O pequeno e empobrecido estado do Acre amanheceu ontem, quinta-feira 16 de dezembro, sacudido com a notícia de que viaturas da Polícia Federal estavam nas rampas do Palácio Rio Branco e nas casas do governador Gladson Cameli, do Progressistas. Ficar sacudidos já estamos acostumados pelos comuns tremores de terra sentidos por essas bandas do Brasil. O que aconteceu foi mesmo um terremoto político diante da revelação do maior escândalo de corrupção da história do Acre, revelado por meio da operação Ptolomeu.
Não é de hoje que a PF no estado realiza grandes operações de combate à corrupção – e não será a última. Todavia, nunca antes na história revolucionária deste povo tivemos uma que chegasse tão perto do chefe do Executivo estadual, a ponto de viaturas serem colocadas nos acessos ao Palácio Rio Branco, e agentes federais “invadirem” o gabinete do governador no prédio sede do governo.
Ver a pessoa do jovem governador Gladson de Lima Cameli, 43 anos, investigado por possível participação num esquema de corrupção que teria movimentado quase um bilhão de reais, causou estranheza para muita gente – inclusive a este ingênuo jornalista.
Afinal de contas, o que mais ouvimos por aqui é a teoria de que Gladson Cameli não precisa da política nem ser corrupto nela para ganhar dinheiro e viver a vida luxuosa que ostenta num dos estados mais pobres da federação. Apenas um dos relógios usados pelo governador seria suficiente para comprar centenas, talvez milhares, de cestas básicas para tantos acreanos que nada têm para comer.
Não tenho nada contra se levar uma vida luxuosa graças a uma conta-corrente e um cofre ultra-seguro cheio de grana. Cada um trabalha e acumula aquilo que quiser. Mas passar a imagem de bom samaritano e rapaz humilde melando seus sapatos caríssimos na periferia de Rio Branco não cola.
De fato, Gladson Cameli nasceu num esplêndido berço de ouro – privilégio para poucos num estado tão desigual quanto o nosso. E de fato ele não precisaria estar na política, muito menos trabalhar, desfrutando de toda a riqueza construída pela família Cameli ao longo das últimas cinco décadas. Mas a dinheirama de Gladson não é fruto apenas dessa graça divina de nascer rico; ela também é resultado de seus 15 anos vivendo na e da política, ganhando muito bem obrigado e tendo todas as suas despesas pagas com recursos públicos.
A família Cameli é formada por pessoas trabalhadores e que têm o empreendedorismo nas veias. É dona de empreiteiras, estaleiros, posto de combustível, supermercados, emissoras de televisão e rádio e por aí vai. Além do mundo dos negócios, os Cameli também são muito eficazes na política. O primeiro a entrar nesta seara foi o tio de Gladson, o ex-governador Orleir Messias Cameli, que governou entre 1995 a 1998. Orleir morreu em 2013 vítima de câncer, mas isso não nos impede de o classificarmos como um dos piores governos da história do Acre. Não vou entrar em detalhes sobre o período. Quem é acreano sabe do que falo.
Além de Orleir, apenas Gladson decidiu se arriscar no mundo selvagem da política. De acordo com ele, a política está em suas veias, é um obstinado pelo poder e quis ser governador para fazer Justiça à memória do tio, a quem diz ser vítima de uma ação perseguidora e caluniadora dos 20 anos de PT. Não sabemos qual ação é essa, pois foi justamente nas duas décadas de petismo que a família Cameli mais obteve contratos com o poder público, ampliando ainda mais seu patrimônio milionário.
O riquíssimo e jovem Gladson Cameli entrou para a política em 2006, quando a família Cameli oficializou sua aliança com os irmãos Viana – indicando até o vice na chapa do PT para o governo. Aos 28 anos de idade, Gladson foi eleito deputado federal pelo PP, partido onde sempre esteve. O Acre tem apenas oito cadeiras na Câmara dos Deputados. Obter uma delas custa muito dinheiro nas campanhas – e dinheiro não era problema para ele.
Em 2010 foi reeleito. Ao longo dos anos foi construindo sua trajetória política. Amplia sua base eleitoral para todo o Acre, saindo do Vale do Juruá, região de hegemonia econômica e política dos Cameli. Visto como uma jovem liderança, carismático e popular logo caiu nas graças do eleitorado. A partir daí começou a construção da imagem do político que não precisava se lambuzar com a corrupção da política por já ser um milionário. “Eu não preciso da política”, costuma dizer.
Assim consolidou sua imagem para ser um político além de mandatos na Câmara, sendo o único capaz de derrubar a hegemonia do PT e dos irmãos Viana. Em 2014 entrou como vencedor na disputa pelo Senado, quando apenas uma vaga estava disponível. Dali já saiu como o candidato a governador de 2018. Derrotou, no primeiro turno, o PT, pondo fim a 20 anos de domínio político da esquerda acreana.
Em tempos de lavajatismo, bolsonarismo e combate à corrupção a imagem do rico que jamais iria roubar os cofres do estado por não precisar apenas se consolidou. Entretanto, aos poucos os primeiros escândalos de desvio de verbas públicas foram surgindo no andar de baixo do governo. Eram “casos isolados” em secretarias e autarquias que o próprio governador mandava a polícia investigar. Seus aliados logo o enalteciam pela coragem de não ter medo de cortar na própria carne, e não abafar as investigações – como era bastante comum nos governos passados.
Daí o mito de incorruptível e o rico que não precisa da política ficava mais forte, sua popularidade em alta. Como a vida é cheia de poréns, mais e mais casos de corrupção foram aparecendo. Nas conversas de boteco e nas rodas das praças o assunto não era outro: o Acre estava sendo invadido por empresas de Manaus. Por essas bandas do Aquiry se diz que empresas de Manaus vendem do Cotonete ao alfinete para o governo Gladson Cameli.
Mas por que tantas empresas manauaras cruzaram a linha Cunha Gomes? Vamos lá. Além do Acre, a família Cameli tem fartos tentáculos empresariais e políticos no Amazonas. As empreiteiras do pai do governador, o senhor Eládio Cameli, estão sediadas em Manaus.
Ele mantém estreita relação com os principais caciques políticos de lá; de Amazonino Mendes a Eduardo Braga, passando por Omar Aziz e José Melo. Por Manaus é visto como um bom doador de recursos financeiros para as campanhas desta cacicada. Como moeda de troca, vence grandes licitações do governo do Amazonas. Além de casas em Rio Branco e Cruzeiro do Sul, Gladson Cameli também tem comprovante de residência na capital amazonense.
Com tamanha influência da família Cameli por lá, nada mais normal que seus amigos e amigas viessem ganhar dinheiro aqui – ainda mais com um aliado sentado na cadeira de governador e com as chaves dos cofres nas mãos. O problema é que ultrapassaram todos os limites. Até emissoras de televisão de Manaus se instalaram em Rio Branco – talvez de olho na milionária verba de publicidade usada para calar a imprensa local.
O Acre se tornou o oasis para empresas manauaras ganharem dinheiro. Este paraíso ganhou até um nome: a República de Manaus. E é essa republiqueta que a Polícia Federal e a Controladoria Geral da União investigam por suposta movimentação de ao menos R$ 800 milhões dos cofres da saúde e da educação. Conforme a PF, uma verdadeira organização criminosa foi montada dentro do Palácio Rio Branco para desviar recursos do cidadão acreano, lavando a grana surrupiada com relógios, jóias, casas e carros de luxo.
Foi por conta desta relação tão próxima entre o governo do Acre com empresas de Manaus que o Superior Tribunal de Justiça autorizou a PF a fazer buscas e apreensões nas casas e empresas da família Cameli no Amazonas. Dessa forma, ao que tudo indica, a República de Manaus começou a ruir com a deflagração da operação Ptolomeu.
É óbvio que tudo está apenas no começo. Todos os investigados terão o amplo direito de defesa garantido. Mas é certo que uma Corte tão criteriosa como o STJ – afastada léguas de distância do ambiente político do Acre – não iria atender a pedidos da polícia para cumprir mandados na casa do governador e na sede oficial do governo caso as provas apresentadas não fossem tão robustas.
O povo acreano não merecia a vergonha nacional de ver o histórico e formidável símbolo do Estado ser ocupado por agentes e viaturas policiais. Que as investigações prossigam no devido processo legal, e que a sociedade saiba como de fato se dava essa relação (nada republicana) entre o governo do Acre e empresas de Manaus.