Em Rio Branco, numa época em que os anos 70 e 80 desenhavam suas memórias nas paredes do tempo, a lenda da cobra da Gameleira ganhava vida nas margens do rio Acre. Não era uma invenção do imaginário popular; ela era real, uma serpente mítica que vivia nas águas profundas do poço, à frente da imponente igreja Nossa Senhora da Conceição.
No verão, quando os festivais de música ecoavam pelas ruas, muitos curiosos se aproximavam da praia que se estendia até o meio do rio, ansiosos por uma visão da temida cobra. O poço, um remanso sombrio e amedrontador, escondia mistérios que engoliam os desavisados. E assim, a cobra da Gameleira tornou-se uma entidade respeitada e temida pelos habitantes da cidade.
A praia da Base era testemunha da história, que se desenrolava em torno do poço, um lugar onde a água repousava, formando uma armadilha mortal. Era ali que a cobra gigante habitava, uma sucuri imponente que, diziam, se alimentava daqueles que ousavam desafiar as águas perigosas da Gameleira. Os festivais de música tornavam-se uma espécie de convite arriscado, e alguns, irresistivelmente atraídos pelo mistério, acabavam desaparecendo nas profundezas do poço.
Lendas são feitas de verdades entrelaçadas com a imaginação, e a cobra da Gameleira era a personificação do medo e do respeito pelas águas do rio. As histórias de afogamentos sem corpos ressurgiam, todos atribuindo essas tragédias à fome voraz da sucuri lendária.
Num domingo ensolarado, durante uma matinê no cine Recreio, a notícia se espalhou como fogo em capim seco: a cobra da Gameleira havia saído do poço. O pânico se espalhou mais rápido do que os meninos que voavam em direção ao porto. A cidade se aglomerava, olhando ansiosamente para o rio, esperando um vislumbre da criatura lendária.
No entanto, o encontro com a cobra da Gameleira não era para os fracos de coração. A multidão se espremia no barranco, observando as águas que giravam e espumavam. Alguns, corajosos ou talvez embriagados, atiravam paus e pedras na esperança de provocar a fera a mostrar sua cabeça.
A tensão aumentava enquanto o sol declinava, e a multidão permanecia nos barrancos, esperando. E então, um grito ecoou, anunciando a presença da serpente lendária. Uma saliência no meio do balseiro boiava, uma barriga que guardava segredos. A cobra da Gameleira se revelava, imponente e majestosa, a senhora do rio.
Para aqueles que testemunharam o espetáculo, não era apenas uma ilusão de ótica. Não era uma árvore, não era uma rocha; era a cobra gigante da Gameleira, a guardiã das águas que havia reinado por quase duas décadas. Uma criatura que, ao final de sua jornada, foi levada pelo rio que tanto a acolheu.
A lenda da cobra da Gameleira viveu nas águas do rio Acre, deixando para trás histórias de respeito e temor. Ela desapareceu, talvez para buscar novos horizontes, mas não antes de ser imortalizada em um bloco de carnaval que carregava seu nome. E assim, a serpente lendária se tornou parte indelével da rica tapeçaria de histórias que se desenrolam nas margens do Rio Acre.
Nascido nos seringais de Xapuri, Pitter Lucena é jornalista e escritor. Deu os primeiros passos nos varadouros das letras no início da década de 80, quando estudou Teologia dentro do projeto das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica no Acre. Em 1985 entrou para o mundo do jornalismo. Trabalhou como repórter nos jornais Folha do Acre, O Rio Branco, A Gazeta e A Tribuna, além das emissoras de TV. Em 2003 ganhou o prêmio de jornalismo José Chalub Leite por reportagens sobre o esquadrão da morte no Acre. É bacharel em Comunicação Social, jornalismo, pelo Instituto de Educação Superior de Brasília – Iesb.
pitter.lucena@gmail.com