Os sulistas que adquiriram as terras do seringalista Zeca Paixão, no Alto Acre, jamais pensaram em dificuldades para “limpá-las” dos posseiros que viviam ali havia dez, vinte, quarenta anos. A prática de expulsões por simples ameaça ou através de indenizações irrisórias, sob pressões, tinha sido eficaz em outras regiões do Acre, e não haveria de ser diferente naquela cabeceira de rio, nas proximidades da estrada entre Brasileia e Assis Brasil.
Pelo menos duas dezenas de posseiros já haviam cedido à eficiência do “método”, os desmatamentos e pastagens já avançavam, seguindo as orientações dos novos proprietários, e no máximo eram previstos aborrecimentos que um capataz durão saberia contornar.
O aparecimento de uma mulher, dona de uma colocação, que sabia lutar por seus direitos e arregimentar pessoas, falando em resistir foi, para eles, algo absolutamente inusitado, diante do qual só lhe restava ceder um pouco, para não correr o risco de perder muito.
Valdiza Alencar de Souza era, na verdade, apenas uma mulher decidida que aprendera a lutar pela via do sofrimento. Nascida às margens do rio Macauã, com treze anos já estava casada e com 35 era mãe de 15 filhos, dos quais restariam apenas seis vivos, e somente dois em sua companhia.
Ela mesma diz que nunca teve medo de enfrentar os problemas, talvez por ter assimilado a coragem dos índios Maronaua, no meio dos quais viveu parte de sua vida. Nesse tempo, morava na praia, nas cabeceiras do rio Acre, “onde se atravessa com uma passada”.
“Bolando nesses seringais – diz ela – fomos morar, eu, meu marido e meus filhos no seringal “Sacado”, que pertencia ao seringalista Zeca Paixão. Meu marido e eu fizemos estrada de corte, um pequeno campo e távamos começando a levantar uma casa quando as terras foram vendidas para uns paulistas. Eles começaram a derrubada da mata, iam derrubando e tomando devagarzinho as colocações. Aí a seringueirada ficou revoltada, porque procurava os seus direitos e não encontrava”.
Procurar direitos foi exatamente o que Valdiza fez melhor que os outros. Depois que os sulistas foram a sua colocação dizer que não devia plantar mais nada e aguardasse uma indenização para abandonar as terras, não sossegou mais. Primeiro tentou reunir 10 seringueiros para vir a Rio Branco procurar as autoridades, mas só encontrou “esmorecimento”.
Depois decidiu sair sozinha, para expor a situação ao Incra. “Uma doutora que me atendeu virou pra mim e disse que o que Castelo Branco tinha assinado e Médici confirmado, não tinha mais valor nenhum”.
“A seringueirada reunida”
Coincidiu com a fase aflitiva de dona Valdiza a instalação, em Rio Branco, da delegacia regional da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), organização de defesa do homem do campo, que, a partir de novembro de 1975, criaria sindicatos de trabalhadores rurais no Acre. O delegado da Contag, João Maia da Silva Filho, prometeu ir à sua “colocação” reunir com os posseiros, e Valdiza voltou ao seringal para fazer a arregimentação do pessoal.
Ela recorda: “A seringueirada reunida, foi aquela animação. Uns ainda tinham dúvida de que alguém vinha fazer algo por eles. A não ser o padre, nunca ninguém tinha entrado naquelas brenhas pra falar com seringueiro. Diziam que de conversa fiada e promessa estavam de barriga cheia. Quando a Contag chegou, foi aquele burburim. Fiquei tão emocionada e chorei. A reunião aconteceu e ficou marcado o dia 21 de dezembro (1975) para a fundação do Sindicato Rural de Brasileia”.
João Maia (falecido há duas semanas no município de Senador Guiomard, distante 28 km de Rio Branco) era um homem instruído e com experiência junto aos trabalhadores na vida rural: fez Filosofia na Universidade de Montreal, viveu um tempo nos kibutzes de Israel e no seu estado (SP) desenvolveu estudos de economia rural. Falava seis idiomas, mas poucas pessoas sabiam disso. Bastava, para ele, aproximar-se dos seringueiros como um deles.
Cerca de três mil seringueiros, posseiros e agricultores compareceram à fundação do Sindicato de Brasileia . Apesar das limitações que tem dentro da atual estrutura fundiária brasileira, a Contag conseguiu fazer valer direitos dos posseiros mobilizados em oito sindicatos da categoria no Acre.
Muitos deles garantiram o seu lote (colocação), e Valdiza, que fez parte da diretoria da organização sindical, acabou trilhando por conta própria o caminho dos que, expulsos da floresta, iam formar o cinturão de miséria na capital, e até em Cobija, cidade boliviana na fronteira.
Deixou o marido e, com dois filhos pequenos, veio morar no bairro Aeroporto Velho, em Rio Branco.
“Eles são assim”
Todos os moradores do bairro sabem onde é o barraco de Valdiza. “A qualquer hora do dia ou da noite – conta um morador – ela está sempre pronta para ajudar o pessoal daqui. Alguém que vai ter um filho, ou que está doente, sempre conta com a sua ajuda”.
Essa mulher que agora tem 39 anos (1978) mantém vivo o seu espírito de liderança já testado nos seringais, e não apenas carrega os companheiros de infortúnio para os hospitais, com sua desenvoltura. Mesmo tendo que cuidar de sua própria sobrevivência e de dois filhos, ela ainda encontrava momentos para refletir sobre a miséria dos seus semelhantes:
“A maioria desse pessoal que mora aqui, depois de expulso do seringal – esclarece – tá penando. Não é vivendo não, é penando mesmo. O Sr. (repórter) não sabe a fome que passam. A miséria aqui é grande, é pra isso que as autoridades têm que olhar”.
Dona Valdiza está autorizada a falar de seu povo, de seu sofrimento, de suas lutas e decepções. Ela emite opinião sobre os políticos com indisfarçável amargura: “Eles são assim, na época de eleição, tomam café com a gente, entram na casa do pobre, sentam na mesa e comem; depois desaparecem. Das duas uma: ou não conhecem os nossos problemas, ou fazem que não conhecem. O certo é que estão muito longe do nosso dia-a-dia. Por exemplo, nós passamos por todo esse problema de ter que vir para a cidade, perdendo as terras, e não conheço nenhum político que tenha apoiado os seringueiros”.
Olhos muito vivos, um sorriso largo que não foi desfeito pelo sofrimento, Valdiza, tornada cidadã riobranquense, passa a mão na cabeça dos filhos, dizendo “vou educar esses dois”; e o faz de uma maneira que ninguém, mesmo os que não a conhecem, poderia duvidar.
Gente assim morre de sonhos e aflição. Foi assim que a Mulher do Sindicato partiu, alguns anos depois, deixando um legado de luta e amor.
*Texto publicado no jornal Varadouro, edição nº 7, de fevereiro de 1978.
** João Maia faleceu há duas semanas (2024) em Senador Guiomard, após sofrer problemas estomacais.
Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, criou o Varadouro na década de 1970. Foi correspondente do jornal O Estado de São Paulo, integrando a equipe da sucursal da Amazônia. Também trabalhou na imprensa do Acre, Amapá e Pará. Escreve atualmente nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.
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