Com histórico de graves conflitos fundiários, Rondônia aposta em “novo Incra” para apaziguar problemas
Quarenta e seis anos depois de gastar muito dinheiro com assentamentos e não obter todos os resultados planejados, Incra pretende assentar 43 mil famílias em Rondônia. Se em 1976 os colonos sonhavam, hoje quem sonha é o Instituto.
Montezuma Cruz
Dos Varadouros de Porto Velho
“A reforma agrária ainda é o caminho certo, mas o governo federal sozinho não consegue atender toda a demanda”, alerta o superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Rondônia, Luíz Flávio Carvalho Ribeiro. Segundo ele, a situação pode melhorar “graças ao pleno desenvolvimento das atividades em apoio à agricultura familiar que representam 80% das ações da autarquia e à oferta de parcerias do programa Titula Brasil às prefeituras.” “A agricultura familiar é base inconteste da pujança econômica deste estado”, assinalou Lúcio Carvalho.
O Incra investiria 175 milhões de cruzeiros em seus projetos no extinto Território Federal de Rondônia.
Pelo Acórdão nº 775/2016 do Tribunal de Contas da União, o Incra não faz mais cadastro em acampamentos. O procedimento atual é feito via Cadastro Único (CadÚnico) nos municípios onde está instalado o acampamento/ocupação,
Há capacidade para assentamento de 43.096 famílias, informa Luiz Flávio. No entanto, segundo ele, as 105 demandas por terras atualmente existentes “não refletem a realidade”: “Acontecem fora da gestão do Incra; são ações dos movimentos sociais organizados em acampamentos ou mesmo associações.”
Quanto à volta da assistência técnica, ele é cauteloso: “A missão é ampla, demanda recursos infindáveis e temos que ser realistas com relação aos recursos governamentais destinados a tais ações.”
Desde o início de seu processo de ocupação, Rondônia é marcado por um intenso histórico de conflitos fundiários. Nos últimos anos, unidades de conservação e terras indígenas passaram a ser alvos preferidos da indústria da grilagem no estado – muitas das vezes fomentada pela classe política local. O próprio Incra chegou a destinar áreas da TI Uru-Eu-Wau-Wau para assentar famílias. A Funai entrou com recursos para impedir a invasão.
Varadouro ouviu o superintendente Luiz Flávio Carvalho Ribeiro:
Varadouro: Passadas algumas fases angustiantes e de dificuldades do Incra, qual a sua expectativa para o atual exercício e para os próximos anos na Superintendência Regional de Rondônia?
Luís Flávio Carvalho Ribeiro: As expectativas são muito positivas e animadoras devido especialmente à orientação do governo federal e do pleno desenvolvimento das atividades em apoio à agricultura familiar que representam 80% das ações da autarquia. Temos alinhavado os propósitos e fechado alguns acordos/parcerias com o governo do estado, especialmente com a Secretaria de Estado de Patrimônio e Regularização Fundiária (Sepat), e com instituições acadêmicas: Ifro (Instituto Federal de Rondônia) e Universidade Federal de Viçosa (UFV), além de Acordo de Cooperação Técnica com todas as prefeituras que desejam implantar o Programa Titula Brasil. Temos ainda buscado recursos com os fundos para Amazônia. O foco está em atender à demanda reprimida em assentamento e regularização fundiária, expandindo as ações com sustentabilidade ambiental.
V: O que o Incra consolidou em termos de projetos de assentamento, colonização e de assentamento dirigido desde o extinto território federal?
Carvalho: No estado de Rondônia foram criados pelo Incra 219 projetos de assentamento nas mais diversas modalidades, com capacidade de assentar 65.831 famílias. Desses, 52 se encontram na “fase 7 – consolidado”, com capacidade para 43.096 famílias.
V: Qual a extensão (em hectares) dos atuais assentamentos e de acampamentos no estado? O senhor considera possível consolidá-los?
Carvalho: Os assentamentos ocupam 6.192 milhões de hectares. Quanto aos acampamentos, não dispomos da medição em hectares. O que há é um registro de 105 demandas na superintendência, que, por sua vez, não refletem a realidade, já que a dinâmica acontece fora da gestão do Incra. São ações dos movimentos sociais organizados em acampamentos ou mesmo associações. A consolidação dos assentamentos envolve a implantação de obras de infraestrutura, demarcação topográfica, construção ou recuperação de estradas, implantação de sistemas de abastecimento, realização de gestão ambiental, supervisão, fiscalização e acompanhamento das famílias assentadas na aplicação do Crédito de Instalação, e demais ações visando proporcionar as condições necessárias para o desenvolvimento sustentável das áreas de reforma agrária. Os recursos destinados a esse fim também devem abranger a titulação de lotes nos assentamentos, o funcionamento de agroindústrias e projetos de diversificação, e comercialização da produção.
V: Qual o plano para isso dar certo?
Carvalho: Retornaremos com assistência técnica, temos planos elaborados e outros em fase de construção. A missão é ampla, demanda recursos infindáveis e temos que ser realistas com relação aos recursos governamentais destinados a tais ações. Estamos ainda sem a disponibilização de recursos orçamentários e com pouca força de trabalho. Somando a isso, são consistentes as possibilidades técnicas de êxito em curto e médio prazo.
V: No primeiro mandato, o governador Marcos Rocha disse que cedeu 35 servidores estaduais ao Incra. O que eles fizeram até agora?
Carvalho: Importante esclarecer que não houve cessão de servidores. O que houve foi a colaboração mútua entre dois entes públicos disponibilizando servidores em prol do alcance do objeto da parceria celebrada, que foi a promoção e apoio à regularização fundiária de imóveis rurais inseridos em glebas públicas federais e projetos de assentamento federais no estado de Rondônia, através dos Acordos de Cooperação Técnica. O trabalho foi realizado com o apoio de 30 colaboradores da Seagri e proporcionou a análise e instrução de processos para a emissão de documentos titulatórios.
O superintendente apresenta uma planilha dos resultados alcançados:
● 5.510 emissões e expedições de documentos titulatórios, provisórios e definitivos em glebas públicas federais;
● 4.927 digitalizações, inserções e migrações de processos para o Sistema Eletrônico de Informações;
● 830 ações para potencializar e ampliar a supervisão dos ocupantes em projetos de assentamento e vistorias em imóveis rurais;
● 637 emissões e expedições de documentos titulatórios, provisórios e definitivos em projetos de assentamento.
● 479 vistorias para regularização fundiária e titulação;
● 2.845 reduções no acervo de processos de regularização fundiária e titulação pendentes de análises;
● 61 regularizações de parcelas da reforma agrária;
● 36 capacitações e habilitações dos designados;
V: No cômputo mais recente, qual o total de famílias à espera de assentamento definitivo em Rondônia? O senhor considera difícil consolidar projetos em áreas de conflitos por antigas terras devolutas?
Carvalho: Esse quantitativo não foi atualizado, porque desde o ano de 2016, por decisão em Acórdão nº 775/2016 do Tribunal de Contas da União, o Incra não faz mais cadastramento em acampamentos. O procedimento atual é feito via Cadastro Único (CadÚnico) com os municípios onde está instalado o acampamento/ocupação. Quando é criado um assentamento, a convocação é feita, via edital de convocação, conforme disciplina a Instrução Normativa Incra 98/2019 e o Decreto 9311/2018. As áreas que envolvem conflitos precisam de atendimento cauteloso e célere; geralmente elas possuem domínio da União/Incra. No entanto, quando resolvido o conflito e o Incra é imitido na posse em áreas oriundas de demanda judicial, o ordenamento do espaço geográfico com assentamento ou regularização fundiária se torna gratificante e revela que a execução do Plano de Reforma Agrária é o caminho certo.
V: A ex-presidente da República Dilma Rousseff assinou decreto desapropriando a antiga fazenda Rio Branco II, do Sr. Hugo Frey, em Ariquemes. O Incra teve algum tipo de dificuldade em executar a reforma agrária?
Carvalho: A Fazenda Rio Branco II é objeto do procedimento administrativo nº 54300.000116/2013-16 e ele não foi concluído devido a problemas orçamentários. Posteriormente, em 2019, foi editado o Memorando-Circular nº 01/2019/SEDE/INCRA (processo 54000.043151/2019-08) que suspendeu os atos envolvendo obtenção onerosa. O atual presidente do Incra e servidor do instituto, César Fernando Schiavon Aldrighi, expediu o Despacho Decisório 7285, de modo que os ritos referentes à obtenção onerosa poderão ser retomados, a exemplo do procedimento desapropriatório dessa fazenda.
V: O senhor vê a possibilidade de os futuros assentamentos receberem assistência técnica e sustentarem culturas, mesmo as que se destinem à exportação? Exemplo: um milho nosso; um inhame que também seja consumido no estado e não apenas vendido a estados do Nordeste que o exportam para países europeus.
Carvalho: As ações estão sendo desenvolvidas no sentido da retomada da assistência técnica. Ainda está em vigor a lei nº 12.188, assinada pelo presidente Lula em 2010, que instituiu a política e o programa de assistência técnica e extensão rural para a agricultura familiar e reforma agrária (Pnater e Pronater). Embora relegada, a perspectiva na atual gestão é de incrementar as ações. Já foi lançado o Plano Safra da Agricultura Familiar, que destinará, para a safra 2023/2024, um total de R$ 71,6 bilhões de crédito rural. É o maior valor já destinado na série histórica, sendo 34% superior ao anunciado na safra passada. Toda a sua consecução depende de uma assistência técnica adequada e estamos trabalhando nessa direção.
V: Quando deixou o cargo, alguns anos atrás, o ex-superintendente Cleto Muniz queixava-se da falta de recursos financeiros até mesmo para pagar a folha mensal de servidores. Ele previa a demarcação de três mil lotes, e investimentos de R$ 6,35 milhões para a infraestrutura em estradas vicinais que atenderiam a 4,5 mil famílias…
Carvalho: Enquanto autarquia federal, o Incra depende dos recursos financeiros federais. É sabido que os recursos orçamentários sempre foram exíguos e muito disputados, entretanto, a folha mensal de servidores é reservada no orçamento anual. Tivemos dificuldades para expandir esse quantitativo e incrementar os recursos. Porém, as perspectivas são animadoras e já foi anunciado o concurso para 742 vagas no Incra.
V: Com a sua larga experiência na área técnica agrícola, o senhor vê possíveis entraves causados por latifúndios que inviabilizam e criam obstáculos à reforma agrária?
Carvalho: Em Rondônia, as disputas por terras são inúmeras e acirradas em razão de seu processo de ocupação. Tais disputas estão em geral judicializadas, dependem de conciliação ou percorrem as instâncias superiores em fases recursais que levam décadas para solução. Esse é o maior entrave. As áreas mais conflituosas do estado concentram-se na região do Cone Sul e Vale do Jamari.
V: Como vê e como deve ser a reforma agrária nesta década?
Carvalho: Em qualquer época, a reforma agrária visará a melhor distribuição das terras no país com a destinação constitucional das terras improdutivas, oriundas de atividades ilícitas, devolutas, enfim, sempre buscando atender ao passivo dos trabalhadores rurais sem terra. Nos dias atuais é importante o desenvolvimento das atividades em parceria com os demais órgãos governamentais e instituições públicas e privadas, porque é fato que o governo federal sozinho não tem como alcançar toda a demanda. Esse envolvimento é fundamental para proporcionar qualidade de vida e produção no campo e a fixação dos jovens na área rural. Só assim o País vai proteger um de seus maiores patrimônios, a terra, e garantir sua autonomia proporcionando sua segurança alimentar.
V: E Rondônia?
Carvalho: Este é o estado em que a reforma agrária deu certo. A agricultura familiar é base inconteste da pujança econômica deste estado. São 49 municípios oriundos de projetos de assentamento criados pelo Incra. Nossa atuação neste estado trouxe abertura de estradas, instalação de escolas, postos de saúde, construção de moradias, tudo isso fez com que este Instituto construísse um legado fantástico. Retornaremos a esse protagonismo, a desempenhar nosso papel de colaboração econômica e a produzir alimentos, apoiar as comunidades dos Territórios Quilombolas, os extrativistas, realizando muito mais, e desta vez com foco na sustentabilidade ambiental. A governança fundiária com regularização e titulação definitiva trará segurança jurídica ao campo com a criação de novos projetos de assentamentos. Esta é mais uma missão a ser cumprida.
FRAGMENTOS DA HISTÓRIA FUNDIÁRIA
● Em 1976, no antigo Território Federal de Rondônia, do total de 22 mil famílias sob responsabilidade do governo, o Incra conseguia assentar 13.283, e desse total, apenas 5.706 famílias tiveram suas terras regularizadas. Sobrariam para os anos seguintes 8.107 famílias não assentadas, além de 7 mil excedentes que ocuparam terras, plantaram e buscaram títulos definitivos.
● Agosto de 1977: o deputado estadual Lázaro Dumont, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Paraná, denunciava que cerca de 400 mil pessoas já haviam passado a fronteira indo trabalhar no Paraguai.
● No início daquele ano, o ex-coordenador regional do Incra no Acre, Assis Canuto, denunciava um grupo econômico sulista por haver “esticado” sua propriedade de 98 mil hectares, formados com 32 títulos adquiridos, para 604 mil ha.
● O Incra expedia autorizações de ocupação [AOs] de lotes de cem hectares localizados a dez, 20 ou 30 quilômetros das estradas poeirentas e barrentas, conforme a ocasião. Colonos em Colorado do Oeste carregavam a produção de arroz nas costas para vendê-las na cidade, ou trocá-las por leite Ninho ou açúcar. Na CPI da Terra, a AO foi classificada de documento “leonino, unilateral e imoral”, e de validade jurídica discutível.
● Só do grupo gaúcho Agropecuária Rio Candeias (Agrinco), o então coordenador de terras devolutas do Incra, Amir Francisco Lando, retomava 14 milhões de hectares.
● A Ajudância da Funai em Rio Branco (AC), ainda em 1977, denunciava o Sr. João Sorbile por ter ampliado sua fazenda para 341 mil hectares, com a conivência de cartórios de Boca do Acre (AM) e Rio Branco.
● Sem encontrar nenhum título definitivo ou a carta de expedição, em suas discriminatórias no Acre, apenas certidões de translado o Incra concluía: “Uma terra só poderia deixar de ser pública para em consequência passar para o domínio particular, quando oficialmente fosse desmembrada do patrimônio público.” Logo, seriam terras devolutas.
● Isso não impedia que em quatro anos 4,5 milhões de hectares – quase 30% de toda a extensão do Acre – fossem negociadas por diversos interessados. O então senador Altevir Leal (Arena-AC), tido como proprietário do Rio Tarauacá inteiro, dizia ter vendido 1,2 milhão de ha de terras e garantia possuir 800 mil ha para vender.
● “Sou o maior latifundiário do mundo”, gabava-se o senador em frequentes reuniões com amigos no Hotel Chuí, então, o melhor de Rio Branco.