ALDEIAS INUNDADAS

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Crise climática faz indígenas perderem roçados, ameaça agricultura e sua ancestralidade

Moradias do povo Ashaninka, na aldeia Apiwtxa, invadidas pela alagação do rio Amônia (Foto Isaka Huni Kuĩ/Opirj)


Alagação de fevereiro destruiu os roçados de banana e macaxeira, as criações de animais e até as moradias das populações indígenas do Acre. As comunidades do Alto Rio Juruá estão entre as mais impactadas. Todas as suas produções e criações que garantiriam a alimentação ao longo do ano foram perdidas. Agora, a preocupação é com a seca severa de 2024, que tende a comprometer a recuperação dos roçados.




Fabio Pontes
dos varadouros de Marechal Thaumaturgo


Era final de fevereiro de 2024. A vida seguia seu fluxo normal por estas bandas do sul da Amazônia Ocidental Brasileira – dizem que por aqui o vento faz a curva. Após os dias de folia de Carnaval num ano bisexto, fevereiro ia se despedindo sem nenhum percalço, até que as primeiras notícias surgem: uma chuva torrencial de vários dias nas cabeceiras dos rios amazônicos no Peru provocara o transbordamento dos mananciais. O fato era assustador para as comunidades dos dois lados da fronteira. Para nós, era evidente que todo aquele aguaceiro viria para cá. Não deu outra.

Em questões de horas, nossos rios e igarapés transbordaram. O primeiro foi o rio Acre e seus afluentes. Após os vilarejos peruanos ficarem inundados, era a vez de comunidades indígenas, ribeirinhas e extrativistas do Brasil serem afetadas. Logo depois, no extremo oeste do estado, também nas fronteiras com o Peru, era a vez do Juruá alagar.

O mesmo fenômeno se repetiu nos afluentes Amônia, Bagé, Breu, Tejo e outros. O transbordamento seguiu em escala, atingindo todas as bacias e microbacias do estado: Purus e Tarauacá/Envira. De uma ponta a outra, nenhum município escapou. Dos 22 que formam o estado, 19 foram atingidos.

Naqueles dias eu estava em Cruzeiro do Sul, e recebi o convite do coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), a liderança Ashaninka Francisco Piyãko, para acompanhá-lo numa visita às aldeias do Alto Juruá para constatar o impacto daquela grande alagação nas comunidades indígenas. De pronto aceitei o convite.

Sou um jornalista acreano que há anos escrevo sobre as mudanças climáticas em nosso estado. Aquela era uma oportunidade de presenciar mais um dos muitos eventos climáticos extremos que passaram a nos afetar. Eventos que ameaçam populações urbanas, indígenas, ribeirinhas, da agricultura familiar e extrativistas.

Saímos de Cruzeiro do Sul na manhã do dia 27 de fevereiro. Nossa viagem até Marechal Thaumaturgo só poderia ocorrer por barco. Dias antes, as empresas de táxi-aéreo, numa medida acertada e prudente, tinham interrompido suas operações até o município por conta das condições precárias da pista de pouso. Os aviões estavam atolando. O isolado município ficara ainda mais isolado.

O desafio era subir um rio Juruá em processo de enchente. Era muita água vindo em sentido oposto ao de nossa embarcação – e muitos balseiros também. Desviar dos balseiros e driblar os banzeiros foi tfeito com maestria pelo nosso barqueiro (ou piloto), o Francisco Rodrigues, o Dó – um caboclo acostumado a dominar como poucos os desafios de se navegar pelos rios da Amazônia.

No caminho já era perceptível a devastação. Quanto mais se subia o Juruá, mais era perceptível os danos às margens. Em alguns pontos, era possível ver apenas o assoalho das moradias ribeirinhas e das casas de farinha. Dos roçados, só se via as folhas das bananeiras. Todo o resto (como as plantações de macaxeira) estavam debaixo d’água.

Ao fim da tarde, chegávamos a Marechal Thaumaturgo. A primeira parada foi na sede do Instituto Yorenka Tasorentsi, organização fundada pela liderança Benky Piyãko. O instituto está numa área localizada de frente para a cidade. Era uma terra de pasto degradado, e foi reflorestada pelos Ashaninka.

A cidade de Marechal Thaumaturgo fica localizada na confluência dos rios Juruá e Amônia. Os dois, como se diz numa linguagem regional, estavam até a tampa. Junto com os seus demais parceiros, Benky corria contra o tempo para salvar os peixes dos açudes do instituto. Ao menos seis deles foram atingidos pela alagação, e os peixes levados pela correnteza dos rios. O mesmo se repetiu na aldeia Novo Destino, do povo Apolima-Arara.


Os povos Ashaninka e Apolima-Arara do rio Amônia perderam seus roçados e criações, ficando em situação de insegurança alimentar (Foto: Isaka Huni Kuĩ/Opirj)



De um extremo a outro

Meses atrás, o cenário era outro: de peixes mortos no rio Amônia por conta do nível crítico de vazante do manancial e as altas temperaturas que reduziram a oxigenação da água. Queimadas e incêndios florestais também foram registrados no município, incluindo em unidades de conservação. Nem mesmo o bem preservado Vale do Juruá tem escapado da ação devastadora dos homens – e das respostas dadas pela natureza.

No dia seguinte era preciso seguir viagem. Subir o rio Amônia até a aldeia Apiwtxa, do povo Ashaninka, na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia. Antes, uma parada nas aldeias do povo Apolima-Arara, na Terra Indígena Arara do Rio Amônia.

Os dois povos estão entre os mais afetados pela grande inundação que afetou a Amazônia naquele fim de fevereiro. Eles perderam quase todos os seus roçados de macaxeira e banana. Só escaparam os cultivados nas partes mais altas. Mas é costume manter os roçados sempre às margens dos rios, não houve tempo para salvar muita coisa – ou nada.

(Foto: Isaka Huni Kuĩ/Opirj)

Muitas comunidades indígenas do Acre perderam toda a garantia de sua segurança alimentar para o ano de 2024; roçados e criações foram levados pela alagação. O desafio agora é recuperar os cultivos. No caso da banana, a recuperação leva, no mínimo, um ano. A macaxeira pouco mais de seis meses.

Todavia, o cenário climático não é nada positivo para o próximo verão amazônico; as previsões são de uma estiagem severa que reduzirá a quantidade chuvas e elevará as temperaturas – um ambiente nada bom para quem sobrevive da agricultura.

Enquanto a situação na melhora, a Opirj desenvolve ações emergenciais para auxiliar as comunidades indígenas afetadas, com a distribuição de sacolões, água mineral e sacas de farinha – o mais importante item da dieta alimentar acreana. Sem os roçados de macaxeira, as comunidades não podem produzir a farinha. Para os povos indígenas, até seus rituais de espiritualidade ficam afetados, pois a macaxeira é a principal base de produção da caiçuma. No caso dos Ashaninka, a piyarentsi.

Como destaca a liderança Moisés Piyãnko, não e trata apenas do consumo de uma bebida fermentada, mas de uma cultura ancestral, no qual toda a comunidade se reúne para ouvir e contar histórias. Um ritual onde os mais velhos, as grandes lideranças, transmitem o conhecimento do povo aos mais jovens. Sim, a crise climática é uma grave ameaça para a sobrevivência dos povos indígenas e de suas ancestralidades.

O resultado da viagem feita pelo jornal Varadouro está documentada no minidocumentário Aldeias Inundadas. As imagens foram feitas pelo jovem comunicador Isaka Huni Kuĩ, que integrava a equipe técnica da Opirj e também produziu conteúdo para a Coiab. No filme, as lideranças indígenas são os principais protagonistas, ao narrarem como a grande cheia de 2024 impactou e replanejou seus modos de vida.

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