ADAPTAÇÕES INUNDADAS

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Em meio a eventos climáticos extremos, Rio Branco falha ao não implementar plano de mitigação e adaptação

Enchentes extremas passaram a ser recorrentes na capital do Acre, deixando os moradores das periferias ainda mais vulneráveis (Foto: Gleilson Miranda/Varadouro)



Criado em 2020, o Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima aborda setores-chave como Energia, Transportes, Resíduos e Uso da Terra. Especialistas ouvidos por Varadouro apontam ineficiência do poder público em dar continuidade às políticas públicas desenvolvidas em gestões anteriores, e a falta de transparência e monitoramento na execução das ações. Apesar de ser a única capital da Amazônia a contar com plano do tipo, ele está na gaveta.



Veriana Ribeiro
Dos varadouros de Rio Branco


Os impactos das mudanças climáticas em Rio Branco estão cada vez mais evidentes: em menos de um ano, a cidade foi atingida por duas enchentes históricas e uma seca intensa. Com pouco mais de 364 mil habitantes, a capital acreana lida com eventos climáticos extremos que ameaçam, ano após ano, a segurança hídrica, alimentar, a economia e o direito à moradia da população – em particular dos mais pobres. Em 5 de março de 2024, a cheia do rio Acre alcançou a segunda maior marca em 50 anos de aferições: 17,89m. Em abril do ano passado, outra alagação superada (a de 1997), quando o manancial alcançou 17,72m. Famílias que nem bem tinha se recuperado dos prejuízos da enchente de 2023, voltaram a ter suas casas, colônias e comércios invadidos pelas águas.

Para enfrentar estes desafios, a capital do Acre conta, desde 2020, com um documento importante: o Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima (PMAMC), desenvolvido pela prefeitura em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da iniciativa Governos Locais Pela Sustentabilidade para América do Sul (ICLEI).

No entanto, apesar do planejamento detalhado e do cronograma estabelecido para alcançar 100% dos objetivos até 2040, a prefeitura não tem demonstrado um compromisso efetivo com a execução das ações propostas. Entre os problemas apontados por especialistas está a ineficiência do poder público municipal em dar continuidade às políticas públicas desenvolvidas em gestões anteriores, além da falta de transparência e monitoramento na execução das ações estabelecidas. O PMAMC é resultado de um amplo processo de consulta com envolvimento da sociedade, abordando setores-chave como Energia, Transportes, Resíduos e Uso da Terra.

Jarlene Gomes, geógrafa e pesquisadora do Ipam, participou de perto da elaboração do plano, atuando na equipe que fez a coordenação do documento. Ela reforça que Rio Branco é o único município da região amazônica que conta com um planejamento importante para mitigar e adaptar a cidade para as mudanças climáticas, mas critica a falta de transparência do poder público em relação à execução das ações estabelecidas.

“Rio Branco é o único município da região amazônica que conseguiu ter a capacidade de, em algum momento da sua história, olhar para esse problema e dizer que a gente precisa de um plano. Isso é uma coisa importante. Só que a questão de planos e de priorização da agenda depende muito da gestão”, avalia a especialista.

“E eu, particularmente, não sei te responder exatamente se essa gestão se apropriou de forma estratégica desse plano. A gente tem um extremo de cheia e o extremo de seca. Tem as ações, têm as diretrizes, têm os planos de contingência, que é tipo tapar buraco, mas eu não vejo que tem um olhar estratégico [à questão ambiental]”, afirma.

Segundo Jarlene, não é mais possível pensar em evitar as mudanças climáticas, elas já estão acontecendo e os desastres naturais vão ficar cada vez mais frequentes. Neste momento, é necessário olhar para o futuro pensando como mitigar os problemas atuais e como adaptar as cidades para uma nova realidade.

“A gente já sabe que todos os anos vão ter cheias, quantas pessoas são atingidas, quais áreas são alagadas, o que é que tá acontecendo. O problema tá muito claro. E agora eu acho que uma estratégia de visão política, o que a gente faz com isso?”, questiona.

Para ela, o meio ambiente tem que ser visto também como uma questão econômica, tendo em vista que os efeitos climáticos atingem casas, comércios e a produção de alimentos. “Tudo isso mexe totalmente na dinâmica econômica e no PIB do estado. Então é um processo que a gente precisa olhar para além do ambiental, tem que olhar o social e o econômico”, ressalta.

O mesmo rio Acre que invadiu milhares de imóveis em 2024, meses antes estava em nível crítico de vazante por causa da seca extrema (Foto: Juan Diaz)


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Cidades adaptáveis

Liana Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Prevenção de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI), acompanha a situação do Acre há muitos anos, monitorando o impacto das queimadas, cheias e secas na região. Ela destaca que a intensificação desses eventos está diretamente relacionada ao aquecimento global e ao desmatamento da Floresta Amazônica. E que a tendência é a de que os eventos extremos como enchentes e secas se tornem rotina na região.

“A gente precisa assumir que esse é o novo quadro da realidade, tal como já estamos vivendo. Então, se por acaso, em um dos anos a gente não observar um desses extremos [cheias ou secas], eu consideraria que isso daí seria um ano atípico em relação ao que a gente vai viver a partir de agora. Pode ser que a gente tenha uma janela de alguns poucos anos, em que a gente consiga se recuperar, mas esses eventos extremos vão ser cada vez mais constantes”, alerta a cientista.

Apesar da importância do PMAMC, Liane aponta alguns desafios na sua implementação, como a falta de recursos financeiros e técnicos, a ausência de engajamento da sociedade civil e de integração com outras políticas públicas municipais.

Ela ressalta que é preciso superar esses desafios para garantir o sucesso do plano e a sustentabilidade de Rio Branco. “Essas ações preventivas, muitas vezes, são menos tangíveis do que as de resposta. Comprar uma cesta básica, mobilizar uma aeronave para uma questão de incêndio, mover pessoas de um lugar para o outro, infraestrutura, logística, isso é muito tangível. A gente consegue de uma forma muito razoável, comprovar o uso do recurso, quando a gente fala em ações de prevenção, muitas vezes a gente está falando de ações que são de longo prazo”, explica.

Miguel Scarcello, secretário-geral e co-fundador da SOS Amazônia, organização não-governamental acreana dedicada à proteção e conservação do bioma amazônico, é bastante crítico ao documento. Ele destaca que a falta de uma legislação que obrigue a implementação do plano e a ausência de punições em caso de descumprimento são problemas que precisam ser solucionados.

“Acho que temos uma cultura local de descrédito do que foi feito anteriormente, ainda mais quando muda de partido, quando é outra gestão. O trabalho feito anteriormente só é mantido ou resgatado quando há uma condicionante do município ou do estado para acessar recursos”, explica.

Para Scarcello, o Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima, mesmo que consiga atingir todas as suas metas, ainda é insuficiente para atender aos desafios ambientais que a capital acreana vai enfrentar no futuro, devido às mudanças climáticas.

“Boa parte das metas é desenvolver estudos e documentos”, reclama. “Acho que ele precisava ser mais agressivo, fazer as pessoas terem a oportunidade de encontrar trabalho onde moram, as crianças estudarem onde moram, criar núcleos comunitários em que as pessoas não precisassem se distanciar tanto. Acho que copiar esse modelo que existe tá errado, tem que incentivar outros. É aí que entram essas adaptações, poderíamos partir por esses novos caminhos”, idealiza.

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Além de ameaçar acesso à água potável, fortes secas facilitam a propagação das queimadas que danificam o meio ambiente e a saúde humana (Foto: Juan Diaz)



O que diz a prefeitura

Questionada sobre a implementação do plano, a Secretária Municipal de Meio Ambiente (Semeia) ressaltou o compromisso da prefeitura com a questão ambiental e mencionou que várias ações estratégicas já estão em andamento.

“Para superar os desafios e potencializar as oportunidades identificadas, o Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima de Rio Branco compreende o ano de 2040 para alcançar 100% de seus objetivos, resultados e impactos, conforme estratégia estabelecida no arranjo de implementação, monitoramento e avaliação”, diz trecho de nota enviada à reportagem.

Prossegue a manifestação oficial: “Em 2021, como medida para elevar a cidade de Rio Branco a cidade sustentável, a gestão municipal aderiu ao Programa Cidades Sustentáveis que está alinhado ao ODS/ONU. Os instrumentos de gestão estão vinculados ao alcance da Agenda 2030, através de ações definidas no Plano Plurianual 2022-2025. Desse modo, a implantação do PMAMC abrange as diversas áreas da administração municipal na execução de ações estratégicas que já estão em andamento e outras já realizadas com o envolvimento de de várias secretarias”, diz a nota.

Mesmo com plano de mitigação e adaptação robusto, Rio Branco recorre a “gambiarras” para lidar com eventos climáticos extremos (Foto: Gleilson Miranda/Varadouro)




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