AQUIRY: UMA CIVILIZAÇÃO NA FLORESTA

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Geoglifos colocam Acre no centro de estudos sobre sociedades avançadas na Amazônia

Desenhos geométricos esculpidos no coração da floresta atestam a existência do que se chama a Civilização Aquiry (Foto: Diego Lourenço Gurgel)




De centros espirituais dos povos indígenas e de produção de alimentos, geoglifos ainda permanecem um grande mistério para a ciência. Mas de uma coisa os pesquisadores já concluem: eles são a prova da existência de uma avançada e complexa civilização encravada no meio da Floresta Amazônica.




Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco


O aprofundamento das pesquisas científicas sobre os desenhos geométricos (geoglifos) encontrados no interflúvio dos rios Acre, Iquiry e Abunã – na tríplice divisa Amacro (Amazonas, Acre, Rondônia) – sugerem que a ocupação humana nesta porção da Amazônia remonta há 10 mil anos, e que uma grande e complexa civilização se desenvolveu aqui: a Civilização Aquiry. De acordo com os estudos conduzidos por paleontólogos, arqueólogos e historiadores, os primeiros geoglifos podem ter sido “desenhados” no meio da floresta entre dois mil e dois mil e quinhentos anos atrás. O primeiro deles, por sinal, foi construído 700 anos antes de Cristo, conforme apontam as análises.

Apesar de muitos avanços já terem ocorrido ao longo de duas décadas de estudos, a ciência ainda tem muitas perguntas a responder sobre os geoglifos: por que foram construídos? Eram aldeias, cidades, centro de agricultura? Qual sua utilidade: para cerimônias religiosas ou Teriam estratégia militar de defesa? Aos poucos os cientistas vão caminhando rumo a essas respostas.

E o caminho podem ser as estradas que conectam um geoglifo ao outro, uma descoberta recente da ciência. Também chamadas de “varadouros milenares”, as estradas passaram a ser outro centro das atenções dos pesquisadores, e revelam, ainda mais, toda a complexidade sobre a Civilização Aquiry.

“Estradas parecem ter surgido há mais tempo no Acre do que em outras partes da Amazônia.” Estas e muitas novas informações sobre os estudos dos geoglifos estão no livro “Amazônia: Os Geoglifos e a Civilização Aquiry”, organizado pelo paleontólogo Alceu Ranzi e o arqueólogo finlandês Martti Pãrssinen.

“O Acre está no centro de um glorioso e interessante debate mundial, em que o centro é a Amazônia. Mas, na Amazônia, o centro realmente é o Acre. As regiões que hoje formam o Acre e Rondônia se desenvolveram há 10 mil anos, com uma agricultura que se espalhou por toda a Amazônia”, diz Alceu Ranzi, em entrevista ao Varadouro.

E o Acre também foi o centro do início dos estudos científicos sobre os geoglifos, a partir da descoberta dos primeiros desenhos geométricos na zona rural de Rio Branco. Liderados por Alceu Ranzi, pesquisadores da Universidade Federal do Acre (Ufac) passaram a se dedicar ao tema. Muitas das primeiras imagens que rodam o mundo foram feitas por repórteres-fotográficos acreanos.

“Essas achados quebram o paradigma de que na Amazônia não existiram cidades antes da chegada dos europeus. Cientistas de renome, usando técnicas avançadas, confirmam a hipótese de que na região do Acre e Amazonas, viveram milhares de pessoas, membros da denominada Civilização Aquiry, os construtores de geoglifos”, explica Alceu Ranzi.

Na semana passada, Varadouro publicou reportagem expondo as ameaças e as pressões sofridas pelo sítio arqueológico com a consolidação da grande monocultura da soja nas propriedades rurais onde estão os geoglifos. Ameaças que colocam em risco a preservação dos vestígios de uma cultura milenar, relacionada com a própria história do Acre e suas populações originárias.


kymyrury: a relação com o sagrado

O nome Civilização Aquiry é uma referência ao antigo nome do rio Acre. Aquiry era a forma como os Apurinã (Pupykary) se referiam ao manancial, e significa o rio dos jacarés. Para os Apurinã, os geoglifos são muitos mais do que simples desenhos geométricos feitos no meio da floresta.

Eles representam toda a ancestralidade espiritual do povo. Nas crenças Apurinã, os geoglifos seriam um lugar sagrado, um campo de natureza chamado kymyrury. Nele, apenas os pajés (kusanaty) podem ter acesso. É de dentro do kymyrury onde os grandes espíritos Apurinã olham e protegem todo o povo e a floresta.

“Os kymyrury são partes do saber ontológico Apurina e, para tanto, são locais esotéricos que apresentam dicotomias condescendentes e fundamentais, pois, ao mesmo tempo em que são vistos por nós como lugares respeitados – lugares peculiares e intocáveis, que não podem jamais serem mexidos, transformados e que seguem um principal cultural -, são também fontes que alimentam e nutrem os corpos, mentes e espíritos dos Apurinã, porque é de lá que vem a cura, o alimento e a força para continuarmos existindo”, diz trecho de artigo escrito por Ywmuniry, o Francisco Apurinã, doutor em Antropologia Social, publicado no livro.

Os estudos sobre os geoglifos avançam não apenas a partir de técnicas científicas avançadas da arqueologia ou da paleontologia. Neste processo, o conhecimento ancestral e tradicional dos povos indígenas é essencial para compreender todos os mistérios que os cercam. Além dos Apurinã, a sabedoria dos Manxineru também é levada em consideração pelos estudiosos.


Retangulares, quadrados, circulares: geoglifos guardam mistérios de civilização milenar na Amazônia (Foto: Diego Lourenço Gurgel)



Essa possível relação entre geoglifos e a ancestralidade espiritual dos povos indígenas é reforçada pelo artigo da antropóloga Pirjo Kristiina Virtanen, da Universidade de Helsinque. De acordo com ela, “os desenhos geométricos apresentam uma língua própria e mostram que a terra e o espaço foram detalhadamente planejados e usados.”

“As formas de geoglifos circulares, retangulares, semiretangulares, entre outras, estão intimamente relacionadas aos valores e aos espaços cerimoniais pré-coloniais, conectadas à ideia de guardar, de respeitar, de fortalecer, de poder e de reprodução”, completa Virtanen. Para a antropóloga, os desenhos “provam que os povos indígenas das terras baixas da América do Sul também foram filosoficamente, politicamente e economicamente organizados de maneira bem sofisticada”.

Em outro ponto do livro, os cientistas escrevem: “De maneira geral, a civilização Aquiry era provavelmente multiétnica, mas, para partilhar uma visão de mundo, um idioma em comum era necessário. Portanto, uma vez que os primeiros contatos apontam para a tradição cultural Aruaque, é possível que certa língua Aruaque tenha sido originalmente usada como língua franca para comunicação transcultural. Supõe-se até que a origem provável do Aruaque esteja na parte superior do Rio Purus.”


Terras férteis

O tipo de terreno plano onde os geoglifos estão localizados sinalizam que eles também podem ter sido usados para a agricultura. Entre os muitos itens descobertos até aqui pelas escavações, os pesquisadores encontraram restos orgânicos de cozinha, como ossos de animais, grãos de milho, semente de abóboras, cascas de castanhas, pupunha e frutos de outras palmeiras.

Não por acaso, mais de 2.500 anos depois, estas são as terras ocupadas (e cobiçadas) pela agropecuária ao sul da Amazônia ocidental. Ao, provavelmente, concentrar seu sistema produtivo dentro destas diferentes formas geométricas, os primeiros habitantes da Amazônia acreana fariam uma relação com a fertilidade.

Outro ponto a chamar a atenção dos pesquisadores é onde a Civilização Aquiry se constituiu: no meio da floresta, longe das margens dos rios, quebrando o paradigma de que as sociedades amazônicas se desenvolveram apenas perto dos mananciais. Isso não quer dizer que não existiam outras fontes por perto, como igarapés e vertentes. Afinal de contas, nenhuma sociedade pode se desenvolver sem água.


Engenharia ancestral


(Fotografia: Robert Walker)


Entre as muitas imagens aéreas dos geoglifos, o paleontólogo Alceu Ranzi enviou para Varadouro esta acima, feita pelo doutor em antropologia Robert S. Walker, da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos. O desenho está dentro de uma fazenda em Acrelândia. Com uma área de 200 metros de diâmetro, ele “demonstra o domínio completo da geometria pelos seus construtores.”

“Esse desenho, um círculo duplo perfeito, mostra a capacidade dos povos originários de construir monumentos, com grande demanda de mão de obra, necessária para movimentar milhares de metros cúbicos de terra. Deveriam existir razões extremamente importantes para a construção dos geoglifos, algo que ainda os cientistas não conseguiram desvendar totalmente”, ressalta Ranzi.

A região onde habitavam nossos antepassados, continua o cientista, foi a casa de milhares de indígenas, e os geoglifos são a prova da existência da Civilização Aquiry. O Aquiry que passou a ser chamado de Acre pelos seringueiros nordestinos que aqui chegaram entre o fim do século 19 e o começo do 20. São mais de 100 anos de formação histórica e política do Acre.

Mas os geoglifos mostram que a nossa história é muito mais antiga, diversa e complexa. Há 10 mil anos, os “primeiros acreanos” já perambulavam por estas terras e varadouros – e deixaram suas marcas para que, hoje, soubéssemos de suas existências. Proteger os geoglifos é proteger a memória do Acre e da Civilização Aquiry. Muito ainda temos a aprender sobre eles – e com eles.


O arqueólogo finlandês Martti Pãrssinen (esq.) e o paleontólogo Alceu Ranzi, estudiosos pioneiros dos geoglifos do Acre (Foto: Cedida)






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