Lideranças desconhecem participação da LCP
de Rondônia em ocupações de Acrelândia
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
A Operação Usurpare, ocorrida há quase duas semanas, acendeu o alerta sobre a possível chegada ao Acre da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), cujas famílias conseguiram por conta e risco tirar do atraso a reforma agrária no estado, mesmo à custa de mortos e feridos. Conforme informações divulgadas pela assessoria de imprensa da Polícia Federal, seriam integrantes da Liga as seis pessoas presas em flagrante por desmatamento e invasão ao Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) Porto Dias, em Acrelândia (distante 110 km de Rio Branco).
Consultadas por Varadouro ao longo da semana passada, lideranças dos trabalhadores rurais de Acrelândia disseram desconhecer a relação das pessoas presas com a Liga. Segundo elas, alguns dos presos são do próprio município, e alguns até filhos dos moradores do antigo seringal Porto Dias. Os líderes afirmam que há, sim, presença de famílias de Rondônia nas ocupações, mas desconhecem o envolvimento delas nesse movimento que há anos enfatiza sua “luta revolucionária” e semeia slogans contra o latifúndio.
Acrelândia é o município porta de entrada ao Acre pela BR-364. Está localizado bem na tríplice divisa Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia). Por ramais, rios e varadouros é possível ir de um estado a outro sem dificuldades. A atividade agropecuária está fortemente consolidada na região.
Esta é uma zona historicamente marcada por conflitos fundiários entre pequenos agricultores e famílias de seringueiros com os grandes fazendeiros. Após a consolidação da pecuária, as terras do município agora passam a ser invadidas pela monocultura da soja.
Em dezembro, Varadouro esteve na região do ramal do Granadinha para acompanhar um desses conflitos. Atendendo a pedido de reintegração de posse de grandes fazendeiros, a Comarca de Acrelândia determinou a retirada das famílias de pequenos produtores. Após resistência, eles permanecem na região e pedem que a ocupação seja reconhecida como projeto de assentamento do Incra.
Em seu histórico recente, quase todos os acampamentos que a LCP já enfrentaram policiais armados de carro e a pé, e em sobrevoos de helicópteros. Por ocasião do conflito de Mutum-Paraná, a Força Nacional montou barreiras no entorno do acampamento, colocando as famílias camponesas numa espécie de campo de concentração.
Em 2020, camponeses formaram ocupações em terras não-produtivas e fundaram acampamentos, entre os quais, o Acampamento Tiago dos Santos, no sentido Guajará-Mirim e Estado do Acre.
Em novembro de 2021, uma grande operação policial militar da qual participou a Força Nacional tentou despejar mais de oitocentas famílias. O clima efervescente foi acompanhado silenciosamente por autoridades agrárias em Brasília, até o estouro de um grave escândalo.
Surpreendentemente, em 2022, uma operação conjunta das polícias Civil e Federal, e do Ministério Público, constatou o uso de grupos paramilitares armados “até os dentes”, a serviço de latifundiários naquela região.
A polícia levava ao acampamento pelo menos cinco mandados de prisão preventiva, todos cumpridos; houve ainda a execução de 32 mandados de buscas em Porto Velho, Ariquemes, Vilhena, Cassilândia (MS) e Brasília. O que assessorias parlamentares, prefeitos e o próprio governo estadual consideravam “mentiras e calúnias” apareceu finalmente diante dos olhos das autoridades.
Segundo a investigação, os envolvidos – policiais militares, policiais civis e pistoleiros – foram pagos pela empresa de fachada Leme Empreendimentos Ltda, de São Paulo, propriedade do Sr. Antônio Martins, o conhecido “Galo Velho”.
Desde o início dos anos 2000, ele é denunciado pela LCP por “grilagem de terras públicas”. Apoiados pela própria polícia rondoniense, jagunços armados atuavam contra o acampamento denominado “Área Revolucionária Tiago Campin dos Santos”. Ou seja, camponeses liderados pela LCP ocuparam terras que “Galo velho” considerava suas, e ali permaneceram recebendo ajuda de entidades, igrejas e do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Rondônia.
Lutas marcadas por criminalizações
Enquanto os apoiadores enviavam marmitex que foram diversas vezes barradas nas barreiras policiais, os grupos a serviço do fazendeiro, conforme apurava o Ministério Público, recebiam diária para cometer abusos e execuções sumárias usando armamento e viaturas oficiais das próprias forças policiais.
Cinematográficas e ousadas ações: o grupo ainda lavava dinheiro e fraudava processos judiciais de desapropriação de terras. A partir do afastamento do sigilo bancário dos investigados constatou-se movimentações financeiras superiores a R$ 445 milhões. E se comprovou o pagamento de valores a servidores contratados para integrar o bando paramilitar particular do fazendeiro.
Em 20 anos, desde o período em que o Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina (Codevise) atuou com firmeza em defesa dos remanescentes da batalha de Corumbiara, a LCP acumula perdas e conquistas.
As relações com autoridades municipais e federais são frustrantes. De um lado, a LCP nunca foi recebida pela Ouvidoria Agrária do Incra, de outro, um juiz de 1ª Instância chegou a proibir o ônibus escolar de transportar filhos de camponeses à escola, no interior de Ariquemes, a 200 quilômetros de Porto Velho.
As perdas maiores são 16 líderes e militantes mortos por jagunços e policiais em tocaias e de outros “condenados por ouvi dizer”, conforme a LCP diz ter ocorrido na região sul do estado. Houve casos do abandono de corpos mutilados, à beira de pequenas estradas rurais.
Membros da Liga tiveram mortes anunciadas dentro de gabinetes de parlamentares em Brasília, conforme ouviu este repórter uma ocasião. Conversando em voz alta com um senador da República, o fazendeiro paulista “Galo Velho” anunciava “a formação de um pelotão para eliminar camponeses.” Coincidentemente, ele fora o primeiro a dizer que constituiria um grupo armado de seguranças para eliminar membros da LCP em Jaru.
Ao longo dos anos, em meados da primeira década de 2000, esse fazendeiro sofreu o primeiro revés, ao perder também três jagunços para os desafetos. Em 14 de março de 2023, quando ouviu a sentença de condenação de seis camponeses a 102 anos de prisão sob acusação de assassinarem o fazendeiro Heládio Cândido Senn, o Nego Zen, lançou o desafio à polícia para prender o conhecido Neguinho capeta, chefe dos jagunços daquele latifundiário.
“Apesar de Nego Zen ter sido um bandido contumaz que colecionou inimigos em todo cone sul de Rondônia só a LCP e camponeses pobres foram investigados e acusados arbitrariamente, sem prova concreta, baseando-se apenas em boataria, em “disse me disse” e depoimentos cheios de contradição”, lamentou a Liga à época dos fatos.
“Uma testemunha ocular não reconheceu os camponeses; dois dos réus foram condenados mesmo sem terem sido indiciados pelo delegado que presidiu o inquérito; a juíza prejudicou a defesa de várias formas; o julgamento ocorreu em apenas um dia e em tempo recorde – menos de ano e meio depois das mortes”, acrescentou.
Tortura, espancamento e afogamentos ocorreram na ocasião; um menor de idade foi vítima. A LCP denunciou a Polícia Militar, mas ficou por isso mesmo. A Justiça em Vilhena deve ter fechado os olhos a crimes de sequestro, tortura, pistolagem, agressão, ameaça e humilhação, além do roubo de terras públicas, praticados pelo falecido Nego Zen.
Segundo a LCP, mesmo havendo contra ele suspeitas de contrabando de diamantes e situações comprovadas de exploração de trabalho escravo, o fazendeiro queimava casas “para cobrar dívidas de agiotagem, estupro, etc.”
Crueldade à parte, foi isso o que aconteceu: “(…) Num passe de mágica, Nego Zen foi transformado em “gente inocente, da melhor qualidade”, cristão, “proprietário” da Fazenda Vilhena. Quando foi morto, a prefeitura decretou luto oficial no município.”
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