A INTOLERÂNCIA PERSISTE

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Bloqueio do Ramal do Barbary pela Justiça faz Jaminawa serem vítimas de discurso de ódio

Ao passar dentro de território indígena, e sem consultar o povo afetado, Ramal do Barbary teve suas obras suspensas por ordem do TRF1, em Brasília (Foto: Secom/Acre)




Ao descumprir todas as normas legais do devido licenciamento ambiental, o Ramal do Barbary teve sua construção bloqueada por ordem da Justiça, a partir de ação movida pelo Ministério Público. Agora, o povo Jaminawa é vítima de ameaças e racismo ao ser responsabilizado pela não conclusão da estrada que liga Porto Walter a Rodrigues Alves. Cacique diz que bloqueio acontece pelo fato de a lei não ter sido respeitada, e seu povo não tem culpa. MPF abriu investigação.


Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco

O projeto para a construção de uma estrada interligando o município de Porto Walter a Rodrigues Alves e consequentemente a Cruzeiro do Sul coloca o povo Jaminawa do Igarapé Preto na delicada situação de ser acusado, pela população local, de “travar” a execução das obras. Conhecida como “Ramal do Barbary”, a estrada é vendida por políticos locais como a solução para acabar com os impactos ocasionados pelo isolamento rodoviário.

Hoje, no Vale do Juruá, Porto Walter e Marechal Thaumaturgo só são acessíveis por via aérea ou fluvial. Durante os meses do verão, quando o rio Juruá chega a níveis críticos de vazante, os dois municípios enfrentam crise de abastecimento de mercadorias e combustíveis, já que toda a carga é transportada por embarcações.

Ao a classe política de Porto Walter e Cruzeiro do Sul – com o apoio do governo Gladson Cameli (PP) – decidirem abrir o ramal atropelando todas as regras de licenciamento ambiental, áreas de floresta da Terra Indígena Jaminawa do Igarapé Preto também foram derrubadas.

Com o problema detectado por imagens de satélite, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acionou o Ministério Público Federal (MPF) para que medidas judiciais fossem adotadas para se evitar mais danos ao território Jaminawa.

“Nós, povo Jaminawa aqui do Igarapé Preto, ninguém é contra o ramal. A gente é contra a ilegalidade, né? Da forma que foi feito, da forma que sendo feito. Essa forma aí é que nós não queremos. Do jeito que a gente não aceita dessa forma, né? A ilegalidade”, afirma o cacique-geral José Silva Jaminawa, em entrevista ao Varadouro.

Uma das questões apontadas pela liderança é a de que o Estado faça a devida consulta livre, prévia e informada ao seu povo, respeitando o que determina a legislação. O processo de escuta aos povos tradicionais afetados por projetos de infraestrutura é estabelecido pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

“E a gente já sofreu muito, né? E vem sofrendo muito nessa questão de racismo. É ameaça, né? Que eu pelo menos, infelizmente, já fui ameaçado várias vezes, que a gente é o culpado desse ramal não sendo feito, mas nós não somos culpados”, afirma a liderança. “Eu acho que as autoridades aí, as pessoas que têm interesse no ramal, é que são os culpados, porque antes se eles tivessem feito a consulta, tivesse feito tudo dentro da lei, hoje não tava acontecendo isso, né?.”

José Silva reitera que o povo Jaminawa não é contra a conexão rodoviária de Porto Walter com o restante do estado, mas que todos as garantias e seguranças seam assegurados para evitar (ou amenizar) impactos ao território. Na Amazônia, a abertura de estradas é um dos principais vetores para o avanço do desmatamento, sobretudo para ocupação da terra pela agropecuária.

“O povo Jaminawa não é contra o ramal. O povo Jaminawa é contra a ilegalidade. Se tudo tiver legal a gente aceita, agora do jeito que ocorrendo é que a gente não aceita. Nós queremos nossos direitos, nós precisamos ter nossos direitos respeitados. Nós precisamos da garantia. Nós precisamos ter garantia, segurança”, pondera a liderança.

“Isolada” do restante do Acre, a cidade de Porto Walter depende do rio Juruá para manter seu abastecimento (Foto: Fabio Pontes/Varadouro)



A resposta da Justiça

Em 2022, o MPF, em conjunto com o Ministério Público Estadual, ingressou com ação civil pública contra as prefeituras de Porto Walter e Cruzeiro do Sul, além do governo Cameli, o Departamento de Estradas e Rodagens do Acre (Deracre) e o Instituto de meio Ambiente do Acre (Imac) para que a abertura do Ramal do Barbary fosse interrompida.

Para os MPs, havia uma série de flagrantes de irregularidades no empreendimento, como a ausência da condicionante indígena no licenciamento do Imac (feito que “nas coxas”). A ação deixava claro que não houve a devida consulta livre, prévia e informada aos Jaminawa. O resultado não poderia ser outro: em dezembro de 2023, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou a suspensão de qualquer intervenção e o bloqueio do trecho do Ramal do Barbay que passa dentro do território indígena.

Mesmo com a ordem judicial, em julho do ano passado, o deputado federal Zezinho Barbary (PP) foi flagrado, por meio de audios de Whatsapp, orientando seus assessores a “contratar” Jaminawa para que auxiliassem outras pessoas a retomar a abertura do ramal “na marra”. As primeiras “picadas” para conectar Porto Walter a Rodrigues Alves foram feitas quando Barbary ainda era prefeito do município.

Obviamente que a Justiça reagiu e reforçou a proibição de qualquer intervenção. Para “adaptar” a obra, o Deracre informou que fez um desvio para o traçado não mais passar dentro da terra indígena. Mesmo assim, o licenciamento está cheio de falhas. Como aponta a ação civil, a falta de cuidados do empreendimento causas impactos não só ao território Jaminawa como a unidades de conservação federal e estadual no entorno.

O deputado federal Zezinho Barbary (PP), que tenta abrir ramal a toque de caixa, com apoio do governo Cameli (Foto: MyKe Sena/Câmara dos Deputados)



Vítimas de preconceitos

Desde a intervenção judicial no caso, os Jaminawa do Igarapé Preto são vítimas de ameaças e ataques racistas. São vistos como os culpados por impedir o fim do isolamento rodoviário de Porto Walter – e do Alto Juruá como um todo. A situação de vulnerabilidade vivida pelo povo indígena foi revelada por meio de nota emitida pelo MPF no último dia 10 de março. O órgão ministerial tomou conhecimento da situação após visita de uma semana às cinco aldeias da Ti Jaminawa do Igarapé Preto.

“Foram ouvidos relatos preocupantes sobre ameaças que os indígenas vêm sofrendo em razão da determinação judicial de bloqueio da estrada, que foi aberta irregularmente. De acordo com os comunitários, diversas pessoas do entorno e de municípios vizinhos atribuem aos indígenas a culpa pelo fechamento do ramal, o que tem gerado hostilidades e ofensas, algumas delas de cunho racista, veiculadas pessoalmente e pelos meios de comunicação.”, diz trecho da nota.

De forma didática, o MPF reiterou que o bloqueio das obras ocorreu por determinação da Justiça Federal da 1a Região, e não dos Jaminawa. “A ação que resultou na decisão judicial foi movida pelo MPF e pelo Ministério Público do Estado do Acre, após a constatação de diversas irregularidades cometidas pelo Deracre e pelo Município de Porto Walter na construção da obra.”

“Essas irregularidades, embora incluam violações aos povos indígenas, envolvem também graves ofensas ao meio ambiente, de modo que, ainda que os indígenas fossem completamente favoráveis à abertura do ramal, o Ministério Público atuaria pelo embargo da obra”, ressaltou.

A instituição reforçou que “buscará incansavelmente o cumprimento da decisão judicial, como forma de garantir os direitos que foram violados durante a construção da obra”. Sobre as manifestações racistas e ameaças sofridas pelos Jaminawa, o MPF informou que todas as denúncias serão investigadas na tentativa de identificar e pedir a punição dos autores.



Discursos de ódio contra os povos indígenas

Esta não é a primeira vez que os povos indígenas do Vale do Juruá são vítimas de discurso de ódio e desinformação no Acre. Em março do ano passado, os Noke Ko’i da TI Campinas Katukina foram vítimas de uma fake news ao serem acusados de manter refém um procurador da República e cobrar R$ 20 milhões por sua libertação.

A notícia falsa ganhou todo o estado após um momento mais “tenso” de reunião entre as lideranças indígenas, representantes de instituições públicas e da empresa responsável pela construção de um linhão que passa dentro do território Noke Ko’i. O boato virou verdade até em alguns veículos de imprensa do estado. Logo em seguida, os indígenas passaram a ser acusados de “travar” a construção do linhão – hoje já em operação.

Habitantes originários das terras que hoje formam o Acre, povos indígenas ainda são vítimas de visões preconceituosas e racistas no estado (Foto: Diego Gurgel/Secom)



Os dois casos revelam que, apesar de muitos avanços, os casos de preconceitos e racismos sofridos pelas populações indígenas ainda são muito fortes em nosso estado. A consolidação de grupos de extrema-direita hoje no poder deixa estes povos ainda mais vulneráveis. Combater e punir tais práticas ainda precisa ser uma forte política dos órgãos públicos. A educação também é uma boa ferramenta.

Outro desafio também é o combate aos discursos de ódio e à propagação de notícias falsas, que deixam os povos indígenas ainda mais vulneráveis à intolerância de uma parte reacionária da sociedade acreana.

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