Moradora da Resex Chico Mendes tem a vida ameaçada por denunciar destruição da floresta
Ao denunciar desmatamento e queimadas que colocam em risco a proteção de suas estradas de seringa, Luzineide da Silva é intimidada com ameaças de morte. Intimidadores lembram o destino de Chico Mendes por sua defesa da floresta ao ameaçarem seringueira. Omissão dos órgãos públicos agravam a situação.
Fabio Pontes
Dos varadouros de Xapuri
O número 45 riscado no tronco de uma seringueira não deixa a menor dúvida da dedicação e da relação de afeto com que Luzineide Marques da Silva tem com cada uma das 748 seringueiras (Hevea brasiliensis) identificadas – e devidamente marcadas – nas quatro estradas de seringa das quais é dona. Moradora da colocação Porongaba 1, no município de Xapuri, Luzineide é um dos símbolos de resistência na defesa da floresta em pé, colocando-se de frente contra o acelerado processo de devastação por que passa a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes desde 2019. Por conta de sua luta quase solitária, essa aguerrida seringueira sofre constantes ameaças de morte.
Mesmo com todas as pressões ocasionadas pelo avanço da pecuária sobre a unidade de conservação (UC) federal, Luzineide e a família ainda mantêm um modo de vida tradicional, ao fazer do corte da seringa e da coleta de castanha a principal fonte de renda da casa. O extrativismo é dividido com a pequena criação de gado, outra fonte de sobrevivência para ela. A atividade é permitida pelo plano de uso da UC, desde que em pequena escala.
Além do avanço da agropecuária, a Resex Chico Mendes passou a ser muito impactada pelo o que se chama de fracionamento das colocações – ou seja, a venda de lotes de terras pelos próprios moradores. As áreas vendidas têm a floresta desmatada para, em seu lugar, entrar o capim para o boi. O seringal Albrace, onde fica a colocação de Luzineide, está entre os que mais registram o comércio ilegal de terras dentro da UC em Xapuri. Aliás, quase todos os seringais cortados pelo ramal Dois Irmãos estão entre os com maiores problemas de comércio de lotes.
A cada ano, Luzineide da Silva vê a floresta no entorno de sua colocação ser devastada, chegando cada vez mais próxima de suas estradas de seringa. Foi o que aconteceu na semana passada, quando um novo-velho morador derrubou toda a floresta da área “adquirida”, botando fogo logo em seguida. A queimada invadiu a sua propriedade, destruindo seringueiras e colocando outras em risco. Aquelas que não tombaram estão em risco por conta da ação do fogo e das altas temperaturas nos troncos das árvores.
“Hoje o fracionamento das colocações é um problema generalizado. Aí como consequência tem as invasões de divisas [limites]. Tem tanto os moradores novos que chegam entram [nas terras dos vizinhos] como os antigos vendem suas colocações e querem entrar na parte de divisa da gente, tomando para o desmatamento para aumentar a quantidade de terra que eles venderam”, afirma ela.
Para essa seringueira de 46 anos de vida, que desde os oito aprendeu a cortar seringa com o pai, ver suas seringueiras destruídas é uma desolação. Para ela, não são apenas árvores, mas também sua própria história de vida, de onde ela tira o sustento da família. Mesmo em meio a todas as adversidades, Luzineide da Silva, uma acreana nascida e criada nos seringais de Sena Madureira, não perde a fibra e o bom ânimo para manter a resistência.
Intimidações e ameaças
Foi assim que Varadouro a encontrou ao chegar à sua casa no último sábado, 23 de setembro. Os dias anteriores tinham sido de muitas preocupações. No meio da semana, o fogo invadiu a estrada de seringa. Sozinha, pegou o celular e foi registrar a devastação como prova do crime ambiental cometido dentro de uma área que deveria ser de conservação.
A atitude revelou toda a sua bravura. Já há muito tempo ela está em conflito com a vizinhança problemática. Por se opor à invasão dos limites de sua colocação e à abertura de varadouros dentro dela, recebe ameaças de morte. “Se a gente se impor, chegar lá e dizer que não concorda, a palavra não concorda é como você assinasse uma sentença de morte com esse morador”, afirma ela.
Há tempos Luzineide denuncia os crimes ambientais cometidos no entorno de sua colocação, mas nada parece ser feito pelas autoridades. As ameaças de morte que recebe não consegue denunciar na delegacia de Xapuri. Um inspetor responsável pela unidade afirma a ela que ameaça não é crime, e nem a permite entrar em contato com a delegada da cidade. Exige que ela leve o nome completo do ameaçador.
“Se você se impor, que nem eu, eu sou coordenadora e me imponho, mas aí recebo ameaças, né? De tudo o é tipo de coisa. Desde eles se organizar para expulsar, alegando não sei o quê, porque eles não têm muito o que alegar de mim, né?.”
Os intimidadores chegam a lembrar a Luzineide o destino que teve Chico Mendes como consequência de sua luta pela proteção da floresta. “Esse morador mesmo que tá me ameaçando, o seu Sebastião, ele falou direto pra mim: Luzineide, o quê que o Chico Mendes ganhou em ficar brigando pela preservação ambiental?”, são algumas das intimidações que ela ouve.
Após muitas reclamações, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) e a Polícia Militar estiveram na Porongaba na última sexta, 22. O responsável pela devastação foi preso em flagrante por posse ilegal de arma. Pelo crime ambiental responderá na esfera administrativa no ICMBio, assim como o dono legítimo da colocação fracionada. Os dois são da mesma família (tio e sobrinho).
Sebastião Diogo (citado por ela acima) é acusado de vender lotes de sua área que ocupa há mais de 20 anos Ao sobrinho preso por posse de arma, o Clóvis Diogo, afirma ter doado os 10 hectares que ele brocou e queimou. Nas redondezas, a informação é outra: da venda do lote. O tio parece não ser tão generoso assim com o sobrinho. O próprio Clóvis afirma ter comprado a terra nas rodas de conversa.
Após a prisão do algoz, Luzineide e as filhas em Xapuri passaram a receber novas ameaças. A ordem era para retirar a queixa. Porém, a prisão foi em flagrante delito. Pela comunidade, os rumores são de possível envolvimento do suspeito com as facções criminosas que hoje dominam a realidade social do Acre, incluindo a zona rural. A simples especulação de integrar uma das organizações é motivo de pânico para essas pessoas simples, ante o histórico de atrocidades cometidas por estes grupos contra suas vítimas.
Seringueiras ao chão, mas uma seringueira de pé
Varadouro se encontrou com Luzineide um dia após a operação e prisão de Clóvis. Na colocação só estava ela e o marido. Os filhos estavam para a rua, como o seringueiro se refere à cidade. Ela leva a equipe até a área destruída pelo fogo dias atrás. São ao menos 10 minutos de caminhada por varadouros e estradas de seringa. É no caminho que se encontram as seringueiras numeradas. Nelas também há os riscos para a extração do látex. Em muitas delas, as tigelas já estão cheias e com o leite da seringueira coalhado.
No passo apressado típico do morador da floresta, ela vai contando um pouco de sua história de vida. Nasceu numa colocação chamada Estopa, às margens do rio Iaco, em Sena Madureira. Desde pequena lidou com o corte da seringa. “Cresci numa defumaceira vendo o meu pai preparar a borracha”, afirma, numa referência ao antigo modo de produzir as bolas de borracha, a partir da defumação do látex. “Dos fundos” da Resex Chico Mendes de Sena Madureira, passou a morar na Porongaba a partir de 2011, de onde não mais saiu.
O pai teve o mesmo destino do líder seringueiro Chico Mendes: foi morto por conflitos de terra. Agora se vê às voltas com o mesmo problema, mas afirma:”Eu não tenho medo de morrer, ser assassinada. Eu temo pelos meus filhos, minha família.”
Ela é coordenadora de base da Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Xapuri, a Amoprex. A resistência desta seringueira a tem feito construir muitos inimigos. Toda e qualquer operação do ICMBio na região a responsabilidade é atribuída a ela. Por conta de uma operação após a derrubada de 100 hectares de floresta, vizinhos sugiram ter que “derrubar a Luzineide”, pois seria a responsável por denunciar o caso. Deste mesmo seu Sebastião já ouviu que ficaria no meio do caminho se ousasse empatar a abertura de um varadouro que ele fazia, e passava dentro da estrada de seringa dela.
Uma mulher da floresta
“A Luzineide é uma mulher extrativista que está enfrentando sozinha criminosos ambientais ligados a facções criminosas. Como mulher, não achou quem acolhesse suas denúncias. Além de sofrer as ameaças e ter suas seringueiras queimadas, ela ainda se depara com o machismo estrutural dentro dos órgãos públicos que lhes negam atendimento”, diz Ângela Mendes, filha de Chico Mendes e coordenadora do Comitê Chico Mendes.
“Este caso é tão absurdo, porque ela já vem denunciando há muito tempo. Primeiro passaram o terçado nas seringueiras, mataram seus pequenos animais e, por fim, queimaram seu seringal. Qual seria o próximo ato antes da PF e ICMBio terem que enfim agir? O caminho para paz de Luzineide, se é que ela vai encontrar, ainda é longo, passa por lidar com burocracia e tecnologias para quem não tá acostumada com isso”, completa.
Na segunda-feira, 26, ao ir à delegacia da Polícia Federal de Epitaciolândia (distante 60 km de Xapuri), não conseguiu registrar suas queixas por não ter domínio de uma ferramenta online do sistema gov.br. No ICmbio de Brasileia se esbarrou em mais burocracia. Voltou para Xapuri sem ser acolhida pelos órgãos de Estado responsáveis por garantir a sua proteção. Para chegar até as cidades vizinhas pediu dinheiro emprestado, já que o dinheiro da venda da borracha só cai no fim do mês.
“Não queremos e não precisamos de mais mártires, precisamos que cada um cumpra seu papel nessa luta pela preservação do legado que Chico nos deixa.” diz Ângela Mendes.
Uma floresta carbonizada
Antes de se chegar precisamente à área de Luzineide incendiada, de longe já é possível sentir o cheiro de queimada. Em alguns pontos, a fumaça ainda sai de árvores inteiras carbonizadas. Dentro da floresta preservada, as cinzas no chão revelam que as chamas invadiram, e muito, a mata fechada. Por sorte não ocorreu ali um incêndio florestal em dias tão quentes e secos de setembro.
Num canto mais distante é possível avistar a casa usada como moradia e demarcação de lote feita por Clóvis. Mais uma vez, Luzineide tem uma dimensão do estrago feito no limite de sua colocação. As seringueiras derrubadas e aquelas que, talvez, venham a morrer pelo efeito do fogo em suas bases estão ali. Aquela é a primeira vez que ela retorna ao local após a devastação.
Por causa das ameaças constantes que recebe dos vizinhos, ela afirma não se sentir segura de andar nas suas estradas de seringa. Ela precisa todos os dias adentrar na mata para cortar as seringueiras. É o seu ganha-pão. É uma atividade que começa ainda antes do sol nascer.
Nos seringais nativos, uma seringueira fica distante a metros uma da outra. É preciso caminhar horas e mais horas na floresta fechada, lidando com todo tipo de risco – das onças às cobras. A companhia dela pelos varadouros e estradas é a cachorra. “Uma caçadora de cotia de primeira”, afirma ela. Ela não tem rifle se proteger da muitas ameças na floresta. Sua única arma é a faca usada para riscar as seringueiras.
Além dos perigos naturais da selva, essa seringueira tem a vida em risco por conta da resistência em defender o que é seu. Uma tocaia e emboscada são as maiores ameaças. Em décadas passadas, os seringais de Xapuri foram palcos de muitos conflitos por terra que resultaram na morte de seringueiros. O caso mais conhecido foi do líder Chico Mendes, assassinado na porta de casa em dezembro de 1988.
A criação das reservas extrativistas é consequência da morte de Chico Mendes, defensor de um modelo de reforma agrária que respeitasse as características amazônicas. Passadas mais de três décadas, a Resex que leva o seu nome encontra-se bastante pressionada por conflitos fundiários, provocados pelo fracionamento das colocações pelos próprios moradores.
“Eu diria que 50% das pessoas que vêm, eles não são extrativistas, eles não tem o perfil e não são. E outra: quem compra 50 hectares, 10 hectares, 20 hectares ele não é um extrativista, porque não tem como você ter uma estrada de seringa para viver. Você tem que ter, no mínimo, duas estradas para viver que é pra você cortar duas vezes por semana cada estrada”, diz.
Por tradição, nos tempos áureos da economia da borracha cada estrada de seringa teria o tamanho de 100 hectares. A colocação de Luzineide tem quatro estradas de seringa, o que daria 400 hectares. Nos cálculos dela a área total não chega a esse tamanho. A maioria dos compradores de terra dentro da Resex Chico Mendes não são extrativistas, querem investir na agropecuária. Parte deles é oriunda de Rondônia.
“E o maior problema é esse daí. Eles não têm o perfil, e mesmo aqueles que têm o perfil, que nasceram e se criaram, e são assentados dentro da Resex tão cometendo os crimes de venda de terra.”
Este comércio de lotes é um dos principais fatores a impulsionar o desmatamento dentro da unidade de conservação, principalmente a partir de 2019. Foi no final daquele ano que aconteceu a apresentação do projeto de lei (PL 6024), na Câmara dos Deputados, que desafeta áreas da Resex Chico Mendes. O projeto foi encampado pelos moradores da UC que já devastaram toda a floresta de suas colocações, transformando-se em médios e grandes pecuaristas.
A simples perspectiva de aprovação da proposta provocou um boom na comercialização de terras pelos moradores. Entre 2019 e 2002 a Resex Chico Mendes esteve entre uma das unidades de conservação mais desmatadas na Amazônia Legal. De acordo com o Inpe, no período a área desmatada chegou a 307 km2.
Para a seringueira que resiste no seringal Albrace, a solução para o problema nao passa apenas por punir quem compra terra, expulsando da área, mas também quem vende, fraciona as colocações. De acordo com ela, as mesmas área de onde foram expulsos os compradores são vendidas, meses depois, muito mais valorizadas, aproveitando as benfeitorias deixadas.
“Não adianta expulsar o comprador, que vem de fora, ou mesmo que seja daqui, porque esse mesmo morador que é assentado vai vender esse pedaço pelo preço melhor.”
Enquanto os órgãos de Estado se omitem em garantir a proteção da vida de Luzineide, essa brava seringueira vai resistindo como pode, enfretando de cabeça erguida todas as adversidades. Ao seu redor, os criminosos ambientais até podem derrubar as suas seringueiras – mas Luzineide Marques da Silva permanecerá de pé.
Esta reportagem foi produzida em parceria com o Comitê Chico Mendes