Abra o seu coração, poeta

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O céu de Cruzeiro do Sul passa a maior parte do tempo nublado, seja dia ou noite, a visão que predomina é o aglomerado de nuvens sobre nossos quengos. Essa foi uma das minhas maiores dificuldades de adaptação quando cheguei. Como cearense com um pezinho paraibano, sentia uma falta intensa de céus brilhantes de estrelas e pores do sol escandalosos.

Porém, eu logo entendi que quando o céu de Cruzeiro do Sul quer se amostrar, ele derruba o queixo de qualquer uma e com certeza foi debaixo desse céu que tive alguma das visões mais espetaculares desse cantinho do universo que chamamos de Via Láctea. Já foram chuvas de estrelas cadentes que rasgam o céu deixando um rastro verde atrás de si; meteoros que parecem roçar nossa atmosfera; raios dourados (juro) iluminando a noite e o próprio Cruzeiro do Sul tão perto da Terra que parece até rosário de casa de vó.

Boba que sou, depois dessa última visão em que pude realmente compreender o nome da cidade, senti que Cruzeiro tinha finalmente me aceitado como uma parte sua.

O último sábado de abril de 2024 foi um desses dias em que a gente pôde olhar bem para as estrelas, mas de outro tipo, dessas que despontam das palavras bem alocadas e bem ditas do jeito que só os poetas sabem. No complexo esportivo do Aeroporto Velho – ou como dizem por aí, “buraco do prefeito” – aconteceu uma disputa de Slam para escolher um dos poetas que irá representar Cruzeiro do Sul na 3ª edição do Acre Graffiti Festival Internacional De Culturas Urbanas, que ocorrerá no final de julho em Rio Branco. Além da competição, também houve apresentações de Rap dos Mcs Kaemize (@kaemizemc) e Spartakus (@spartakusmc).

Os muitos e infinitos céus de Cruzeiro do Sul, ou apenas CZS (Foto: Acervo Varadouro)



O Slam é uma expressão artística em torno da palavra, da poesia falada, na qual os poetas compõem e competem trazendo questões cotidianas desde as muitas periferias que se distanciam dos centros de poder. Ao lado do Rap, do Breakdance, do Dj e do Grafitti, constitui um dos elementos da cultura Hip Hop, movimento cultural oriundo dos guetos norte-americanos que se espalha mundo afora como uma das principais manifestações artísticas e de resistência do povo negro em diáspora.

Em Cruzeiro do Sul, o Slam Marginal (@slam_czs) é um grande exemplo, reunindo poetas, artistas de rua e jovens em torno da resistência cultural em uma cidade com poucas oportunidades institucionais para quem vive de arte. Para Kaeli, Slam Master do Slam Marginal, o slam representa os seus sonhos, sendo esse canal com potência de dar voz aos sonhos dos jovens, sejam iguais aos seus ou não.

Quem quer dizer algo encontra no Slam essa possibilidade, já que ele é “[…] um momento de fala e de escuta e é importante isso, né? Escutar e ser ouvido”. Escutar e ser ouvido talvez seja uma das premissas básicas de se viver em sociedade, embora seja um dos aspectos mais difíceis de se realizar de forma democrática, especialmente se estamos falando da juventude periférica da Amazônia.

Existe um imaginário estereotipado da Amazônia como um imenso verde intocado pelo ser humano e, embora estejamos em dos recantos de maior biodiversidade do planeta, também estamos em um lugar com cidades, com ruas que respiram arte e cultura o tempo inteiro, denunciando injustiças e fortalecendo potências.

A diversidade amazônida é de várias ordens, basta abrir o coração – como informa o grito de guerra do Slam Marginal. Em meio à insistente musicalidade sertaneja do Centro-oeste do país que abocanha as noites cruzeirenses, o Slam consegue nos proporcionar céus estrelados de poesia original inspirada “nas constelações do universo” e encharcada de “resistência ancestral”, para parafrasear versos de Sapatinho (@f3lip3_0liv3), ganhador da competição, e de Kaeli (@eukaeli), em seus poemas “Inspiração do universo” e “A melhor versão de mim”, respectivamente.


Registro da competição organizada pelo Slam Marginal (Foto de Arnan Gomes @arnangomes)




E me despeço com um pouco do som dos dois Mcs que se apresentaram na competição, a poesia fala por si só:







Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.

leonisia.mouraf@gmail.com

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