Documento de encontro de governadores em Rio Branco ficou manchado por atentado à democracia

Tema central da Carta do Acre é a participação dos governos subnacionais na elaboração do TFFF, iniciativa global liderada pelo Brasil para financiar países por sua preservação das florestas. Boas intenções de documento, uma prévia para a COP-30, ficaram maculadas por violenta repressão a protesto promovido por jovens ativistas. Comitê Chico Mendes condena violência.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
Nem só de pancadarias, dancinhas e descomposturas do governador acreano Gladson Cameli (PP) foi marcado o encerramento da 15o Reunião Anual da Força Tarefa dos Governadores para o Clima e Florestas, a GCF Task-Force, realizada em Rio Branco na semana passada. Toda a patuscada promovida pelo governo, que expulsou jovens manifestantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e de organizações da sociedade civil com socos e pontapés do Centro de Convenções da Ufac, ofuscou a apresentação da chamada Carta do Acre.
Ela é o documento oficial resultado dos cinco dias de encontros e reuniões entre os representantes de governos subnacionais que participaram do evento. Seria uma espécie de carta-compromisso assumida pelas autoridades na busca de um desenvolvimento social e econômico sustentável, a adoção de políticas para a preservação das florestas (com sua devida compensação financeira), como o principal mecanismo para o enfrentamento à crise climática.
(Leia na íntegra abaixo)
O documento é redigido ao final de cada cúpula realizada pela GCF Task-Force, sempre levando o nome do estado anfitrião. A Carta Acre ganha um valor especial por servir como uma prévia de como a “política dos governadores” vai se apresentar durante a 30o Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP-30, que será realizada em novembro no Pará.
O tema central da Carta do Acre é a defesa da participação dos governos subnacionais na elaboração do Tropical Forest Forever Facility (TFFF). O Fundo Florestas Tropicais para Sempre é uma iniciativa global liderada pelo Brasil, cuja finalidade é a obtenção de recursos a longo prazo para financiar países por suas ações de preservação das florestas e de combate ao desmatamento.
Este tende a ser um dos principais temas a ser debatido durante a COP de Belém. A compensação monetária aos países que mantêm suas florestas conservadas pelos governos dos países mais ricos (e poluidores) está entre os principais gargalos nas conferências do clima da ONU, como a de 2024 no Azerbaijão.
“O TFFF pode ser um divisor de águas para as florestas tropicais, estabelecendo um financiamento de longo prazo que pague pelo desempenho na escala necessária para proteger florestas tropicais intactas, acelerar a restauração de terras degradadas e construir novas economias de base florestal duradouras nos trópicos”, diz trecho do documento elaborado pela GCF Task-Force.

“Os governos subnacionais da Força-Tarefa do GCF estão prontos para participar ativamente da elaboração de propostas inovadoras de financiamento, tal como é o caso do TFFF.”
Outro ponto destacado no documento é a dificuldade dos governos subnacionais de implementarem programas de REDD+ Jurisdicional dentro de seus respectivos territórios; ou seja, receberem a compensação financeira pelas ações de preservação da floresta – e a consequente redução nas emissões de gases do efeito estufa, uma das principais causas para a crise climática enfrentada pelo mundo,
“Enfrentamos grandes desafios para consolidar os mecanismos que já foram testados nos últimos anos, como os programas de REDD+ de Jurisdição Subnacional, mas que ainda necessitam de manifestações de apoio dos governos nacionais, integração às estratégias nacionais de REDD+, regulamentação, aumento de recursos de financiamento”, aponta a Carta do Acre.
Uma carta manchada
Todas as boas intenções do documento redigido em terras acreanas ficaram manchadas pelo atentado do governo Gladson Cameli contra a liberdade de expressão, ao reprimir com violência uma juventude por denunciar os desmandos de sua política de desmonte ambiental, que levou o Acre a níveis críticos de desmatamento e queimadas entre 2019 e 2022.
O ataque à livre manifestação assegurada pela Constituição foi repudiada pelo Comitê Chico Mendes, uma das mais respeitadas organizações acreanas de defesa da Amazônia e das populações da floresta.
“Nós vivemos sob um regime democrático. A liberdade de expressão é um direito constitucional. O que eu vi foi uma violência extrema contra os manifestantes. Muito desproporcional. Receber um evento tão importante como esses quando o Acre sofre cada vez mais com o desmatamento e as queimadas, como foi no ano passado, e querer passar o pano de que está tudo bem”, diz Ângela Mendes, coordenadora do Comitê Chico Mendes.

“O governo precisa ser verdadeiro e reconhecer que as coisas não estão bem. e trabalhar junto à força-tarefa de governadores para resolver os nossos problemas, e não mascarar a realidade. Não se pode usar da violência para calar as vozes de quem fala por quem não está conseguindo falar”, ressalta ela.
Os jovens ativistas estiveram no evento como participantes da sociedade civil. Em certo momento do discurso de Gladson Cameli, começaram a gritar palavras de ordem e a expor as faixas. As críticas se davam justamente contra a política da boiada do governador bolsonarista, e contra o que eles definem como a mercantilização da floresta pelo mercado de carbono. “A Floresta não se Negocia”, dizia uma das faixas.
Num gesto de descompostura, Gladson Cameli bateu boca com os manifestantes, fez deboches e ainda fez uma de suas deploráveis dancinhas para uma plateia formada por governadores, representantes de embaixadas, autoridades, cientistas e pesquisadores de diferentes partes do mundo. Depois, deu a ordem ao seu ajudante de ordem para expulsar os jovens do auditório – começando a selvageria gratuita contra os militantes.
Leia mais sobre o episódio em A Democracia da Porrada
E, assim, de forma vergonhosa, o Acre encerrou mais uma reunião da força-tarefa internacional de governadores para o clima e florestas. O clima foi de muita tensão. Um sinal de que, sim, a vigilância e a proteção da democracia são movimentos cada vez mais necessários num estado como o nosso.
Que a Carta do Acre possa vir a ter a capacidade de virar uma realidade no desenvolvimento de políticas nacionais e subnacionais que conciliem desenvolvimento econômico com sustentabilidade – e o respeito à democracia.
Só assim, quem sabe, a reunião da GCF Task-Force saia menos manchada pelo grave atentado à liberdade de expressão e ao espetáculo do horror promovido pelo governo de Gladson Cameli.

SAIBA MAIS: Réu e com passivo ambiental, Gladson Cameli lidera reunião de governadores pelo clima
Carta do Acre:
O sucesso do TFFF depende da ação e da liderança subnacionais
Rio Branco, Brasil|| 23 de maio de 2025
Nós, membros da Força-Tarefa dos Governadores para o Clima e Florestas (Força-Tarefa GCF), nos reunimos em Rio Branco, no estado do Acre, Brasil, para a nossa Reunião Anual de 2025, com o objetivo de avançar em nossos esforços contínuos para construir Novas Economias de Base Florestal em nossas jurisdições – economias que protegem florestas intactas, restauram terras degradadas e criam empregos e oportunidades econômicas para os milhões de pessoas que vivem nessas florestas.
Somos a única rede governamental subnacional do mundo dedicada a proteger as florestas, reduzir as emissões e melhorar os meios de subsistência nos trópicos. Atualmente, nossa rede inclui 43 estados e províncias de 11 países que abrangem mais de um terço das florestas tropicais do mundo – incluindo toda a Amazônia Legal do Brasil, mais de 85% da Amazônia peruana, 65% das florestas tropicais do México e mais de 60% das florestas da Indonésia. Nos últimos 15 anos, desempenhamos um papel fundamental na criação de programas jurisdicionais para reduzir as emissões provenientes do desmatamento e do uso da terra, estabelecendo parcerias com comunidades indígenas e locais e promovendo novas economias de base florestal.
Ao nos reunirmos aqui no Acre, o local de nascimento de Chico Mendes e o coração da bacia amazônica, aplaudimos a liderança do Governo do Brasil, juntamente com outros governos nacionais, para projetar e lançar o inovador Tropical Forest Forever Facility (TFFF) na COP30 em Belém. O TFFF pode ser um divisor de águas para as florestas tropicais, estabelecendo um financiamento de longo prazo que pague pelo desempenho na escala necessária para proteger florestas tropicais intactas, acelerar a restauração de terras degradadas e construir novas economias de base florestal duradouras nos trópicos.
Também aplaudimos a consideração dada aos Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs) como parceiros na gestão de florestas, incluindo uma proposta de distribuição de benefícios prevista no TFFF. Durante grande parte da última década, trabalhamos em estreita colaboração com nossos parceiros IPLCs, conforme evidenciado com a adoção pelo GCFTF em 2018 dos Princípios Orientadores da Parceria entre governos subnacionais, povos indígenas e comunidades locais, norteadores da colaboração contínua com os IPLCs em nível local, regional e global e dos nossos esforços para o desenho de estratégias jurisdicionais e de distribuição dos benefícios oriundos do financiamento climático. Entendemos muito bem que a proteção florestal não ocorrerá sem os IPLCs.
Os governos subnacionais da Força-Tarefa do GCF estão prontos para participar ativamente da elaboração de propostas inovadoras de financiamento, tal como é o caso do TFFF. Os membros do GCFTF, desempenharam e continuarão a desempenhar um papel fundamental no desenho e implementação de programas jurisdicionais de proteção florestal e uso sustentável da terra, bem como no avanço no desenvolvimento de novas economias de base florestal.
Embora reconheçamos que o marco regulatório e institucional que orienta a ação dos governos subnacionais varia de país a país e que a distribuição de pagamentos por serviços ambientais e/ou distribuição de benefícios são questões a serem tratadas no marco da estrutura regulatória nacional aplicável, destacamos o trabalho significativo e contínuo que os governos subnacionais já estão realizando para alcançar o objetivo comum de proteger e conservar as florestas tropicais remanescentes do mundo.
Juntamente com nossas comunidades IPLC, estamos na linha de frente dos esforços de redução do desmatamento e enfrentamento das mudanças climáticas. Já estamos realizando grande parte do trabalho árduo de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e temos desenvolvido iniciativas relevantes que são essenciais para a experimentação e o aprendizado no desenho e implementação de políticas. Por mais de quinze anos, mobilizamos a liderança política subnacional para avançar na agenda global de florestas e clima; adotamos leis, políticas e programas inovadores para estabelecer abordagens multissetoriais nas jurisdições para a proteção florestal; e desenvolvemos parcerias inovadoras com IPLCs, sociedade civil, setor privado e governos em todos os níveis.
Conforme articulado em nosso Plano de Ação de Manaus para uma Nova Economia Florestal de 2022 e aprofundado em nosso Projeto para uma Nova Economia Florestal de 2024, identificamos os elementos essenciais do projeto, os blocos de construção e os mecanismos de financiamento de que precisamos para avançar em nosso trabalho, incluindo a promoção da bioeconomia, a proteção da infraestrutura natural, a aceleração da restauração e a transição para a produção sustentável de commodities.
No entanto, gostaríamos de destacar que entendemos que atualmente enfrentamos grandes desafios para consolidar os mecanismos que já foram testados nos últimos anos, como os programas de REDD+ de Jurisdição Subnacional, mas que ainda necessitam de manifestações de apoio dos governos nacionais, integração às estratégias nacionais de REDD+, regulamentação, aumento de recursos de financiamento e entendimento dos órgãos de controle e judiciais para que possamos efetivamente receber recursos capazes de alcançar a tão desejada mudança nos métodos de uso da terra e, consequentemente, reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
Consideramos as lições aprendidas com esse trabalho como complementares e essenciais para o sucesso do TFFF e pedimos aos nossos respectivos governos nacionais e parceiros internacionais que trabalhem conosco para avançar ainda mais em nossos esforços coletivos para conservar as florestas tropicais, estabelecendo novos mecanismos e reaproveitando as instalações existentes para apoiar nossos esforços. Simplificando, o seu sucesso depende do nosso sucesso e estamos prontos para fazer parceria com você.
Agradecemos que os representantes do grupo de trabalho do TFFF tenham se juntado a nós aqui em Rio Branco e que tenhamos conseguido nos engajar no TFFF. Pedimos que continuem esse diálogo e trabalhem com a Força-Tarefa do GCF para garantir que o TFFF reconheça e apoie o papel fundamental da ação e da liderança subnacional em florestas e clima.
Para nossas florestas, nosso povo e o clima, estamos ansiosos para trabalhar com vocês na preparação para a COP30 em Belém do Pará e além.