A Lei Sergio Taboada e as velhas armadilhas do simulacro colonial

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Neste artigo, questiono a lei estadual Sergio Taboada que cria a Semana da Música Acreana sem a perspectiva institucional efetiva de se dispor a alterar o status histórico-colonial de inexistência/desconsideração da expressão musical e seus criadores locais. Em contraposição, proponho uma política pública que não seja eventual e enganosa, mas programática-estrutural de consideração/descolonização da arte musical acreana.


“E o tal ditado, como é? Festa acabada, músicos a pé, músicos a pé, músicos a pé, músicos a pé!” (Cantando no toró, de Chico Buarque)


Começo interpelando que efetiva eficácia terá uma lei se não significar fazer do seu objetivo uma realidade no mundo sociocultural para o qual foi criada? Para que serve uma homenagem – com suas medalhas, certificados e utilização de nomes – se não significar tirar o homenageado, sua obra e sua história, da condição nada gloriosa de ignorado/colonizado justamente dentro do próprio território geocultural em que viveu e criou?

Como se pode observar, as respostas integram as próprias perguntas. Por elas, estamos diante de um arranjo claro: Uma lei inócua, uma homenagem fingida.

O meu esforço daqui para frente é desenvolver as razões que considero possam justificar tal configuração, o que proponho pelo diálogo aberto sobre atividades republicanas como fazer leis e conceber e administrar políticas públicas no campo da cultura no Acre.

MAIS QUE UMA GERAÇÃO A SE IGNORAR, O MESMO QUE COLONIZAR



Na foto que ilustra este texto, estamos, em primeiro plano, Chico Chagas, na sanfona; Sergio Taboada, no violão; Césio Medeiros, na percussão, e eu com a flauta transversal nas mãos, mas naquele instante só pensando. Estávamos em plena cena de um dos tantos shows que fazíamos na década de 80, quando a música acreana urbana emergia como uma invenção social, estética e política de força potente, expressiva e singular.

Vendo o ontem hoje, que destinos tínhamos? Chico, compositor e exímio instrumentista, teve que sair do Acre para poder viver de música. Sergio, que sempre viveu a música como seu criador sem precisar viver dela, faleceu precocemente no ano de 2022, em São Paulo, onde morava. Césio desistiu muito cedo logo por ali mesmo, foi cuidar da vida. E eu aqui ainda insistindo em existir pela expressão da escrita e de outros instrumentos sonoro-ruidosos deste meu pensamento-ação desassossegado.

Conheci Sergio nesse período da foto. Os dois com seus vinte e poucos anos. Ali vivíamos com outros tantos artistas um período de intensa criação estética e luta política em Rio Branco. Era tudo junto. Foi a partir daí que construímos parcerias artísticas, políticas e de afetos.

Nossa luta no campo da música, como tem sido a luta de cada compositor local, sempre foi a de tocar/cantar, ser tocado/ouvido, portanto, de existir. Ninguém deseja cantar para ouvidos moucos. Principalmente aquela geração, filha de festivais em tempos de ditadura militar, tão compromissada com questões e temas locais, cuja audição/atenção desejada ia muito além da função e objetivo ditos estéticos musicais. Tínhamos muito a dizer e a agir.

Agora vivemos outros tempos não menos livres das ditaduras culturais subliminares em seus gestos de simulacros-coloniais. Venho já há algum tempo observando, pensando e espalhando que – a depender das políticas estatais de educação e de cultura, das investidas brasilcentristas do mercado cultural e circuito acadêmico de importados, bem como da condição ativa/inativa da sociedade que disso tudo se alimenta – continuamos na lida a cantar e tocar para ouvidos moucos. É por isso que não duramos como um valor próprio para essa estrutura de existência social colonial/colonizada sob a qual vivemos. Tem sido assim, mas não sem a nossa resistência, que é a resistência da criação!

A LEI SERGIO TABOADA

Mas eis que uma notícia alvissareira para a música local veio ao mundo em 2023 como um fato jurídico relevante. A da promulgação de uma lei estadual que se propõe a alterar essa realidade. Coloquei a minha fiel pulga de estimação atrás da orelha e corri para ver se é isso mesmo.

A lei, batizada, pelo próprio texto legal, de Lei Sergio Taboada, é a de nº 4.176, de 5 de outubro de 2023, publicada, no Diário Oficial do Estado de nº 13.631, páginas 1 e 2, no dia 6 de outubro de 2023.

Importa registrar que, no site da Assembleia Legislativa do Acre, referida norma está publicada de forma erroneamente alterada:. É que em tal “versão” consta que os artigos 2º e 3º foram vetados. O que vale para efeito jurídico é o texto de lei publicado no Diário Oficial, onde não há qualquer veto. E será sobre este texto que continuarei aqui falando.

Pois bem.

Oriunda do Projeto de Lei nº 84/2023, de autoria do deputado Edvaldo Magalhães, a norma institui, por seus quatros artigos, a Semana da Música Acreana, a ser comemorada, todo ano, por ocasião da primeira semana do mês de agosto, cabendo à Fundação Estadual de Cultura Elias Mansour, em parceria com a Associação dos Músicos do Acre, a sua realização com a promoção de shows, saraus e workshops.

Pelo texto da norma, seu objetivo é fortalecer a música autoral acreana dentro do território do Estado. De forma pragmática, isto se dará pela obrigação de que a apresentação dos trabalhos dos artistas participantes nos eventos da semana deverá ter no mínimo 80% de autoria própria.

A pulga atrás da orelha não se segurou e gritou no meu ouvido: “Vão adotar sempre o mínimo! Esse povo não vive sem querer ser o outro! Por que não logo os 100%? É só uma semaninha anual… Está escrito que os outros vão levar os 20%”. Eu só pedi calma à pulga, por enquanto.

DE BOAS INTENÇÕES E AÇÕES NEM TANTO.

A intenção da homenagem ao Sergio é justa e merecida. Ele de fato simboliza o(a) compositor(a) acreano(a) urbano(a) padrão, aquele(a) célebre desconhecido(a) que quase não circula em lugar nenhum no território acreano, tampouco fora dele. Taboada, apesar de ignorado, não reconhecido, nunca deixou de resistir como criador. Fato que o fez deixar um legado musical, cujo registro se deve tão-somente à sua iniciativa, às suas próprias custas, prazer e dor. Eu poderia citar mais nomes que estiveram e estão na mesma condição. Mas Sergio, nisso a lei acerta, nos representa muito bem no sentido que estou aqui a tratar.

A ideia da lei parece ser bem intencionada e necessária por razões óbvias. Já falei. É que a música acreana tem sido tratada como um fenômeno cultural que quase ninguém sabe que existe justamente no lugar geocultural de sua criação. Quase não toca no rádio, na televisão, nas casas de shows, bares, teatros, supermercados, nas redes sociais… Quase não frequenta as escolas, os museus, não sai das fronteiras locais, não é referência, não tem passado, presente e, por isso, futuro.

É justamente nesse contexto que, em contraste, a pseudo universalista música popular brasileira não se desgruda de nossos ouvidos, memórias e visões, em suas mais diversas versões que nos chegam pela indústria e mercado culturais, versões estas nas quais a expressão sonora acreana não é considerada, se muito reduzida ao gueto da regionalidade maculado pela pecha de menoridade estética.



“Penso que uma lei que busque de fato fortalecer a música acreana, ao invés de obrigar a Fundação de Cultura a realizar evento de uma semana, deveria impor-lhe que cumpra a sua obrigação constitucional, isto é, que faça o que nunca fez, que é adotar políticas programáticas permanentes de fomento, de valorização, de difusão, de registro, pesquisa e guarda da memória da cultura musical acreana, seu produto, seu produtor, sua história.”



Já reclamei publicamente em outros escritos um Museu da Imagem e Som, tentando salvá-la, pelo menos, no/do futuro. De nada valeu e tem valido esses gritos diante das sucessivas gestões culturais do Estado e também do município de Rio Branco, essas mentes moucas desse eterno presente.

É que estamos envoltos em uma estrutura histórica colonizadora que nenhuma conjuntura política deseja e consegue alterar. É que ela é um projeto em plena e forte execução concreta e também mental que envolve, desde a origem, todos os campos da sociabilidade estética e para além dela.

Por esse contexto, a música acreana sempre foi, desde a nascente, uma daquelas expressões cada vez mais raras, para poucos. Não obstante a resistência que lhe mantém viva, ela, por essa condição, foi – e continua sendo – feita para não permanecer na história cultural de seu lugar. E assim vai sumindo com a morte de seus criadores.

Noutros tempos tínhamos ao menos um festival anual, o FAMP- Festival Acreano de Música Popular, que levava o seu nome e lhe dava status de certa existência, seja pela visibilidade na imprensa, pelo registro fonográfico de novas obras combinado com o surgimento e circulação de novos artistas, novas obras. E tudo 100%! Hoje nem isso. Minto. Agora teremos uma semana anual com direito a se chamar de sua. “Mas só em 80%”, grita a pulga aqui atrás!

AS VELHAS ARMADILHAS DAS APARÊNCIAS

Diante deste quadro histórico, não se pode afirmar que esta lei não pareça ter importância e não seja oportuna. O problema é que ela carrega consigo um importante problema. A de não só cair na armadilha do evento como a de justificá-la e reforçá-la, estabelecendo e mantendo um ambiente de aparências pelo qual é servida para encobrir e desviar a nossa atenção para questões de fundo política e culturalmente determinantes.

Falo de evento no sentido de algo episódico, passageiro. Uma brisa que passa. O contrário das ideias de estrutura, sistema, permanência. Porque, nesse sentido, o que essa Lei diz é que antes e depois da Semana da Música Acreana tudo se manterá como sempre se manteve nesse campo de escutas colonizantes. O legislador sem ter consciência disso (ou tendo) pode estar querendo dizer, e diz, que nos outros 358 dias restantes do ano permanece liberado que se continue ignorando/colonizando a expressão musical local, seus criadores, sua história.

O QUE SERIA UMA POLÍTICA DE CULTURA NÃO EVENTUAL

Penso que uma lei que busque de fato fortalecer a música acreana, ao invés de obrigar a Fundação de Cultura a realizar evento de uma semana, deveria impor-lhe que cumpra a sua obrigação constitucional, isto é, que faça o que nunca fez, que é adotar políticas programáticas permanentes de fomento, de valorização, de difusão, de registro, pesquisa e guarda da memória da cultura musical acreana, seu produto, seu produtor, sua história.

Que sejam políticas programáticas que não se reduzam – como tem acontecido desde sempre – às políticas de editais, de balcões e de realização de eventos – esses tipos de ações fincadas em condicionalidades prenheis de formalidades burocráticas que só têm servido à manutenção do status quo colonial. Estou pensando, por outro lado, em políticas públicas que, a meu ver, enfrentem a raiz da questão que é, fundamentalmente, de formação de mentalidade estética-política colonizadora/colonizada. Estou me referindo, como questão fundamental, a essas políticas que nos põem a não reagir e a negar o que nos cala e coloniza, mas a reproduzir e copiar.

Que o Estado aja no sentido contrário, assuma ações no sentido de envolver toda a sua estrutura institucional de educação estética-cultural que dispõe, como as redes de ensino estadual e municipais, a Escola de Música do Acre e o curso de Música da Universidade Federal do Acre-UFAC, todos núcleos fundamentais para a formação, a pesquisa, a circulação, o registro e a memória, portanto, para a efetiva difusão e valorização da diversa e múltipla expressão musical que se produz por aqui.

Instituições estas – algumas das quais como a Escola de Música, que têm atuado fortemente mais como centros de culto e difusão do ensino da técnica artística tida como neutra (da reprodução pela reprodução) – que passem a atuar também como centros de criação, difusão, valorização, pesquisa, memória, proteção e problematização do pensamento e da expressão estéticas do lugar.

Nesse mesmo sentido, a lei deveria envolver o sistema de comunicação do Estado como núcleos fundamentais de divulgação das expressões culturais locais em todo o território acreano e para além dele. Envolvimento esse a possibilitar que as redes de comunicação estatais e privadas adotem cotas de difusão diária da expressão sonora daqui.

Adotando em seus currículos disciplinas e programas sobre a música acreana, suas estéticas, seus compositores e suas histórias, o poder público local, com isso, deixará de desconsiderar o Acre como um território geocultural também de valor criativo-produtivo, e não só, como acontece, reprodutivo, copiador, consumidor.


Cantoras acreanas durante o show Boca de Mulher (Foto: Agência de Notícias do Acre/2010)




Estou apontando onde se encontram os eixos centrais da formação, valorização e manutenção do gosto estético musical. O que noutro lugar tenho chamado de modo de produção da colonialidade estética no Acre. Modo que tem instituído e mantido esse gosto que ignora/coloniza o que fazemos, que é o mesmo gosto que consome e endeusa o que os outros fazem. São os dois lados da mesma face colonial.

Sabemos que as demais áreas artísticas passam pela mesmíssima situação. A diferença a partir de agora é que só a música tem a sua semana e desse tipo. A pulga exclama: “E daí, o que muda?”

De fato, estou a tratar de uma questão de escolha/ação política de Estado, de política pública de cultura, de política pública de educação, de política pública de comunicação, no caso aqui, por este prima, limitada às ações institucionais republicanas. É por onde ainda é possível se valer diante da inércia social como escuta decolonial.

Uma semana resolve? Óbvio que não! Uma política cultural nos moldes constantes da Lei Sergio Taboada não tem, nem de longe, como alterar o status em que se encontra a expressão musical local. Todavia, em um ambiente de política pública programática-estrutural como estou a pensar, a Semana da Música Acreana será importante como um dos eventos – e não só o único – do circuito ordinário de atividades culturais pelo qual se expressa concretamente a valorização da produção musical local.

Não estou a tratar de uma política de cultura que faça vistas grossas à força da indústria e mercado culturais, com seus produtos de massa produzidos no Sudeste do país a ocupar os ouvidos locais como a referência da qualidade não só mercadológica, mas também estética-musical. Quando proponho ação estatal, estou propondo que o Estado se posicione não mais tão-somente a serviço dessa indústria e mercado como tem acontecido. Lembrem, por exemplo, de seus maiores eventos em que quem tem a supremacia do valor cultural e financeiro são senão os produtos e artistas da indústria cultural.

Estou falando não de evento, isso que é a forma pela qual a expressão artística tem sido normalmente tratada pela indústria cultural, mas de uma ação que busque frear a sanha colonizadora pela qual institui a falsa crença de que o que é bom – tem qualidade – é sempre obra do mercado e do que as mídias e academias eurocêntricas e brasilcêntricas dizem ser, lugares estes em que a música acreana – e as demais expressões artísticas – têm sido sistematicamente barrada-ignorada-subvalorizada e aos quais ela deva se pautar, se reduzir, se dobrar como cópia do padrão externo sob pena de não existir.

Ademais, é preciso dizer que os efeitos desse quadro colonizador sobre o qual me refiro, vão muito além do aspecto político-cultural no sentido da valorização da expressão estética local. Ainda aqui neste breve escrito é possível fazer referência a, pelo menos, mais três a ele diretamente relacionados.

O primeiro diz respeito à redução que esse sistema colonizante emprega na sociedade local, como se ela fosse tão somente uma massa culturalmente acéfala de consumidores, e de consumidores de produtos importados. O segundo toca no aspecto econômico, é que frente a esse regime de importação, nos tem sido negado a possibilidade da existência de indústria e de mercado internos próprios voltados para a criação e circulação da música local e também de sua exportação.

O terceiro no que envolve a ideia de identidade própria e de autoestima em relação à mesma, justamente o contrário do que ocorre no contexto colonizante que busca fazer sumir a identidade e, por sua vez, a possibilidade de sua autoconsciência e autovalorização como bens de valor cultural e também político.

Portanto, não se trata de obrigar a se consumir e a se gostar do que fazemos, tampouco não consumir e não gostar dos que os outros fazem. A guerra não é essa. Trata-se de alterar essa política estatal que nos impede de existir enquanto portadores de identidade própria, inclusive estética. Falo de um tipo de defesa por uma subsistência histórica estética-cultural digna em luta contra uma política cultural que nos tem levado à categoria da inexistência. Por essa percepção é que a Lei Sergio Taboada se apresenta muito mais como um evento legal de simulacros coloniais. Não podemos continuar a assistir e bater palmas para isso!


João Veras é poeta, músico e escritor acreano. Publicou, entre outras obras, Seringalidade, o estado da colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta, pela editora Valer, 2017.

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