Amor que começa com a letra “D”

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Não sei se os últimos dias do inverno acreano estão tão intensos quanto o calor, ou eu é quem domino a arte da procrastinação. Só sei que tenho trocado as leituras do doutorado pelo bailado simétrico das saias das mulheres Noke K’oi em perfeita harmonia aos Txanãs e seus cânticos tradicionais na língua. Os sons de pisadas em folhas secas e o brilho dos vagalumes na mata escura têm gritado mais alto por mim do que as correções do texto da qualificação. É duro retomar a rotina depois de uma semana com três feriados seguidos. Como diria a chilena mais querida e saudosa do Juruá, nossa Ximena Catalán: um lugar com tanto feriado só pode ser o paraíso.

Retomo as obrigações irremediáveis espantada com o frenesi dos automóveis e das inúmeras obras que Cruzeiro do Sul agora ostenta. Eu me sinto no movimento oposto ao da cidade e me conto a história de que a semana vai passar rápido e eu logo vou poder estar mais pertinho da mata de novo.

Talvez em outro momento me emaranhasse na culpa de me sentir lenta, preguiçosa, mas já entendi que é difícil retomar as trincheiras discursivas dos circuitos da violência quando a gente se encontra na frequência do balé que as andorinhas fazem pela cidade quando o sol vai se pondo e a boquinha da noite já abre sorriso. E é por isso que hoje eu escolho me demorar aqui nesta sensação e dedico este texto ao amor entre duas pessoas que, no próximo sábado, 25 de novembro, celebrarão a decisão de percorrer os varadouros da vida a dois: Débora e Demirius vão casar! (De novo! Risos).

Fui convidada para ser uma das madrinhas dessa união, e eu, que não sei quase nada sobre o que é viver um casamento, me vejo honrada e cheia de alegria por essa missão. Posso não saber dos mistérios desse varadouro, mas sei do carinho e admiração que sinto por esses cruzeirenses que, como muitos, me fazem sentir que esta fortalezense tem um lar aqui.

Nessa experiência migratória, descobri que, para se criar um lar, ter bons motivos para sair de casa também se faz necessário. E esse casal certamente me promove isso. Estar entre eles é poder partilhar leveza, muitos risos e a sensação de que a vida está só começando, que o fim do mundo é apenas um ponto de vista e que é possível construir coisas fantásticas se a gente faz que nem passarinho e voa em bando.

E por falar em voar, foi desde os ares que Demirius pediu Débora em casamento. Voando de parapente, ao pôr do sol, acompanhado da faixa: “Débora, casa comigo?”. E eles já o fizeram sob as leis dos homens, foram um dos 500 casais que celebraram matrimônio coletivo na ExpoAcre Juruá de 2023 no bojo do Projeto Cidadão do Tribunal de Justiça.

Casar, como tudo na sociedade capitalista, demanda dinheiro. E essa foi a oportunidade que esses 500 casais juruaenses encontraram de dar mais esse passo na vida com significativa redução de custos. Débora conta que foi emocionante casar assim, entre tantas pessoas imersas em sua própria felicidade. Aquele tipo de felicidade que marca alguns começos. O tipo de felicidade humana que desafia a matemática e se multiplica quando é dividida. Assim é a força do coletivo.


O casal Débora e Demirius: pedido de casamento nas alturas




Débora foi estudante do curso em que dou aula. Em uma das primeiras vezes que conversamos, ela logo me falou do namorado: “A senhora precisa conhecê-lo”. Costumo ter um ou os dois pés atrás quando conheço novos homens – ossos do ofício – mas Débora falou de um jeito que me deu vontade imediata de conhecê-lo, que até me surpreendi.

Eu lembro dela assim na graduação: olhos e fala doces, curiosidade aguçada e análises certeiras. Ainda vejo tudo isso nela, mas agora também vejo olhar e fala firmes, generosidade em partilhar o que sabe e compromisso para o desafio de construir a vida em coletivo.
Desde que tivemos essa conversa em que ela mencionou seu namorado, no ônibus voltando da Ufac, ainda demoraria para que eu pudesse conhecê-lo. Tivemos uma pandemia e desencontros no meio, mas sou grata a esta Terra Astral que nos reaproximou e me deu a oportunidade de não apenas conhecer, mas conviver com Demirius.

A primeira impressão, é claro, foi seu bom humor, uma das características que eu mais gosto nas pessoas. Quem convive sabe, Demirius é engraçado, diverte todo mundo, mas eu gostei mesmo foi de conhecer o Demirius do corre, que se preocupa com o bem-estar das pessoas, que toma a frente das tarefas que precisam ser feitas para que a vida possa fluir.

Saber que essa é a pessoa que Débora escolheu para dividir o cotidiano é algo que me traz uma alegria tão imensa que eu nem sei direito mensurar em palavras e por isso venho aqui, no território que me é mais familiar, o da escrita, para dizer que a felicidade deles compõe a minha. Que sei que vai ser uma festa linda, em um ninho deveras especial, onde outros casamentos de pessoas igualmente queridas se realizaram.

Uma nova família cruzeirense se inicia e eu desejo que vocês, Débora e Demirius, recordem-se sempre de como se sentiram nos primeiros momentos do desabrochar do apaixonamento e desejo também que descubram novas e poderosas formas de amarem um ao outro. Que vocês cresçam e se firmem cada vez mais enquanto casal, enquanto individualidades e enquanto irmandade. Mário Quintana diz que o amor tem de acontecer baixinho para não perturbar os passarinhos, mas digo ao poeta que todos os passarinhos estarão em festa no próximo sábado. E digo, enfim: viva o amor!


Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.

leonisia.mouraf@gmail.com
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