Fabio Pontes
dos Varadouros de Rio Branco
O DESMONTE das políticas ambientais promovido em sintonia entre os governos de Gladson Cameli (PP), no Acre, e de Jair Bolsonaro (PL), no plano nacional, levou o estado a apresentar níveis recordes tanto no registro de áreas desmatadas, quanto no focos de queimadas ao longo dos últimos quatro anos. A partir de 2019, com a chegada do atual governador ao poder, o Acre apresentou o que se chama de “ponto de virada” nos resultados de suas políticas de enfrentamento aos crimes ambientais. Se até aquele ano havia certo controle do desmatamento e do fogo, a partir de então a porteira foi aberta, e a boiada passou descontrolada. O ano de 2022, por exemplo, foi o pior no registro de focos de queimada, bem como de “cicatrizes do fogo” – ou seja, o rastro de destruição deixado pelas chamas.
É o que aponta o “Relatório Executivo – Queimadas 2022 no Estado do Acre”, elaborado pelo Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (Labgama), do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul, da Universidade Federal do Acre (Ufac). Para agravar a situação, a intensificação das mudanças climáticas – com o atraso no início do período chuvoso e a intensificação das secas com elevadas temperaturas – provoca o aumento dos incêndios florestais no Acre. Antes restrito a áreas agrícolas, o fogo passou a entrar, com mais frequência, dentro da floresta.
Os incêndios florestais passaram a ser observados até mesmo no Alto Rio Juruá, região do Acre que ainda mantém intacta uma imensa área do bioma amazônico, e que, em tese, não enfrentaria o problema por conta da elevada umidade típica destas regiões tropicais.
“O fogo está entrando para a floresta, e mesmo sem ser aqueles anos tipicamente secos, de eventos climáticos extremos. Está entrando na floresta e não está sendo só aquela queimada de borda de floresta. Antes o fogo entrava alguns metros, mas depois conseguiu se extinguir por conta da umidade”, diz Sonaira Silva, pesquisadora coordenadora do Labgama.
E ela alerta: para 2023, as projeções apontam um cenário nada favorável diante de um novo fenômeno climático extremo, ocasionado pelo aquecimento das águas do oceano Pacífico, o El Niño. Para ela, é necessário que as autoridades se antecipem às ações de enfrentamento às queimadas, sobretudo na educação ambiental da população. Os riscos são da ocorrência de grandes incêndios florestais, como os ocorridos na Resex Chico Mendes, em 2005. Sonaira ressalta: depois que o fogo entra na floresta, o combate é extremamente difícil.
Leia a entrevista concedida por ela ao Varadouro
Varadouro: Findado o governo Bolsonaro, qual foi o rastro do fogo na Amazônia acreana nos últimos quatro anos?
Sonaira: Foi terrível. Com certeza terrível. Se a gente olhar os dados históricos, tanto de desmatamento quanto de queimadas, parece que 2019 foi um ponto de virada surpreendente. Nós chegamos a patamares nunca vistos, e que não consegue baixar. Mesmo ano passado, em meio ao momento de transição política, a gente não vê redução de nenhum dos dois, muito pelo contrário. Em 2022 o desmatamento aumentou, nem tanto, mas aumentou alguns hectares. Só que em relação ao fogo foi muito pior. As queimadas aumentaram mais de 30% em relação a 2021. O ano passado foi o pior desde 2005 (ano de seca extrema). Os últimos quatro anos deixaram um rastro muito ruim para o Acre, muita destruição. Em 2022 o ambiente estava tão frágil que registramos muitos incêndios florestais. Tivemos muitos danos, o nível de queimadas estava alto, mais de 200 mil hectares. Nós até podemos dizer que os chamados pontos de virada mais locais podem estar ocorrendo já no Acre. A gente teve incêndios florestais de mais de 600 hectares dentro da [Resex] Chico Mendes e de mais de 400 hectares em Porto Walter. Essa é uma região muito isolada, que não tem fragmentação. Isso mostra que a questão do clima piora a situação do descontrole ambiental.
V: Sim, nós estamos falando de uma região do Acre com bastante floresta preservada, com muita umidade e chuvas que é o Vale do Juruá, diferente da bacia do rio Acre, quase toda já desmatada.
Sonaira: Exatamente. Aqui a gente ainda acorda com aquela neblina de água. Isso é comum em todo o estado, mas aqui é bem mais intenso. Mas, mesmo assim, ano passado, provavelmente por causa das altas temperaturas, uma onda de calor muito forte, tivemos este incêndio florestal. Enfim, o clima está mudando e a floresta já não está mais sendo aquela barreira que ela era. Ano passado foram mais de 322 mil hectares de áreas queimadas. Isso é quase quatro vezes o total de floresta desmatada no Acre ano passado.
V: Ou seja, as queimadas feitas para limpar roçados, pastos, áreas recém-desmatadas estão entrando na floresta?
Sonaira: Está entrando para a floresta, e mesmo sem ser aqueles anos tipicamente secos, de eventos climáticos extremos. Está entrando na floresta e não está sendo só aquela queimada de borda de floresta. Antes o fogo entrava alguns metros, mas depois conseguiu se extinguir por conta da umidade. Agora a gente está vendo que a floresta não está funcionando como barreira, e o fogo está entrando. Tivemos um grande incêndio dentro da Chico Mendes que detectamos e acionamos ICMBio, Bombeiros. Eles fizeram um trabalho de combate mas o fogo não foi extinto. Só acabou após uma chuva. Isso é muito preocupante porque depois que ele passa os limites de borda, ultrapassa uns 10 metros, é muito difícil de combater. As ações de combate ao fogo acabam fracassando.
V: Em 2005 a Resex Chico Mendes foi severamente impactada por incêndios florestais. O trabalho dos bombeiros se mostrava em vão. Aquele era um ano de evento climático extremo. Para 2023 também temos previsões de uma seca severa por causa do El Niño. Qual cenário nós temos?
Sonaria: Realmente as projeções não são muito boas. O último ciclo de inverno [chuvas amazônicas] demorou muito para chegar. Em dezembro a gente ainda tinha registros de fogo. Temos um maio chuvoso, o que é bom. A previsão é que os El Niños ocorram no mês de dezembro, e se estendam até a metade do ano seguinte. Mas esse ano temos projeções de que o El Niño já pode estar se formando. No Acre as consquências do fenômeno preocupam, mas nem tanto. Mas se este El Niño for tão forte quanto o de 2016, quando tivemos quase 30 mil hectares de incêndios florestais e 200 mil de queimadas agrícolas, e não tivermos uma ação de combate e de educação, a gente pode esperar muito mais fumaça do que o ano passado, muito mais áreas queimadas e de incêndios florestais. Isso é o mais preocupante, pois o fogo vai matar um monte de árvores, muitos animais.
V: Quais são os impactos do fogo para o interior da floresta?
Sonaira: A gente ainda não tem uma estimativa de quanto de fauna nós estamos perdendo, mas em termos de flora, a partir de estudos nas áreas de floresta queimadas em 2005, 2010 e 2016, é uma estimativa de 30% de perda, de mortalidade das espécies vegetais. Algumas florestas, como essas aqui da região do Juruá, que não são tão adaptadas ao fogo, e essa é a nossa preocupação, ficam muito impactadas, incapaz de regenerar. Uma dessas áreas pegou fogo em 2010, e ela simplesmente desapareceu. Virou um cemitério de árvores. Dependendo do tipo de floresta onde o fogo entra, a gente pode ter de 30% a 100% de perda de árvores.
V: Quais são as suas recomendações aos órgãos de governo diante do cenário de queimadas para 2023?
Sonaira: Primeiro que é para evitar ao máximo o fogo, o desmatamento ilegal. Mas o ponto que eu gostaria de destacar é a de campanhas sobre a conscientização do uso do fogo. Se o agricultor realmente precisa queimar, espera dar uma chuva, não faça naquele momento mais quente do verão. Espera para queimar ali mais pra perto do fim do verão. Mesmo se ele for deixar pra usar o fogo naquele momento crítico da seca, no famoso 7 de Setembro, no mês de setembro, é bastante complicado pois temos observado que o período de chuvas tem começado cada vez mais tarde. Este fogo feito na época mais crítica vai sair do controle, vai incendiar a área do vizinho. O risco de o fogo sair do controle e entrar na floresta é muito grande. E quanto mais esse fogo acontecer longe do período de chuvas, mais complicado será a ação de combate. Então é preciso campanhas educativas que realmente alcancem as pessoas, não ficar só nas formas convencionais. É conversar com o produtor.
V: Há alguma perspectiva de alento para 2023 com a retomada da política ambiental brasileira pelo governo Lula, após quatro anos de devastaçao sob Bolsonaro? Afinal de contas, o Ibama voltou…
Sonaira: Eu acho que vai ser sim melhor, mas ainda será muito complicado. São tantos problemas acumulados. Eles [órgãos federais] se organizando, tendo um planejando melhor, com ações de combate, podem amenizar os danos. Mas o que foi feito no passado, muita coisa se perpetua. Houve a mudança no plano federal, mas há as instâncias do governo estadual, das prefeituras, nas câmaras municipais, deputados estaduais. Nós sabemos que muitos deles ainda incentivam práticas ilegais, e isso certamente vai continuar tendo consequências importantes. Eu tenho um otimismo, mas ainda vai ser difícil. Eles [governo federal] têm que fazer um trabalho muito forte com os estados e os municípios. Ficar só na esfera federal acho que não vai funcionar.
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