O que não se quer ver e ouvir é porque não existe? Pensando sobre a expressão de um arquétipo colonial

Compartilhe



“O sujeito, portanto, é um campo de luta e um espaço que deve ser controlado e dominado para que a coerência de uma dada ordem e visão de mundo continue estável.” (…) “Não somente terras e recursos são tomados, mas as mentes também são dominadas por formas de pensamento que promovem a colonização e a auto colonização.” (Nelson Maldonado-Torres)



Trago aqui para a roda a descrição de uma cena registrada em vídeo, na cidade de Rio Branco, por ocasião da 48ª edição da Feira Agropecuária, no ano de 2023, pela qual se pode deduzir um curioso paradoxo sociocultural: Um show no meio de um público sem público. Partindo do que acontece no lugar do evento entre o possível público e o palco, proponho que interpelemos/problematizemos as suas razões e seus efeitos, sobretudo políticos, no contexto da expressão, da difusão e da recepção da arte acreana no território acreano, caso da música. É um convite à reflexão sobre a sentença que se tem acreditado ser inapelável, a do “sempre foi assim, é assim que é, o que você quer mais?” Quero que pensemos a respeito.

Vamos?


O fato cultural – o gesto político

Inicio com a descrição que pretende ser minuciosa do espaço e do que acontece ao longo dos exatos 5 minutos e 59 segundos da gravação em vídeo de parte do show, realizado numa das noites da 48ª Feira Agropecuária de Rio Branco, da compositora e cantora Kelen Mendes e do músico e compositor Deivid de Menezes, ambos acreanos, em que participam também os músicos acreanos Artur Miúda (contrabaixo), Charles Sampaio (violão) e João Gabriel Brito (percussão).

O registro audiovisual foi realizado no dia 5 de agosto de 2023, com uso de aparelho celular, por Sâmia Ramos de Macedo, e publicado, no dia seguinte, na sua página do Facebook. O link desta publicação segue ao final do presente texto*. Sâmia é uma apreciadora contumaz das artes locais, o que frequentemente documenta em vídeos e fotos publicados nas suas redes sociais.

Esta sua publicação foi legendada nos seguintes termos: “Kelen Mendes na Expoacre, com Deivid de Menezes e músicos. Espaço Sesc/Senac-Fecomércio. Uma homenagem a João Donato.”. Dois dias antes do show, no dia 3 de agosto, Kelen Mendes, por sua vez, publica, a título de divulgação, na sua página do Facebook, o card publicitário do show legendado pelo seguinte texto:

“Última oportunidade de ver o show Ancestralidade Afrolatina. Esse show reuniu meu trabalho ao do amigo Deivid de Menezes e atendeu a temática do projeto Sonora Brasil do Sesc – Culturas Bantu: afrosonoridades tradicionais e contemporâneas.

Estaremos no Stand da Fecomércio, na Expoacre, às 19 horas do dia 5 de agosto.
As canções, todas autorais, mostram como essa cultura está presente nas nossas vidas e no final da apresentação, fazemos uma homenagem ao Mestre João Donato.”


O espaço do show é um pequeno palco que está um pouco acima do nível do chão por alguns 30 centímetros e coberto por uma pequena tenda de cor branca. A sua posição, isto a câmera de Sâmia não consegue mostrar, está no lado direito de quem entra no stand da Fecomércio do Acre.

As laterais dele e logicamente a frente estão vazados, menos o fundo que está tapado por uma espécie de outdoor de divulgação do programa do SESC Nacional escrito com letras menores: “SESC apresenta” e “Sonora Brasil” e com letras maiores “Culturas Bantu” ilustrado com um grande desenho estilizado de um homem negro tocando um tambor. O show é uma promoção do Sesc-Acre, uma das formas de sua participação na Feira Agropecuária de 2023.

A captação das imagens, sem uso de cavalete, se dá em um plano simetricamente frontal e no modo vertical dando ênfase exclusiva ao palco e no mesmo nível de altura de uma pessoa em pé. A câmera de celular está localizada do outro lado da rua em que o palco se encontra, de modo a registrar o movimento de pessoas no trajeto/rua que fica entre a sua posição e a localização do palco que fora instalado na entrada do stand da Fecomércio.

Nessa posição de esquina, a câmera capta também em parte a movimentação muito mais intensa de pessoas que acontece na rua lateral do seu lado esquerdo. O fluxo de pessoas na rua de frente -, que dá acesso ao stand da Fecomércio – será aqui descrito de modo a apontar a reação de cada um que por ali passa em relação ao palco/show. Tais registros estão restritos ao que foi captado e acontece frente à câmera, isto é, ao que se encontra dentro do anglo da imagem e na duração temporal de gravação, que é dos exatos 5 minutos e 59 segundos.

O vídeo começa exatamente quando Kelen Mendes inicia a cantar a música de sua autoria, Rio Acre ou Rio de Oxum. A letra fala do rio que atravessa a cidade de Rio Branco e das suas fases, que ela relaciona as duas metades do ano, quando, numa, a de cheia, ele “se põe a subir, subir”, e na outra, a de seca, ele “se põe a descer, descer”. Fala da sua importância e lamenta que ele esteja para sumir “de tão castigado”, em razão do que apela para a ajuda de Oxum para que isto não aconteça.

Nada como um tema tão vivamente presente e importante para quem vive na cidade de Rio Branco, como em toda a Amazônia. Um rio e suas manifestações viventes. A obra é expressão da percepção poético-musical criada por uma das suas habitantes. Kelen, como Deivid, nasceu e mora no Bairro Cadeia Velha que beira às águas do Rio Acre, um dos bairros mais diretamente afetados por ele, positiva e negativamente.

Naquele instante do evento, todos estão tocando sobre o tablado. Kelen está em pé a cantar e dançar. Os demais sentados. Até os três minutos e doze segundos de gravação, a música cantada por Kelen era Rio Acre ou Rio de Oxum. Daí para frente, Deivid Menezes se junta a ela para cantarem Emoriô, esta mundialmente conhecida parceria do acreano João Donato com baiano Gilberto Gil.



Os gestos diante do fato

A primeira pessoa a aparecer entre a câmera e o palco é o funcionário do Sesc-Acre, Franklin Pinheiro, que, pelo ofício do momento, registra de perto, com o seu celular, o início do trecho filmado por Sâmia Ramos. Logo em seguida, passam duas jovens mulheres. A primeira com uma criança no colo e a segunda de mãos dadas com outra criança. Todos olham rapidamente para o palco e passam com pressa. Concomitantemente na direção contrária, passa outra mulher e logo atrás dela um homem idoso. Ambos sem pressa olham para o palco, mas não param.

Por alguns segundos, ninguém passa pela frente do palco. Ai percorrem, com pressa, quase lado a lado, um homem, um casal de mãos dadas e uma mulher. Nenhum deles olha para o palco. Mais alguns segundos sem passar ninguém pela frente do palco, quando surgem uma mulher, um casal e logo atrás dois garotos, um rapaz, outra mulher, duas moças e um rapaz ao celular. Desse grupo, só as duas primeiras mulheres olham para o palco.

Transcorrem mais alguns segundos sem passar ninguém, quando surge na cena uma mulher de mãos dadas com uma criança e um homem logo atrás. A mulher não olha para o palco. A criança passa olhando para o palco e faz menção de querer para, mas é levada pela mulher. O homem passa sem tirar o olho do palco, mas não para. Alguns segundos depois, passa um casal levando uma criança. O homem e a mulher olham levemente para o palco, a criança não.

Poucos segundos se passam e mais um grupo de pessoas aparece. Na frente, uma menina que olha para o palco rapidamente, um rapaz com uma criança no colo, um menino, uma mulher, um homem ao celular, duas moças e, um pouco mais atrás, uma mulher com um celular na mão que olha na direção da câmera que filma a cena. Mais próximo ao palco passa um homem, o único que olha e acena para os músicos. Ele não para. É um conhecido da turma. É o Ivan Carvalho, que é radialista e cantor acreano.

Logo em seguida, cruza um grupo de três meninas quase correndo e duas mulheres. Nenhuma delas olha para o palco. Na sequência, passa uma mulher de mãos dadas com duas crianças, logo atrás dois garotos, uma segunda mulher de mãos dadas com outra criança e, imediatamente na direção contrária, um casal de mãos dadas e duas mulheres, uma das quais insiste em olhar para a direção contrária do palco, inclusive dando uma pequena parada como quem estivesse procurando algo/alguém (é a segunda vez que ela passa, está voltando de onde foi na primeira aparição). Desse grupo, só um dos garotos e uma mulher olham para o palco.

Após alguns segundos, atravessa um homem e, na direção contrária, duas moças e um rapaz, estes cada um com um copo de cerveja na mão. Nenhum deles olha para o palco.

Na sequência, cruzam uma mulher apressada e um homem sem pressa junto com uma moça, um menino e um rapaz. Imediatamente atrás, uma mulher e um rapaz. Só o homem e o rapaz ao seu lado olham para o palco. Em seguida, passam uma moça, dois rapazes e um senhor. Nenhum deles olha para o palco. Na sequência, passam mais dois homens, um deles olha para o placo.

Alguns segundos depois, passa uma mulher com uma criança. Ambas não olham para o palco. Logo atravessa uma mulher que passa olhando para o seu celular (é a mesma que passara pela segunda vez há pouco. Ela ainda não havia encontrado o que procurava). Passam, também na sequência, um rapaz e um casal de idosos. Nenhum deles olha para o palco.

Aparece uma moça quase de costas para o palco e de frente para o celular de Sâmia que filma a cena. Depois um rapaz e um casal de jovens. Na direção contrária, passam duas mulheres. Desse grupo, só a moça do casal olha para o palco. Após alguns segundos, passa uma mulher com uma menina. Nenhuma delas olha para o palco. Depois, uma senhora e uma moça que olham.

Na sequência, atravessa uma mulher com um celular no ouvido de mãos dadas com uma criança junto a uma senhora que carrega na mão esquerda uma sacola de plástico verde. A senhora faz movimento de para, logo em seguida passam um casal de mãos dadas e dois rapazes. Desse grupo, a senhora, a criança e os dois rapazes olham para o palco.

É possível ver, imediatamente na sequência, na ponta da imagem direita de quem assiste, que permanece parado o braço da senhora com um saco verde na mão, o que indica que a mesma parou em frente ao palco, o que acontece por exatos 13 segundos. Na mesma cena, quem há pouco havia saído de dentro do palco e agora se dirige de volta para depois sumir pelos fundos, é Guilherme Ferreira, que está ali a serviço do evento, como técnico de som.

Nesse momento, é possível ver Kelen acenando na direção daquela senhora, fazendo gesto de mandar beijos e de formar coração com as mãos. Parece ser uma conhecida sua a quem a cantora cumprimenta e parece agradecer pela parada. Quando passam com bastante pressa um casal de mãos dadas e logo atrás uma menina e um menino lado a lado. Todos olham, quase de soslaio, para o palco.

De fato, a senhora não fica para o show. Após 13 segundos, logo segue o seu caminho, quando é possível vê-la passar, ao fundo da imagem pela lateral do palco, indo embora sem mais olhar.

Depois a imagem fecha nos músicos, quando ainda é possível ver dois casais passarem rapidamente sem olhar para o palco, após o que não é mais possível ver o público, mas somente os quatro músicos e Kelen, cujas imagens são aproximadas. É quando a filmagem acaba nos exatos 5 minutos e 59 segundos.

O registro da câmera capta também a movimentação de pessoas na parte lateral direita do palco que dá para a outra Rua do Parque, que parece ser uma das suas ruas principais. Ali o fluxo é muito mais intenso, portanto bem numeroso que a da rua que dá para frente do palco, esta uma das ruas/entradas periféricas que dá para o stand de exposição da Fecomércio.

É possível perceber que dali – da rua principal – também as reações dos transeuntes são semelhantes às das pessoas que passam na frente do palco, no sentido de, em regra, não olharem nem pararem para assistir ao show.

O balanço do paradoxo

Em um balanço quantitativo do que foi possível observar, o resultado que se chega é o seguinte: 99 pessoas passaram pela frente do palco durante os cinco minutos e cinquenta e nove segundos de gravação. Desse número, 50 são mulheres (jovens e idosas), 31 são homens (jovens e idosos) e 18 são crianças e adolescentes.

Das 99 pessoas, apenas uma parou em frente ao palco. Desse número total, 30 olharam na direção do palco e 69 o ignoraram. Das 50 mulheres, 13 olharam; dos 33 homens, 11 olharam e das 16 crianças, 6 olharam. Não entraram no número estatístico os dois homens que estava a serviço do evento.

Importa dar ênfase ao que foge radicalmente ao padrão do resultado estatístico: apenas uma pessoa parou em frente ao palco – o que fez pelo tempo de 13 segundos. Uma criança fez menção de para, sendo impedida pela mulher que lhe levava de mãos dadas, que se supõe ser a sua mãe. A única pessoa que acenou em direção ao palco é um radialista e cantor acreano conhecido que não parou para assistir ao show.

É pertinente considerar aqui outra estatística, a de acesso público, pela internet, ao vídeo em questão e sua recepção nas redes sociais, acesso ocorrido na página de Sâmia no Facebook.

Das 313 visualizações, até a data desta publicação no Jornal Varadouro, apenas oito pessoas, incluindo a própria Kelen Mendes, se manifestaram na postagem, o que fizeram usando os emotions do Facebook: cinco curtiram e três amaram, entre estes se inclui Kelen.

Desse número de visualizações, apenas uma pessoa fez comentário, dando parabéns e desejando sucesso à compositora. Kelen também faz comentários quando se manifesta duas vezes para agradecer a presença no show de Sâmia e também aos parabéns e desejo de sucesso daquela pessoa que comentou. Não há registro de compartilhamento. A publicação do vídeo não é privativa aos amigos de Sâmia, ela é aberta ao público.

Como visto, os dados da página do Facebook de Sâmia Ramos não fogem à norma do que acabamos de observar em relação à recepção do público ao vivo, dados que nos dizem, de forma categórica, que as redes sociais – em regra, sítios de amigos – reproduzem a lógica da recepção pública observada nos eventos presenciais ao vivo – em regra, sítios de desconhecidos.


Não estaríamos, nesse sentido, imersos em um ethos colonial/colonizante que nos determina, senão condena a uma espécie de autocolonização então imperceptível, que significa, no caso, autonegação cultural que é, à toda prova, política, posto que da esfera do domínio, sobretudo mental das pessoas, das comunidades, dos povos?


O fato diante dos gestos – o problema como arquétipo colonial

É fato que estarmos testemunhando um acontecimento objetivo – de proporções mais que simbólicas – pelo qual um público em movimento individual e coletivo manifesta incontroversa ação de se negar como tal, o que faz ao ignorar (negar) decisivamente uma expressão artista musical do seu lugar em plena atividade, o que nos faz também testemunhar fato decorrente deste gesto que é a existência de uma obra de arte operando em público, mas sem público.

Por que isso ocorre e deste modo?

Que fenômeno é esse, essa manifesta atitude individual e coletiva de indiferença ante ao que acontece à sua frente? E o que acontece?

O palco é onde o fato artístico-musical se concretiza. Naqueles 5 minutos e 59 segundos é onde se encontrava em pleno movimento corporal, plástico e, sobretudo, sonoro-rítmico-melódico, cinco músicos. É o lugar potente e privilegiado da atenção. Onde é possível o acesso visual mais amplo. É o lugar da existência contingente da obra que ali se apresenta. É de onde se pode ver e ouvir o gesto musical nas intensidades e plenitudes de suas ações.

Onde é possível estarem solenemente expressos e vivos. É o lugar do corpo do artista, do corpo da obra de arte, dos corpos dos instrumentos e das aparelhagens que os amplificam. Lugar este que se opera em um contexto em que circulam outros corpos, aqueles que constituem o que chamamos aqui de público, o outro lado necessário da comunicação estética, o que seria a sua recepção.

E o que este lugar-palco oferece pontualmente em sua substância? Um grupo de artistas locais em plena apresentação de suas obras.

E porque, ele o palco, este palco em questão, com tudo que ele oferece, é tratado como algo inerte, sem vida, inexistente como tal? Estando ali, à toda prova, porque não parece ser visto?

É plenamente possível, pelo quadro, considerar que ignorar o palco signifique ignorar a obra de arte, o (a) artista e tudo que isso possa significar e representar culturalmente. É agir como se, de fato, ali nada existisse ou, noutra hipótese menos destruidora, como se ali nenhum valor contivesse ou, noutra possibilidade em grau menos destruidor ainda, como se ali se apresentasse algo de valor inferior, daí, por isso, imerecedor de atenção, de qualquer atenção.

Em um exercício de comparação entre o artista que tem atenção do público e o que não tem, não é possível não deixar de considerar que tal comparação não seja feita sem que não se estabeleça uma relação em que alguma consideração de existência e/ou de valor vá pesar em um e não em outro.

Se existe entre os seres um não-ser (o ser da não existência) é porque tal conceito está baseado na existência de um ser (o ser da existência) e vice-versa. Seguindo a gradação de que nos referimos atrás, então se existe um algo sem valor é porque tal conceito está baseado na existência de uma matriz de valor dado a priori como a referência de medida em relação a qual o ser sem valor é devedor e o de valor não.

Do mesmo modo, se existe um ser inferior é porque tal conceito está baseado na existência de um ser superior. Estaríamos, senão estamos de fato, frente a um padrão de medidas de existência e de valor que determina o que existe e o que não existe, assim como, considerando existir, quem é deficitário de valor e quem não é.

Que ser é esse a quem é dado existência e valor e, por isso, é superior? O que funciona como a unidade universal da referência? Qual é o ponto considerado central da relação – de existência e de valor – com aquele feito estético vivo que se processa no pequeno palco de beira de rua da Expoacre?

Exercitemos nos movimentar de lugar do abstrato para o da concretude para interpelar que motivos razoáveis do mundo da vida pragmática e emergente podem justificar esse tipo de rejeição, de invisibilização e de tamanha indiferença diante do que acontece como se não acontecesse? O que isso significa? O que faz isso acontecer?

Vamos às possibilidades possíveis à altura de uma pragmaticidade razoável até ao que não seja. Afirmando e perguntando, vamos às possíveis hipóteses:

O local do show é inadequado por ser na rua, e por ter um palco tão minúsculo e baixo e não portentoso, nas alturas. Porque não acontece no palco principal do Parque, onde tem acomodações para assistir. Por ser o acesso grátis (daí seu não valor literal) enquanto o acesso ao palco principal do Parque é preciso pagar (porque tem valor literal). Por essa lógica, tudo aquilo que se oferece grátis é porque não tem valor que se faça merecer atenção.

É o espaço onde acontece a obra que determina a sua existência, seu valor, sua qualidade? Prefeririam se fosse no palco principal do Parque para onde milhares de pessoas pagam para se aglomerar em pé para assistir, em regra, aos shows dos cantores sertanejos que vêm de fora, isto é, falo desses produtos e artistas produzidos pela indústria da cultura do Sudeste do país que, justamente por isso, ganham cachês milionários? Esse é o motivo pelo qual as pessoas não olham, não dão atenção, não param para aquele pequeno e baixo palco na beira de uma das vielas de passagem do Parque?

As pessoas não gostam do que ouvem e veem ali naquele palco. As pessoas não conhecem o que ouvem e o que veem ali naquele palco. Como sabê-lo o que ali se apresenta se nem pararam para averiguar do que se trata, mas passando em disparada? Por não conhecer não lhes interessa. Não olharam e pararam porque o que ouviram nos segundos em que passaram não lhes chamou atenção. Tampouco a curiosidade – esse motor do conhecimento – se fez presente naquele instante para o que ali se apresentava.

O que é necessário para chamar atenção? Existir? Ter valor? Mas que existência, que valor?

Não pararam para assistir ao show porque tinham outra programação na Feira que consideram mais importantes. Mas isso em relação a todos os que por ali passaram? Não pararam e não olharam porque não é o que costumam ouvir. Mas todos que por ali passaram? Não é um (a) artista conhecido (a). Não estão cantando uma música de sucesso. Não são famosos. Não tocam nos streamings, nas rádios, nas TVss, nos festivais…

Fiquemos então com a razão do gosto, isto é, não pararam porque, definitivamente, não é o tipo de música que gostam, que sempre gostaram, que aprenderam a gostar. Afinal, as pessoas têm o direito de não gostar. Não se pode obrigar ninguém a gostar do que não gostam.

Mas o que faz uma pessoa – e uma massa de público – gostar de uma coisa e não gostar de outra? Existe um padrão universal a partir do qual se pode afirmar, como no caso coletivamente, o que é e o que não merecedor de gosto e de atenção? Isso se ensina na escola? Onde mais se aprende?

A definição de gosto pressupõe – o que leva à sua constituição – a definição de sentidos – significados – que se dá às coisas (uma obra de arte, por exemplo), e com isso as ideias que determinam o mundo, sua forma de lidar com ele (a definição de obra de arte, por exemplo), ou seja, a sua posição epistemológica.

Nesse passo, a definição do gosto pode ser em grande medida dependente do conhecimento – o que vale dizer também acesso – a respeito do que se gosta. Estamos agora saindo talvez do nível biológico para o cultural. Porque o conhecimento é produto da esfera social e cultural em que é instaurado e circula como obra de quem detém o poder de instaurar e propagar.

Nisso, é de se interpelar: O gosto estético é uma construção social, portanto um fato cultural ou é um fato biológico e até um fato sagrado, metafísico que as pessoas adquirem? Ou a pessoa nasce e morre com ele ou ele é construído, mantido e desenvolvido pelas/nas relações de contato – pelas/nas experiências de viver e ter relações – com as coisas do mundo dos sentidos estéticos que a pessoa vai tendo ao longo da vida, a partir do que ela passa a acessar e a saber?

Nesse sentido é que – pressupondo o gosto como uma construção social, portanto pressupondo o gosto como um dispositivo, quero dizer, como essa coisa – digamos mental – que captura e modela as pessoas de modo a configurar um determinado tipo de cultura e sociedade dadas – portanto de saberes – resta se indagar de que paradigma/padrão/matriz – como um sistema hegemônico de pensamento/saber – de gosto se está falando?

No caso, de um gosto que ignora coletivamente um tipo de manifestação artística e não ignora outra, esta outra pelo contrário, a que(m) é atraído profunda e sedutoramente. Estaríamos aqui falando do mesmo dispositivo que comanda o gosto daquele público que passou em frente ao pequeno palco do Sesc naquela noite no Parque de Exposição? Suponho que sim.

Como um tipo de gosto, esse tão determinante a ponto de nos fazer negar a nós próprios (como não gostar de si e de seus), enquanto comunidade histórica e artística-cultural, para, em seu lugar, endeusar o que lhes é alheio, exatamente esse ser que existe e tem valor, o mesmo que nos carimba de produto sem valor para nos seduzir à condição de mero consumidor e reprodutor de seus produtos.

A questão não se reduz à escolha de gostos, tipos de gostos… em um nível horizontal, mas de seleção vertical em que a escolha de uma expressão elimina a outra. É de hegemonização pela qual uma expressão (ser) torna as demais não-expressão (não-ser).

Se este sistema de conhecimento é o responsável pela determinação do nosso gosto, não seria pertinente saber qual é a sua história e o que ele tem a ver com o poder numa dada existência social e cultural, como a do território acreano em si e em relação com os demais, exercendo ele uma determinante função de dispositivo que nos molda a pensar/viver, estética e politicamente, nesse tempo de agora, dessa determinada maneira, justamente essa do tipo que ignora a existência de outros da mesma comunidade em sua manifestação artística?

Não estaríamos, nesse sentido, imersos em um ethos colonial/colonizante que nos determina, senão condena a uma espécie de autocolonização então imperceptível, que significa, no caso, autonegação cultural que é, à toda prova, política, posto que da esfera do domínio, sobretudo mental das pessoas, das comunidades, dos povos?

Há uma vontade política – forjada pela mentalidade colonial – que de tão material se manifesta, portanto se realiza concretamente, com esse tipo de postura que torna aquela expressão musical como algo inexistente, senão sem valor, senão de valor inferior em relação ao que entendem existir, ter valor, ser de valor superior.

O fato é que a proposição temática da expressão artística vinda do palco não recebe adesão, ou melhor, qualquer disposição auditiva e visual, quiçá dialógica, advinda do outro polo da comunicação, o público, apesar do contexto geocultural comum em que ambos vivem, como comunidade, como sociedade, campos políticos de interação social e cultural no tempo presente vivido no cotidiano da cidade.

Nem ao menos foi possível ver um gesto (sentido) de solidariedade – vazado em manifestações de consideração e respeito – que produzisse ali uma existência mínima, mesmo que subalterna, a justificar e merecer aquela obra ser digna de atenção.

Espero ter sido patente em meu esforço de não querer aqui reduzir o problema a uma simples questão de “gosto” musical dado. Isto aqui é só um exemplo, que considero eloquente, com o qual quero te provocar. O que estou querendo dizer – se já não disse – como questão mais ampla e geral, que é de fundo histórico-estrutural, é que o mesmo que concluo em relação ao porquê, o quê e como se ouve, se pode concluir em relação ao porquê, o quê e como se vê, ao porquê, o quê e como se age, ao porquê, o quê e como se pensa, ao porquê, o quê e como se vive no contexto da colonialidade, isto é, sob o manto da matriz de poder mundial que busca conformar todo sujeito segundo o pressuposto do domínio colonial.

Com isso, suponho estarmos diante de uma forma – talvez irreflexiva – de se comportar culturalmente colonizado. O que pode indicar a formação e formulação do arquétipo colonial de um público/sujeito averso a si. Um público da música acreana que não existe porque se nega a sê-lo. Como uma espécie de antinarciso, na medida em que só acha feio – vale dizer, o que culturalmente não existe ou não tem valor – justamente o que é espelho.

Arquétipo esse objeto da formação histórica-estrutural de natureza colonial, o que vou denominar, em outro texto para tentar melhor detalhar e compreender, como O Modo de Produção da Colonialidade Estética no Acre.

Por fim, se nada disso de que trato aqui passou/passa pela cabeça de cada um dos que se fizeram atravessar na frente do palco, se pode considerar que suas atitudes revelam-se não mais que um gesto maquínico – diante do que acontece como se não acontecesse -– portanto sem reflexividade, que dirá criticidade em relação ao contexto histórico-político-cultural ao qual se encontram inapelavelmente integrados, o que faz com que cumpram o papel determinante, na divisão social do trabalho colonial, como agente da colonialidade.

Nesse passo, isto nos revela como se comporta um ser colonizado também mentalmente numa sociedade colonizada: tal como o que aqui estou categorizando de arquétipo colonial, o agente de sua própria colonização.



João Veras é poeta, músico e escritor acreano. Publicou, entre outras obras, Seringalidade, o estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta, pela editora Valer, 2017.

Logomarca

Deixe seu comentário

VEJA MAIS

banner-728x90-anuncie