A FÉ PELOS SERINGAIS

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Santa Raimunda: a padroeira dos povos da floresta na tríplice fronteira amazônica

A cada 15 de agosto, devotos da tríplice fronteira amazônica peregrinam pelos seringais do Alto Acre como forma de fé e devoção à padroeira dos seringueiros (Foto: Divulgação)



Há mais de um século, comunidades do Brasil, da Bolívia e do Peru peregrinam até 80 quilômetros para devoção à seringueira transformada em santa. Mesmo não sendo reconhecida pela Igreja Católica, Santa Raimunda Alma do Bom Sucesso leva centenas de pessoas a percorrer distâncias em viagens por rios, ramais e varadouros até seu altar no Seringal Icuriã, em Assis Brasil.

João Maurício Rosa
Especial para Varadouro

No interior de uma rústica igreja de madeira no Seringal Icuriã uma senhora peruana de longos cabelos pretos se aproximou do altar e, com uma tesoura, cortou seus cabelos e os ofereceu à imagem da Santa Raimunda Alma do Bom Sucesso, a padroeira da região da tríplice fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru, região conhecida como Bolpebra, no município de Assis Brasil. A mulher, que anunciou ter-se curado de um câncer, veio a Assis Brasil para agradecer à Santa Raimunda pelo milagre, embora Raimunda não seja uma santa reconhecida pela Igreja Católica e tampouco o seu poder de cura possa ser atestado como uma graça divina.

Mas, indiferentes aos protocolos de Roma, há 114 anos milhares de colonos, seringueiros e ribeirinhos dos três países realizam uma peregrinação anual (até o Seringal Icuriã, a 76 quilômetros de Assis Brasil, para render homenagens e pagar promessas por milagres atribuídos à padroeira dos seringueiros. no dia 15 de agosto.

Esta seria a data da morte, em 1910, da seringueira Raimunda, caridosa mãe e esposa que, mesmo grávida, saiu para mais um dia de trabalho e acabou morrendo ao dar à luz encostada a uma seringueira. Embora pouco conhecida nas demais regiões do Acre e do Brasil, Santa Raimunda já é objeto de estudos acadêmicos há décadas, e conta, inclusive, com depoimentos preciosos colhidos pelo bispo Dom Julio Matiolli quando era administrador Apostólico em 1942.

Estes depoimentos, até então desconhecidos, foram transcritos pelo atual bispo diocesano dom Joaquin Pertiñes em seu livro “História da Diocese de Rio Branco” “Em Bom Sucesso, colocação no Seringal Icuriã, não longe das cabeceiras do rio Xapuri, existe uma sepultura muito visitada por devotos vindos de todos os lugares trazendo suas promessas. Levantaram sobre a sepultura uma minúscula Capela de paxiúba (planta nativa), onde em 14 de dezembro de 1943 o Administrador Apostólico visitou e benzeu a mesma”, relatou dom Julio Matiolli.

Dom Júlio escreve que o seringueiro Mariano José dos Santos, morador na colocação do Benfica, no mesmo seringal Icuriã, nas margens do Iaco, conheceu Raimunda Moreno da Silva, a alma do Bom Sucesso e casou no rio Caeté, nas passagens do monsenhor Leite em 1901.

“Afirma ter sido a referida Senhora muito boa ‘ofendendo apenas a comida que comia’. Morreu de parto em 1909. A criancinha foi levada por parentes ao Ceará”, escreveu. Dom Júlio também tomou o depoimento de Beatriz Sena Araújo: “Ela vinha muito cansada e o marido era muito ruim, passou e deixou-a para trás, sozinha, com a carga e com o ‘buchão’. Aí ela cansou e ficou sentada neste canto. Acho que quando esfriou o corpo, o cansaço foi demais até o ponto que ela não resistiu e morreu. Aí ele ficou esperando ela, e quando chegou na frente onde tinha gente, ali ficou e ela não chegou. Ele voltou, e quando chegou no local onde ela estava a encontrou já morta. Aí uns falam que pelejou para conseguir tirar ela do canto e não conseguiram tirar, e então ali mesmo cavaram o buraco e enterraram ela”.

A cada 15 de agosto, devotos da tríplice fronteira amazônica peregrinam pelos seringais do Alto Acre como forma de fé e devoção à padroeira dos seringueiros (Foto: Divulgação)



A canonização

A última romaria para a capela de Santa Raimunda pode ter sido a causa do incêndio que a destruiu, em setembro do ano passado, segundo o missionário jesuíta Arquelino Xavier, da paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Assis Brasil. Ele passou quatro dias no local, até o dia 15 de agosto, para assistir às romarias e ficou impressionado com as demonstrações de fé dos povos.

“A mulher que veio do Peru pagar promessas por cura de câncer cortou os cabelos e, com muita emoção, os ofereceu à santa diante de meus olhos e das pessoas que a acompanhavam. São milhares de pessoas que caminham 70 ou 80 quilômetros até o local e depois ficam acampadas numa experiência mística, dia e noite rezando”, diz o missionário.

“Esta fé é que sustenta este povo que vive na expectativa de todo o ano fazer essa experiência mística de retirar-se, de caminhar na floresta e acampar no local. Então essa religiosidade aí que sustentou e que ainda sustenta as pessoas aqui nessa região do Alto Acre. Porque você vai em igrejas em Assis Brasil e em Iñapari, você vai celebrar lá na comunidade e tem poucas pessoas na igreja.”

“Mas se é na época da festa de Santa Raimunda as pessoas saem caminhando daqui. Caminham 70, 80 quilômetros até o local e depois acampam lá e fazem essa experiência mística, dia e noite rezando. É muito bonita essa devoção”, analisa Arquelino.

De acordo com o missionário, Santa Raimunda está muito ligada a essa realidade dos povos da floresta, da cultura do povo local, dos seringais. “No caso, ela é uma mulher seringueira, presente naquela realidade do seringal do Icuriã. Então, a sua vida é muito representada pelas mulheres daqui, que são filhas de seringueiros e veem nela a sua própria história de mulher sofredora, dessa realidade sofrida dos seringais e que continua ainda nos dias de hoje para o povo dessa região, que fica isolado nos períodos da cheia. Então tem nela esse espelho”, argumenta Arquelino.

O religioso é colaborador dos trabalhos pastorais da paróquia de Assis Brasil e membro de uma missão jesuítica itinerante na tríplice fronteira. De acordo com ele, Santa Raimunda pode passar por um processo de canonização pela Igreja Católica, mas antes de mais nada ela precisa ter um espaço institucionalizado. Atualmente, a capela ocupa terras da Resex Chico Mendes, o que impede investimentos da igreja.

“Tem que ter um documento passando a administração da capela para a paróquia”, explicou. A partir da consolidação de seu espaço próprio, ou seja, o santuário, a Diocese de Rio Branco e a paróquia de Assis Brasil, bem como as dioceses ou vicariatos de Pando, na Bolívia e de Porto Maldonado, no Peru, teriam que começar a juntar depoimentos e documentação sobre os milagres de Santa Raimunda.

Arquelino disse achar impossível que o fogo que destruiu a capela tenha vindo dos incêndios florestais e das queimadas do entorno, bastante comuns nos meses de agosto e setembro. “Provavelmente seja de peregrinos, porque durante os dias 11, 14, 15, todos os dias da semana, foram muitas peregrinações de pessoas e grupos no santuário, então, no dia do incêndio havia um grupo grande de peregrinos pela manhã. Era muito grande a quantidade de pessoas neste ramal, nesse varadouro, que foram queimar suas velas e fazer suas preces. Pode ter sido aí a causa do incêndio”, analisa.

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