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Invisíveis para o Estado: Massacre do Rio Abacaxis se perpetua após quatro anos

Agentes federais durante visita à comunidade vítima de ação violenta da PM do Amazonas (Foto: Cedida)



Indígena Munduruku e ribeirinho executados pelas costas não têm certidão de óbito até hoje; passados quatro anos do crime, muitas perguntas ainda estão sem respostas, e Estado permanece omisso. Intervenção de órgãos federais pode acelerar investigação e assegurar o mínimo de Justiça às vítimas.




Steffanie Schmidt

dos varadouros de Manaus


Esquecidos pelo poder público, nem mesmo na morte indígenas e ribeirinhos são reconhecidos pelo Estado. Após quase quatro anos do Massacre do Rio Abacaxis – como ficou conhecida a operação das forças de segurança do Amazonas que resultou em oito mortes, dois desaparecidos e diversos relatos de tortura no município de Nova Olinda do Norte, duas das vítimas locais não têm sequer certidão de óbito que possa atestar que um dia existiram. Em outro caso, não há nem mesmo registro de CPF.

Desamparadas e sem condições de deslocamento, as famílias não receberam auxílio para dar entrada nos documentos, que são pré-requisito para direitos básicos de um cidadão, como a pensão pós-morte. Foi preciso a intervenção de uma comitiva do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), realizada dentro do território entre os dias 16 a 19 de abril, para que os pedidos fossem iniciados.

“A Defensoria Pública da União (DPU) já iniciou a assistência aos familiares das vítimas do massacre e também das vítimas da violência no território dos Maraguá. Em parceria com a Defensoria Estadual estamos providenciando a expedição da certidão de óbito do indígena Munduruku reconhecido por meio de exame de DNA de sua ossada e também do ribeirinho assassinado pelas costas”, esclareceu ao Varadouro o defensor público federal José Roberto Tambasco, que integrou a missão de visita ao rio Abacaxis.

Após a visita, a DPU está providenciando, também, Certidões de Exercício de Atividade Rural dos indígenas (CEAR) junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para compor o requerimento das pensões pós-morte devidas aos familiares junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

“Nos colocamos à disposição do MPF para propositura de ações de ressarcimento material e moral dos familiares das vítimas e, também, em nome da coletividade. Nosso compromisso é acelerar as medidas reparatórias que já deveriam ter sido tomadas há quase quatro anos. São muitos os obstáculos para reunir os documentos necessários, mas com muita dedicação, vamos trabalhar para alcançar a garantia dos direitos destas comunidades”, afirmou Tambasco.

Em entrevista ao Varadouro, o defensor afirmou que há um clima de insegurança pela falta da presença do estado, seja federal ou estadual. Por conta disso, a CNDH optou por abrir um canal de discussão de medidas e ações assistenciais que pudessem atender a população local, principalmente as comunidades das margens dos rios Abacaxis e Marimari.

“Não tem ações itinerantes, operações, nada. Isso é muito preocupante e o compromisso da Defesoria Pública da União é conclamar aos órgãos operadores do direito no estado do Amazonas para que possamos dar prosseguimento às ações cíveis, tanto previdenciárias, no sentido de aplicação de pensão por morte daqueles que tiveram seus entes queridos assassinados, como também reparações cíveis pelos danos causados, que não só abrange os homicídios, mas tortura, violações de domicílio e todas as formas que atingem a dignidade do ser humano”, afirmou Tambasco.

Na ocasião da visita ao Amazonas, a comitiva foi recebida pelo vice-governador, Tadeu de Souza (Avante), e pela secretária de Justiça, Direitos Humanos e Assistência Social, Jussara da Costa, que se comprometeram, segundo o CNDH, a levantar quantos e quais procedimentos administrativos internos existiam sobre o caso.



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Enquanto a resposta não chega, o governador do Amazonas, Wilson Lima (UB), esteve no município de Nova Olinda do Norte, ao lado do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Roberto Cidade, na condição de presidente estadual e municipal do União Brasil, para o lançamento da pré-candidatura de Toco Santana (Republicanos) e Toinho Cidade (UB), à prefeitura do município.

Em seu discurso, Lima ressaltou que a missão do partido liderado por ele é garantir que “pessoas de bem, comprometidas com o bem comum, estejam à frente dos municípios e com Borba não seria diferente”.

“Estamos aguardando a resposta do vice-governador, tanto quanto a um acordo para reparação dos danos materiais e morais como para a realização de atendimento para acesso aos serviços públicos na região dos rios abacaxis e Marimari”, afirmou o defensor José Tambasco.

Outras providências como o cadastramento do CPF de um dos indígenas assassinados, bem como os acompanhamentos da demarcação do território indígena Maraguá na Funai e da titulação dos Projetos de Assentamento Agroextrativistas Abacaxis I e II, além de medidas de proteção às comunidades indígenas e ribeirinhas a serem propostas ao Ministério da Justiça, também estão sendo lideradas pela DPU.

Para ouvir os relatos de tortura e extermínio ocorridos no Massacre do Rio Abacaxis, na região dos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, membros do CNDH afirmaram que tiveram que pedir aos policiais federais que realizavam a escolta da equipe, para que aguardassem dentro da embarcação, tamanho era o clima de medo da população habitante das comunidades do entorno do rio em relação a homens fardados.

Rotas alteradas

Indígenas e ribeirinhos durante velório de uma das vítimas de massacre em Nova Olinda do Norte (Foto: Divulgação CPT)


O massacre mudou a rotina de ribeirinhos e indígenas e a relação deles com o rio que sempre habitaram. “Em algumas comunidades, a população reduziu à metade”, afirma a presidente do CNDH, Marina Dermmam.

Enquanto pedem por atendimento psicológico, veem atendimentos básicos como garantias de saúde e educação – e até vacina – faltarem. As consequências da desestruturação já atingem famílias que vêm perdendo, inclusive, o direito ao programa Bolsa Família. “Após o massacre, a população foi condenada a um completo abandono, com acesso precário à educação, à saúde…vacinas não chegam às comunidades e crianças e indígenas estão sendo desligadas de programas sociais do governo federal”, completa Dermmam.

A visita de uma equipe de missão composta por membros do CNDH, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, especialistas relatores, e representantes do ‘Coletivo dos Povos do Rio Abacaxis e Marimari’ evidenciou o abandono e medo que assola os povos tradicionais.

“A gente acredita que o Estado cometeu um crime e o massacre continua. É uma ação que vai, mata, tortura e depois abandona a comunidade à própria sorte. Hoje, há prejuízos de diversas ordens: além dos diversos crimes ambientais que ocorrem, pessoas perderam seus entes, alguns estão desaparecidos, crianças têm medo da polícia, além de viverem uma fuga geográfica de seus ambientes”, explica a presidente do CNDH. O Conselho considera, inclusive, o pedido de inclusão de moradores locais no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.

Representantes do conselho concederam entrevista coletiva sobre a visita, na tarde de 22 de abril, no auditório da Cúria Metropolitana de Manaus. A iniciativa contou com a presença do arcebispo de Manaus e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Cardeal Leonardo Ulrich Steiner. Confira aqui, nota pública divulgada:

O governador do Amazonas, Wilson Lima, com o ex-presidente Jair Bolsonaro: ineficiência das investigações estaduais exige ação do CNDH (Foto: Divulgação PR)

Tortura

Relatos de espancamento de pescadores; de ameaças feitas por policiais militares foram entregues à Comissão. “Ouvimos coisas como a polícia ter colocado o filho de um morador dentro do freezer e afirmar que ele só iria ser tirado dali quando o pai revelassem o nome de quem tinha mandado matar os policiais”, afirma o conselheiro titular Adelmar Fernandes Barbosa Junior, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Em outro caso, mulheres foram encharcadas de gasolina enquanto policiais seguravam fósforo aceso na mão. “Alguns podem ter morrido em decorrência da tortura e outros porque presenciaram cenas de tortura. Muitos pediram psicólogo e já vivem com depressão e pânico há muito tempo; imagine que isso foi uma operação de vários dias”, acrescentou.


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Foram identificados crimes ambientais de toda ordem envolvendo caça e pesca ilegal, garimpo dentro de comunidades indígenas, e exploração ilegal de mandeira. Aldemar Junior afirmou que irá encaminhar recomendações aos órgãos do governo federal relacionados a questões indígenas, incluindo MPI, Sesai, e a própria Funai, “para que possa fazer com que o poder público venha até essas aldeias”. “Não podemos esperar a interposição do Ministério Público ou dos nossos companheiros de outras instituições, precisamos do poder público dentro da aldeia hoje, já e agora”.

Para Marina Dermmam, há questões territoriais a serem resolvidas, como a necessidade de demarcação imediata da terra dos Maraguá, além da ação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na titulação de terras para ribeirinhos. “Queremos que o Estado volte à área, estamos à disposição para acompanhar a execução de um plano de ação conjunta com outras secretarias”, acrescentou.

Apuração

Ocorrido em 3 de agosto de 2020, o Massacre do Rio Abacaxis completa quatro anos em breve. Foi somente no último ano que as ações relacionadas ao caso como investigações e acompanhamento das vítimas passaram a ganhar ritmo, com a retomada de políticas públicas por parte governo federal voltadas aos Direitos Humanos, e a nova relação estabelecida com a Polícia Federal.

“Há um inquérito em segredo de Justiça, mas precisamos individualizar os crimes e identificar outros agentes que possam ter envolvimento, além de quem foram os mandantes. Foi enviado um efetivo de mais de cem agentes de segurança para a operação que resultou em Massacre”, afirmou a presidente do CNDH, Marina Dermmam.

Por conta da visita do CNDH ao rio Abacaxis, a Polícia Federal promoveu uma missão de visita ao local “com objetivo de dar seguimento às apurações sobre os envolvidos no Massacre do Rio Abacaxis (2020) e buscar reparação para vítimas e familiares”, divulgou o conselho em nota.

“Pretende-se, ainda, congregar esforços institucionais e sociais que produzam um espaço de articulação intersetorial e interfederativa para que se crie uma agenda de trabalho de mediação de conflitos e de fortalecimento de políticas públicas territoriais e sociais, voltadas às comunidades tradicionais da região”, também diz a nota.

Um inquérito indiciou o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte, em 2023. Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados.

A operação comandada pelo então secretário Bonates ocorreu após a morte de dois policiais militares que foram destacados – sem farda, identificação ou mandado – para investigar o disparo que atingiu o secretário-executivo do Fundo de Proteção Social (FPS) do governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende. Na ocasião, Rezende invadiu o território com um grupo de pesca esportiva,em lanchas particulares, sem o conhecimento e o consentimento das comunidades locais.

“Isto é para que não fique esquecido, mas também consigamos que se proponham ações concretas em benefício das comunidades e, também, das pessoas que foram atingidas, que foram violentadas. Não se trata de uma pessoa, de duas pessoas, se trata sempre de uma aldeia; se trata de uma grande família, ela toda precisa ser protegida. Agressão a uma pessoa significa agressão a toda grande família, a toda aldeia. Então, como dar essa proteção, viabilizar essa proteção aqui? Essa é a questão”, afirmou o Cardeal Leonardo Ulrich Steiner.

Outro lado

Varadouro em contato com o Governo do Estado do Amazonas e as assessorias da Secretaria de Segurança Pública (SSP), Polícia Militar (PM), ouvidoria do Estado, e gabinete do vice-governador, Tadeu Souza, bem como órgãos como MPE e MPF, mas não obteve retorno.



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