A Trégua da Flauta, filme de curta metragem do acreano Silvio Margarido – que teve seu lançamento mundial em Rio Branco, no Cine Recreio, no último dia 18 de setembro – pode ser interpretado como uma alegoria do estado em que vivemos, desde a origem, sob a condição colonial, para quem a sente com dor e para quem não a percebe, nem por isso deixe de sofrer as suas consequências. Sob tal prisma, o recepciono também como um convite a que reflitamos a respeito.
O enredo trata de um insólito encontro de dois seringueiros, amigos formados na labuta sem fronteira da sobrevivência de condenados da floresta – Abílio, brasileiro, e Rodrigo, boliviano. Encontro esse ocorrido numa ocasião de confronto bélico da chamada Revolução Acreana, quando se deparam em trincheiras opostas, separados em posição frontal de duelo, tornados inimigos de guerra.
Estão ali reduzidos a soldados decididos a matar um ao outro por supostas razões patrióticas substanciadas, como entendo, por razões de defesa de propriedades e interesses econômicos que não são exatamente razões republicanas tampouco suas.
Muito embora separados, estão numa posição comum, quero dizer que ambos se encontram nos mesmos dois lados da trincheira, precisamente aquela que ocupam fora do combate, o lado do afeto e o lado dos seus lugares de vida, sonho e liberdade, suas (contra) razões, seu lócus antagônico a tudo aquilo que, como expressão de poder subalternador, os colocou naquela condição.
Nesse contexto, são tornados dois colonizados em disputa insana dispostos a se matar justamente em nome da manutenção da condição colonial que lhes domina, explora e racializa. Motivo pelo qual, falo por mim, só é possível ver ali na cena um inimigo comum, que é pontualmente aquele que lhes coloniza. Este que, muito embora ausente de corpo – senão nos corpos dos condenados – é fundamentalmente determinante em seus infalíveis comandos ideológicos que consagram todo o movimento naquele cenário histórico.
O solo da flauta de Abílio em plena trincheira – a arte que se impõe sobre a violência – é que vai possibilitar uma brevíssima trégua para que os dois amigos, num sopro de consciência, se reconheçam naquela situação absurda e a questionem. Não o suficiente para fazer cessar naquele instante a condição de colonizados que segue. A guerra continua.
No entanto, se valendo da própria referência historiográfica da dita Revolução Acreana e também da Francesa de julho de 1830, o filme talvez insinue uma possível tomada de resistência e de esperança de liberdade, o que acontece quando surge, entre as ruinas dramáticas do combate, Angelina Gonçalves (considerada única personagem feminina acreana relatada na história da tal Revolução) empunhando arma e bandeira (numa referência ao quadro A Liberdade Guiando o Povo, do pintor Francês Eugene Delacroix), a avançar solitária, decidida e impávida na direção em que cá nós estamos.
Como nos chega essa personagem feminina, se é que ela conseguiu chegar até aqui, e em nome de que razão – com que armas e bandeiras – ela se coloca? Talvez seja muito improvável o cinema responder essas questões. O que não é mais importante do que o que ele efetivamente faz que é nos fazer produzir interpelações do estilo, para aquém e além dele, enquanto trégua para pensar nesse mundo de intensa guerra contra o discernimento em que vivemos. O filme acaba, mas a história não.
João Veras é poeta, músico e escritor acreano. Publicou, entre outras obras, Seringalidade, o estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta, pela editora Valer, 2017.