AMACRO: UMA ZONA DE CONFLITOS

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O cenário de disputas por terra que levam a tentativas de homicídio e tortura na Amazônia

Trecho onde BR-364 encontra a BR-317 e conecta as divisas do Amazonas, Acre e Rondônia, a zona Amacro (Foto: Gleilson Miranda)



Reportagem revela o abandono do Estado nas áreas próximas às principais rodovias que conectam Amazonas e Acre, parte da Amacro. Posseiros e fazendeiros disputam áreas da União, levando a conflitos sangrentos e a um aumento da grilagem e do desmatamento.



Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco/Boca do Acre
Fred Santana
dos varadouros de Manaus (Do Portal Vocativo)


O prédio abandonado às margens da estrada de terra batida aos poucos padece com a deterioração causada pelo tempo. Ali, algum dia já funcionou o Posto Fiscal da Secretaria da Fazenda (Sefaz) do Amazonas. A construção é a única presença do Estado do lado amazonense. Do lado acreano, no trecho pavimentado da rodovia, há também um posto fiscal. Uma minúscula bandeira no mastro sinaliza que ali é solo acreano. Assim como do lado de lá, a sensação é de abandono, quase um território de ninguém.

O ponto mais movimentado é a Lanchonete do Passarinho, uma opção de parada de quem viaja entre a capital acreana Rio Branco e o município amazonense de Boca do Acre, separados por 230 km pela BR-317. Pouco mais de 90 quilômetros antes da divisa entre os dois estados, está a BR-364, que liga Rio Branco a Porto Velho, em Rondônia. O entroncamento onde as duas rodovias federais se encontram é conhecido como Quatro Bocas.

Muitos consideram esse ponto como o coração da Amacro, a zona que abrange 45 milhões de hectares de 32 municípios na divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia e ocupa 10% do bioma amazônico. São as rodovias BR-317 e BR-364 que conectam os três estados a terras cobiçadas pelo agronegócio. Não por acaso, a região passou a ser definida como a nova fronteira do desmatamento da Amazônia nos últimos anos. E também uma região historicamente marcada por intensas disputas por terra entre pequenos agricultores e grandes latifundiários.

Enquanto isso, segundo os dados do relatório Conflitos no Campo 2023, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano passado, a Amacro registrou oito assassinatos em disputas por terra, dos 31 ocorridos em todo o país. Desses, cinco foram cometidos por grileiros. No Acre, a capital Rio Branco e Acrelândia são os municípios com os maiores registros de conflitos fundiários catalogados pela CPT ao longo de 2023. Já no Amazonas, Boca do Acre é o município com maior ocorrência de disputas e conflitos por terra. Em todo o Amazonas, foram registrados 76 casos.

Posto da Sefaz Amazonas em meio à estrada de terra batida na divisa com o Acre; abandono do prédio reflete a ausência do Estado na região (Foto: Gleilson Miranda)


Os conflitos violentos além do crimes ambientais

Como pano de fundo dos crimes ambientais — a Amacro representa, sozinha, 80% do desmatamento dos três estados —, estão conflitos fundiários violentos que resultam em ataques a residências de moradores, tentativas de homicídio e até tortura.

A reportagem percorreu os 230 km da BR-317, entre Rio Branco e Boca do Acre, e conversou com posseiros que buscam recuperar ou angariar espaço para produzir em meio ao avanço da monocultura de soja e da grilagem de terras públicas.

“[Os pistoleiros] pegaram o pai de um amigo nosso e o torturaram das sete da manhã até uma hora da tarde, dizendo que tinham matado todo mundo, que tinham tocado fogo no barraco e que, se ele quisesse procurar o corpo do filho dele, podia ir ou então podia voltar pra casa dele”, conta Mizael Magalhães de Araújo, posseiro, sobre uma das disputas ocorridas na região. Junto com outros posseiros que reivindicam a transformação da área num assentamento do Incra, ele mora na Vila Caquetá, em Porto do Acre, a 80 km de Rio Branco. Segundo ele, o homem sequestrado também foi sufocado com sacos plásticos.


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A reportagem encontrou diferentes lideranças da região na residência de um dos posseiros. Entre eles, estavam os atingidos pelos chumbos de uma escopeta calibre 12, que os feriu quando foram expulsos por pistoleiros do interior da Fazenda Fusão, localizada entre Lábrea, no Amazonas, e Senador Guiomard, no Acre, em maio deste ano. Nas pernas e na altura dos olhos de um deles, ainda era possível ver as marcas dos tiros. Desde aquele episódio, eles deixaram de realizar a retomada da ocupação.

“Faz uns dois anos, dois anos e meio, que a gente decidiu ocupar as terras, fazer um assentamento lá. Desde o começo, quando a gente estava fazendo o barraco, eles [pistoleiros] já queimavam. A gente ia lá, passava dois, três dias, às vezes até quatro, e era obrigado a sair porque eles iam lá e queimavam o barraco”, afirma Edgeberson José Alves, posseiro.

Empurra-empurra institucional: Mizael Magalhães de Araújo, posseiro, com documento de denúncia feita à Polícia Federal (Foto: Gleilson Miranda)


“Se a gente saísse para trabalhar nas nossas terras um pouquinho, quando voltava, estava tudo queimado. Furavam as panelas, atiravam nas panelas, nos barracos. Aí, nos últimos meses, resolveram atirar na gente’, completa.

O conflito é vizinho ao acampamento Marielle Franco, também no território de Lábrea. Desde 2019 ao menos 200 famílias buscam serem assentadas pelo Incra em uma área aos fundos da Fazenda Palotina. O possível proprietário da fazenda afirma que a área ocupada está nos limites de sua propriedade, e tenta expulsar os agricultores a todo custo. No começo de março, quatro agricultores foram torturados por homens vestidos de preto que se identificavam como policiais do Bope.

A entrada da Fazenda Palotina, em Lábrea, palco de um dos mais graves conflitos por terra no sul do Amazonas (Foto: Gleilson Miranda)


A concentração de terras que gera os conflitos

Na rodovia BR-317, em direção a Boca do Acre e ainda em território acreano, encontra-se o município de Porto Acre à esquerda. Já à direita, basta cruzar a estrada para chegar a Senador Guiomard, mais conhecido por aqui como o Quinari. No mesmo trajeto, ao entrar no Amazonas, está Boca do Acre à esquerda e, poucos metros à frente, Lábrea. Independentemente dos limites dos municípios, há grandes propriedades rurais — verdadeiros latifúndios que ocupam ambos os lados da rodovia e se estendem pelos dois estados.

A rodovia corta ao meio a Terra Indígena Boca do Acre, formada por aldeias do povo Apurinã. Um território bastante pressionado pelo avanço do desmatamento.

Essa concentração de terras cria as disputas violentas. Famílias perderam o emprego com a chegada da soja e agora buscam um pedaço de terra para viver. Eles passam a ocupar áreas remanescentes de floresta e exigem que sejam reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como assentamentos.

Cosme Capistrano da Silva, líder da CPT em Boca do Acre, afirma que muitas famílias trabalhavam anteriormente quebrando castanha nas áreas de mata dos municípios. Desde 2022, elas decidiram ocupar essas terras e dividir os lotes entre si. Boa parte dessas áreas são de propriedade da União, ou seja, não tiveram uma destinação dada pelo governo. “Em 2022, eles decidiram ocupar essa área. Foi aí que começou os tiroteios, as ameaças de morte, a tortura.”

Expansão da monocultura da soja pressiona especulação fundiária na região, e empurra a pecuária para novas áreas desmatadas e griladas (Foto: Gleilson Miranda)


“Fazendas que antes tinham 50 funcionários, hoje, têm cinco, no máximo. Foram trocados pelas máquinas. Onde antes elas quebravam a castanha, o fazendeiro chega e expulsa e diz ‘isso é meu’”, afirma o líder da CPT.

Assim, os grandes e novos fazendeiros afirmam que os posseiros estão invadindo as reservas legais de suas propriedades e, por isso, os expulsam. Aqueles que não aguardam uma decisão judicial para seus pedidos de reintegração de posse recorrem a pistoleiros e jagunços para fazer a “segurança armada” das fazendas e a retirada das famílias dos agricultores com violência.

“Nós temos um Estado ausente. Nós não temos reforma agrária na nossa região. O único projeto de assentamento foi na década de 1980. Em toda essa região, só temos dois assentamentos, o PAE [Projeto de Assentamento Agroextrativista] Monte e o PAE Antimary, que pega Boca do Acre e Lábrea. De lá pra cá, ninguém mais foi assentado”, diz Cosme.

“Não é que o pessoal seja invasor, é porque eles não têm mais espaço pra morar, pra viver. O governo não área específica pra dizer aqui são lotes pra reforma agrária. Ou o povo entra na marra, ou nunca vai ter terra”, afirma o líder comunitário.

Cosme Capistrano, liderança da CPT: com grandes latifúndios e sem reforma agrária, agricultores fazem ocupações “na marra”; e são expulsos “na bala” (Foto: Gleilson Miranda)


Em 24 de setembro, a Justiça Federal condenou quatro pessoas por danos ambientais, florestais e climáticos ocasionados pelo desmatamento ilícito em áreas do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary em Boca do Acre (AM), a 1.555 km da capital Manaus. Os valores a serem pagos pelos condenados em indenizações somam mais de R$ 11 milhões.

A área de desmatamento consolidado totalizava 13.921,98 hectares até 2018, com diversos registros de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos ao PAE Antimary. Além da indenização, os réus terão a obrigação de recuperar a região degradada. “É a primeira vez que réus são sentenciados com quantificação monetária do dano por emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e essa é mais uma maneira de combater essa prática ilegal”, destacou o procurador da República Rafael da Silva Rocha.

O Incra, a corrupção e milhões em prejuízo

Enquanto isso, o Incra do Amazonas enfrenta uma série de denúncias de corrupção, que vão de desvio de recursos públicos a fraudes em contratos. Em abril de 2021, a Operação Ínvio, realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em conjunto com a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF), apontou o superfaturamento de serviços de recuperação de estradas vicinais, com prejuízo estimado em R$ 4,7 milhões. O foco das investigações está em contratos firmados para serviços que não foram devidamente executados.

Em agosto de 2023, iniciou-se a Operação Xingu, deflagrada pela PF para reprimir diversos crimes ambientais praticados na divisa entre Acre e Amazonas. Foi descoberto um esquema envolvendo um grileiro, dois pecuaristas e um técnico de georreferenciamento, responsável pelo esquentamento de imóveis rurais junto ao Incra e ao CAR.

A investigação foi iniciada a partir de denúncias de conflito agrário e desmatamento para exploração de gado, ocorridos entre os municípios de Boca do Acre e Lábrea, que foram confirmados por diligências de campo e análise de imagens de satélite. A organização criminosa foi responsável por destruir cerca de 800 hectares de mata nativa amazônica, em 2022, causando um prejuízo ao meio ambiente calculado em mais de R$ 17 milhões.


Como resultado dessas duas operações, foram cumpridos quatro mandados de prisão preventiva, 25 de busca e apreensão e seis de proibição de acesso e frequência à Floresta Estadual (FES) do Antimary, no município acreano de Sena Madureira. Entre os presos, está um dos condenados pelo assassinato da missionária americana Dorothy Stang, morta em 2005.

Já em junho deste ano, a Polícia Federal realizou a Operação Brazilian Cricket para reprimir uma organização criminosa que atuava no sul do Amazonas. O grupo, segundo a investigação, é composto por uma família de grileiros, servidores do Incra e outros operadores, responsáveis pela prática de fraudes em cartórios e em sistemas informatizados da União, além de estelionato e lavagem de dinheiro.

Para Mizael Magalhães de Araújo, posseiro, essa sobreposição de territórios entre Acre e Amazonas provoca um ambiente de empurra-empurra de responsabilidades entre as instituições. “A gente vai na Polícia Civil de Senador Guiomard registrar ocorrência e eles dizem que a área é do Amazonas. Por isso, a gente tem que ir na delegacia de Boca do Acre. Aí a gente vai lá e eles falam que o caso é da Polícia Federal em Rio Branco. A gente fica ‘pra lá e pra cá’, sem saber a quem recorrer”, diz.

Onde o Acre encontra o Purus

Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Boca do Acre conta com uma população estimada de 38.246 pessoas. Por ser a região onde está localizada a foz (boca) do rio Acre, o município recebeu esse nome. É ali onde o manancial deságua no rio Purus e segue sua trajetória Amazonas adentro. Por causa do nome, muita gente acredita que o município está em território acreano, mas ele pertence ao estado vizinho, o Amazonas.

No centro da cidade ficam os prédios da administração pública municipal, estadual e federal. Um deles é o do Incra. Para quem não é da cidade, é quase impossível identificar o prédio. A reportagem só o localizou por conta do veículo oficial da autarquia estacionado na entrada. Num canto, uma placa já bastante enferrujada e os letreiros quase apagados indicavam que ali era o prédio do órgão federal responsável por amenizar os impactos dos conflitos fundiários no sul do Amazonas.

KM 90 da BR-317, onde AC e AM se encontram; com ausência do Estado, região se caracteriza como um “faroeste amazônico”, onde a pistolagem impõe a vontade dos poderosos (Foto: Gleilson Miranda)

Um pouco mais à frente está o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), cuja missão é servir de base para as ações de proteção das unidades de conservação federais do entorno. Entre elas a Reserva Extrativista Arapixi e a Floresta Nacional do Iquiri. Desde 2019, as duas UCs são alvos frequentes de invasões para fins de grilagem. E uma boa parte destas invasões têm como ponto de partida cidades e vilarejos não só do Amazonas, mas também do Acre e de Rondônia.

As duas áreas protegidas passaram a ser alvos frequentes de operações daa Polícia Federal e do Ibama para coibir as invasões. As forças federais de repressão aos crimes ambientais na região Amacro estão sediadas em Rio Branco, de onde saem as operações.

A posição geográfica da cidade de Boca do Acre possibilita que ela seja uma das mais impactadas pelas cheias extremas do rio Acre. Quando as águas do Purus sobem, a situação fica ainda mais complexa. Na parte baixa da cidade localizada bem na confluência dos dois mananciais a população já adaptou as casas para os meses das cheias.

As construções de madeira estão a uns dois metros de altura do chão. Em algumas, a parte de baixo é usada como garagem para carros, motos e canoas à espera da próxima alagação. As construções da parte baixa ainda estão com as marcas das águas barrentas nas paredes da última alagação, ocorrida entre o fim de fevereiro e o começo de março de 2024. Além dos bairros residenciais, boa parte do comércio de Boca do Acre está na região mais alagadiça.

De acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), os dois municípios estão entre as mais afetados pelo desmatamento e pela degradação florestal, que se intensificam com o aumento das queimadas. Em julho de 2024, o desmatamento em Lábrea alcançou 23 km², enquanto Boca do Acre somou 20 km², colocando-as no ranking das áreas mais impactadas da Amazônia.

Essa tendência reflete o aumento das atividades agropecuárias e da grilagem de terras, que são os principais motores das queimadas na região. A seca prolongada facilita a propagação de incêndios florestais, contribuindo para a degradação ambiental. Dados do PrevisIA, uma plataforma que prevê riscos de desmatamento, indicam que tanto Lábrea quanto Boca do Acre estão em áreas de alto risco para destruição florestal.

“Essa região tem um olhar bem fixado para a questão da soja. A soja está vindo com muita força. Ela quer se expandir. Mas não é que o boi vai acabar. O boi vai acabar em outras áreas. Por isso, a grilagem é muito forte para eles [fazendeiros]. Eles estão usando as terras novas, que são terras griladas, para o pasto. As velhas são usadas para a expansão da soja”, diz Cosme Capistrano da Silva, da CPT.

A estratégia, de acordo com Cosme, é despejar veneno sobre as áreas de floresta com o uso de aviões, deixando a mata morrer de forma “natural”. Depois, queimar o que sobrou. “Quando a fiscalização [ambiental] chega, eles culpam o trabalhador, culpam o extrativista.”

A fumaça gerada por essas queimadas tem graves consequências para a saúde pública, afetando tanto a população local quanto outras regiões do Brasil. Estudos indicam que a fumaça das queimadas na Amazônia pode percorrer longas distâncias, intensificando problemas respiratórios em idosos e crianças. Entre agosto e outubro de 2023, a Capital Manaus e outras cidades ficaram envoltas em fumaça, deixando a qualidade do ar entre as piores do planeta. O problema se repetiu em 2024 e teve novamente como epicentro essas duas cidades.

Área queimada em fazenda de Lábrea; em 2024, moradores dos municípios da divisa AC/AM conviveram com poluição extrema ocasionada pelas queimadas (Foto: Gleilson Miranda)


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Este conteúdo faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia, realizado em parceria entre InfoAmazonia, Varadouro e Vocativo.

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