Já espalhados por quase todo país, Warao ainda convivem com o drama da invisibilidade e da discriminação
População minoritária e fora do território natal, os Warao, oriundos da Venezuela, atravessam a fronteira para morrer de fome e desnutrição no Brasil. Segundo censo realizado pelas próprias lideranças do povo, eles já são mais de nove mil pessoas no país. Desamparados, muitos vivem em situação de vulnerabilidade, pedindo ajuda em semáforos
Steffanie Schmidt
Dos Varadouros de Manaus
No atestado de óbito, a causa da morte da adolescente indígena da etnia Warao é infarto. “Mas isso é porque consideraram que foi súbito”, explica Daisy Warao, liderança de seu povo que vive há seis anos em Manaus. Antes de morrer, a jovem de 13 anos passou três dias com febre intensa, sem recursos para se deslocar até uma unidade hospitalar. Uma vida que antes inexistia nas estatísticas, agora passa a ser contabilizada entre os mortos. Embora sejam registrados ao adentrar a fronteira brasileira, os Warao deixam de existir para a sociedade depois que tentam se estabelecer em território brasileiro, fora dos abrigos. Por conta própria, eles passaram a se comunicar em grupos, via WhatsApp, para fazer um censo próprio, antes da iniciativa do órgão responsável Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O Censo de 2022 com dados da população indigena, divulgado em agosto, trouxe, pela primeira vez, o recenseamento dos imigrantes, principalmente venezuelanos que vivem fora do sistema oficial de abrigos. A partir de um acordo inédito entre IBGE e agências da ONU – Organização Internacional para Migrações (OIM) e com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) – foi possível mapear essa população, principalmente em Roraima e Amazonas, onde se concentram boa parte dos venezuelanos que migram para o Brasil, devido à proximidade com a fronteira.
A perda da jovem indígena Warao no final de abril, seguida do falecimento de um bebê de quatro meses, em maio, motivou uma reunião emergencial puxada pela Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime) com representantes de 21 instituições, para discutir soluções para os problemas enfrentados pelo povo Warao, principalmente relacionado à fome e à desnutrição. O desemprego e a falta de oportunidades para trabalhar, devido a não existência de registros básicos, também agravam a situação.
“Os pais do bebê tinham ido tirar o registro da criança, abriram o processo numa sexta-feira e, no domingo, a criança veio a óbito, sem certidão. Nem conseguiram socorrê-la: quando chegaram à unidade de saúde, ja foi levada para o IML”, explica a coordenadora da Copime, Marcivana Sateré Mawé. “Percebemos que o atestado de óbito trazia ‘causas desconhecidas’ e fomos verificar o que estava acontecendo. Nos deparamos com um grande índice de tuberculose entre os Warao, com crianças já nascendo assim. Os relatos são muito tristes. As famílias só fazem uma alimentação por dia e, normalmente, é enganando a fome com pirulito e guaraná”, completou.
Em 2021, os próprios Warao contabilizaram quatro mortes entre os que vivem no Amazonas: dois adultos e duas crianças. Em 2022, seis pessoas faleceram. Este ano, cinco perderam a vida até o mês de agosto. Todas as causas estão relacionadas a questões de saúde.
Em João Pessoa (PB), em setembro de 2022, o Ministério Público Federal (MPF) pediu que a Justiça Federal determinasse à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito Especial de Saúde Indígena Potiguara (Dsei) atendimento de saúde às famílias do povo Warao refugiadas na cidade. Entre o grupo de 300 indígenas refugiados na capital paraibana, foram registradas pelo menos dez mortes desde 2020, sendo sete delas de crianças, a maioria causadas por doenças como pneumonia, tuberculose e infecção generalizada. Recém-nascidos e mães foram as principais vítimas.
Os dados revelam que, após a pandemia de Covid-19, as mortes passaram a ser uma questão de tempo para quem sobrevive à insegurança alimentar, condições insalubres de moradia e falta de assistência médica.
“A causa por trás de tudo é a desnutrição porque nosso povo está morrendo de doenças que se podem evitar, prevenir, como doenças infecciosas aguda, broncopneumonia. A moradia em locais insalubres, que é o que se pode pagar, depois que junta muitas pessoas torna o contágio de tuberculose escabiose muito rápido. Não se tem acesso a produtos de limpeza, de higiene porque primeiro precisa comer. E também não se tem garantia de alimentação adequada”, explica Fiorella Ramos Blanco, que está à frente da nascente Organização dos Indígenas Venezuelanos (Oivab).
Alimentar-se três vezes ao dia, segundo ela, é muito raro entre os Warao, mesmo para os que estão em melhores condições. “Normalmente é só o almoço, e talvez pode comer algo depois. Não se tem a garantia de que todos os dias poderão se alimentar, nem a possibilidade de comprar. Alguns recebem o apoio do governo (Bolsa Família), mas boa parte é apenas para cobrir o aluguel”, explica.
A proposta de criação da organização, que aguarda recursos para oficializar o registro em cartório – é de iniciar um trabalho articulado para a criação de um centro de saúde com aproveitamento de profissionais Warao que têm experiência e formação em medicina, enfermagem, técnico, além de tradutores da língua tradicional.
A organização foi o suporte para o levantamento do quantitativo de indígenas venezuelanos, feito em parceria com a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania (Semasc) em 10 bairros onde há a presença de representantes de migrantes do povo Warao em Manaus. “Fizemos uma lista manual com os dados das famílias e mantemos contato com liderança de cada bairro por meio de um grupo de WhatsApp. Assim conseguimos saber quando um warao se muda para outro estado. A Semasc nos ajudou com transporte”, afirma Fiorella Blanco.
De acordo com o Censo 2022, eles representam uma população de nove mil indígenas em todo o país. No Amazonas, esse número chega a 600 pessoas. Eles constituem a segunda etnia indígena mais populosa da Venezuela. No Amazonas, eles somam-se ao maior quantitativo de indígenas do país, 28,98% da população, segundo dados divulgados pelo Censo Indígena do IBGE.
Trabalho x Mendicância
“Hoje mal se consegue R$ 15 ou R$ 20 na rua. Só faz isso quem quase não tem nada o que comer. Não somos povo de diáspora, saímos da Venezuela por uma situação econômica. A maioria deixou sua casa, seu trabalho. Coleta de dinheiro, pedir, não é trabalho de Warao. Não estamos acostumados a isso. Somos artesãos, praticamos agricultura, pesca, ajudamos. Somos pessoas trabalhadoras. Temos enfermeiros, professores, arquitetos, tem muito migrante preparado, não somente Warao, que é a maioria dos indígenas, mas de outros povos também”, afirma Daisy Josefina Perez Valdez, uma das lideranças Warao na capital amazonense.
De acordo com a Acnur, os indígenas oriundos da Venezuela que vivem no Brasil são de quatro etnias – Warao (66%), Pemon (30%), Eñepa (3%) e Kariña (1%) – e a maior parte está na região Norte, mas já se encontram presentes em 16 estados. Professora, Daisy deixou o trabalho que exercia há 15 anos para buscar melhor qualidade de vida para os filhos e netos. “Não havia comida, médicos, remédios. Viemos fugindo da crise econômica. A Copime apareceu em um momento que deu um ‘reforço de ânimo’ na nossa luta. Estamos esquecidos, invisibilizados”, relata.
Daisy ajudou na organização da Oab, mas hoje se dedica a ajudar, de forma independente, os diversos grupos familiares espalhados por Manaus. “Quando chegamos aqui, passamos por um só lugar, então, de alguma forma, nos conhecemos. Temos contato com todos os que estão em diferentes estados. Nos comunicamos, fazemos reunião online para saber se alguém necessita de alguma ajuda”, explica. Ela aponta a existência de nove mil indígenas venezuelanos morando hoje no Brasil, sendo 700 já nascidos aqui.
“Temos criança, terceira idade que não têm nenhum benefício e que necessitam de medicação, alguns com tratamento regular. Nas unidades de saúde não somos atendidos porque o idioma dificulta. Falta tradutor. Mesma coisa nas escola: necessita de professor tradutor que trabalhe na escola. Nossas crianças não dominam a língua portuguesa. Nosso idioma é Warao, alguns falam uma segunda língua que é o espanhol”, explica.
“Alguns falam o espanhol e um pouquinho de português, outros, somente a língua materna e aí está a grande dificuldade: quando vão buscar atendimento na saúde, são discriminados, maltratados. Uma liderança nossa presenciou um médico que saiu gritando com eles e disse que não ia atender porque não entendia o que eles falavam”, afirma Marcivana Satere Mawé.
Em 2020, a Copime assumiu a bandeira de luta dos Waro e levou a questão da necessidade de tradutor nas escolas para o Conselho Estadual de Educação Escolar Indigena. Desde então, têm chamado as representações para participar de reuniões, encontros, formações e conferências.
“No início do ano tinha muita criança fora da sala de aula e com dificuldade de se matricular, por conta da língua, da internet, dos trâmites. Em fevereiro, a comissão de educação da Copime acompanhou um grupo deles e conseguiu matricular 19 crianças e jovens. Fomos até eles porque eles tendem a se isolar em grupos, são tímidos. Tinha casos que cotizamos recursos para poder tirar foto para fazer o documento”, explica.
No documento “Os Warao no Brasil – Contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes”, da Acnur, aponta-se a necessidade de atuação de instituições públicas ou organizações da sociedade civil no auxílio e orientação no decorrer de todo o processo para obtenção de documentação, “pois essa população, em decorrência de desigualdades sociais históricas, vê-se impossibilitada de acessar tais serviços de maneira autônoma”.
Diante da situação, Daisy Valdez reforça a necessidade de uma organização própria. “O trabalho feito pelas ONGs nos ajuda muito, mas depois passa. É emergencial. Precisamos e queremos trabalhar para nos manter. Nenhum dos indígenas, hoje, está empregado”, afirma.
Histórico
A presença Warao é registrada no Brasil desde meados de 2014, segundo dados da Acnur, mas se manteve pouco expressiva durante os primeiros anos. Foi somente a partir de meados de 2016, em decorrência do agravamento da crise política e econômica na Venezuela, com desabastecimento de produtos básicos, hiperinflação e aumento da violência, que o processo de deslocamento de venezuelanos/as indígenas e não indígenas para o Brasil se intensificou.
Warao significa gente de canoa, por ser este seu meio de transporte há muito tempo. Suas origens ancestrais concentram-se no estado do Delta Amacuro, localizado ao noroeste da Venezuela. O território é bastante arborizado, estendendo-se por toda parte do estado com uma fauna e flora muito diversas.
Os Warao são agricultores e pescadores. Hoje em dia o artesanato representa uma fonte de renda para muitos. É um grupo com características específicas que, a partir de 1960, em virtude de intervenções em seu território que impactaram sua água e o seu solo de origem, passa a estabelecer ciclos de deslocamento para os centros urbanos. Posteriormente, na década de 1990, a Venezuela enfrentou uma epidemia de cólera que provocou a morte de cerca de 500 pessoas no delta do rio Orinoco, em sua maioria, indígenas Warao.
Contexto
O Brasil acolhe a quinta maior população de venezuelanos deslocados da América Latina. Estima-se que mais de 400 mil refugiados e migrantes da Venezuela encontram-se atualmente no Brasil, de acordo a Análise Conjunta Multissetorial das Necessidades de Refugiados e Migrantes da Venezuela no Brasil. O documento foi produzido por vários atores da Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (P4V).
Doação
Para quem quiser colaborar com o registro social do estatuto da Oivab, com qualquer valor, o pix de arrecadação é o celular: 95991379740. Para contribuir com o trabalho de assistência independente, a professora Daisy Valdez indica entrar em contato com a Copime: copimemanaus@gmail.com e @copimemanaus, no Instagram.