Débora Diniz, Lola Aronovich e Márcia Tiburi também precisassem de proteção do Estado em razão de sua vida pública dedicada à defesa da justiça pelo feminismo. A inquisição não acabou, a inquisição nos constitui enquanto sociedade.

A demanda de proteção estatal a uma mulher paraplégica que sobreviveu a duas tentativas de homicídio contra violência de gênero deve servir de alerta ao Sistema de Justiça brasileiro: o perigo não está apenas em casa. O Código Penal reconhece duas possibilidades para o feminicídio: i) quando o crime se dá no contexto de violência doméstica e ii) por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A lei é vaga e é dever dos juristas interpretar o que significa essa segunda hipótese, mas sabemos que ela extrapola o contexto das relações íntimas. E, desde 2021, pesquisando o tema, posso afirmar que há cegueira institucional quanto a esse tipo de morte violenta de mulheres.

Refletir sobre o que seria uma morte causada por menosprezo ou discriminação à condição de mulher é um dever ético que deve ser levado a sério com muito estudo e pesquisa. Não adianta comemorar a diminuição das taxas de feminicídio se há situações que escapolem às classificações institucionais. Se uma mulher em situação de rua aparece morta e a causa não é investigada a fundo. As instituições brasileiras têm aprendido cada vez mais a enxergar e a enfrentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, de modo que deve aprender também os outros tipos de violência a que são submetidas. É possível, é necessário e é urgente.

Aqui, de um dos territórios que mais mata mulheres em razão de gênero, tendo sido essas mortes classificadas como feminicídios ou não, deixo toda minha solidariedade e admiração à Maria da Penha. Sua existência carrega uma missão que me emociona profundamente. Cada longo dia eterno enfrentado em corredores hospitalares contribuiu na defesa da vida de centenas de mulheres. Aqui estamos. E seguiremos abrindo varadouros em defesa da vida.



Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.

leonisia.mouraf@gmail.com

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