Comissão da Agricultura do Senado acelera votação do marco temporal; bancada do Acre apoia
A surpresa foi o voto favorável do senador Sérgio Petecão (PSD), que em maio fez discurso ao movimento indígena do estado criticando o marco temporal. “O povo indígena não pode ser crucificado”, disse, então. Agora, na comissão dominada por ruralistas e bolsonaristas, o parlamentar parece ter mudado de postura
Dos Varadouros de Rio Branco
A bancada federal do Acre no Congresso Nacional continua a sua ofensiva contra as populações indígenas. Após a maioria dos deputados federais ter votado, no final de maio, favorável ao projeto (PL 490) que estipula a tese do marco temporal para o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil, agora os três membros do estado no Senado parecem estar dispostos a acelerar sua tramitação, bem como aprová-lo. Na quarta, 23, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), presidida pelo senador bolsonarista Alan Rick (União-AC), fez passar o projeto de lei, que no Senado ganhou a numeração 2903, mas cujas bases são as mesmas: cercear os direitos dos povos indígenas à posse de seus territórios.
Todos os três senadores do Acre são membros titulares da CRA. Na votação de quarta, apenas Márcio Bittar (União) esteve ausente. Por presidir a sessão e a matéria ter sido aprovada pela maioria, Alan Rick não precisou votar. O único voto oficial da bancada acreana foi o de Sérgio Petecão – o que causou supresa ao movimento indígena do estado. Em maio, durante protesto realizado por lideranças contra o PL 490, no hall de entrada da Assembleia Legislativa, Petecão se fez presente, e fez um discurso contra o marco temporal (assista ao vídeo abaixo), afirmando ser a proposta uma ameaça às populações indígenas, colocando em risco a preservação da Floresta Amazônica.
Agora, longe dos olhares indígenas e numa comissão dominada pela bancada ruralista, o parlamentar votou favorável ao PL que tanto criticou. O projeto de lei institui a chamada tese do marco temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal. A aprovação da matéria é defendida pelos setores mais conservadores do Parlamento brasileiro, em boa parte ligada aos interesses do agronegócio contrário à demarcação de terras indígenas.
Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados em 31 de maio, a matéria foi enviada para o Senado, sendo aprovada por ampla maioria (13 votos) dos senadores membros da CRA. Agora, o texto segue para a análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes de ser avaliado pelo plenário. Na CRA, o projeto recebeu voto favorável da relatora, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS).
Soraya rejeitou as dez emendas apresentadas por senadores. A relatora disse estar “convicta de que a data da promulgação da Constituição federal, de 5 de outubro de 1988, representa parâmetro apropriado de marco temporal para verificação da existência da ocupação da terra pela comunidade indígena”.
No mesmo dia, mais de 300 entidades de representação dos movimentos indígenas do país publicaram um manifesto contra a tramitação do PL 2903. As organizações apontam um possível tratoraço na tramitação do PL nas comissões do Senado Federal. Para elas, antes de ser analisada pela comissão dominada pelo agronegócio, a matéria deveria ter passado pelos colegiados do Meio Ambiente (CMA) e de Direitos Humanos (CDH).
“O projeto em questão permite diversas arbitrariedades contra os povos indígenas e suas terras, que hoje protegem 24% do que restou de Floresta Amazônica e prestam um inestimável serviço ambiental a todos brasileiros, como a manutenção da regularidade de chuvas no Centro-Sul do país”, diz trecho do documento.
“Uma dessas arbitrariedades é permitir a retomada de reservas indígenas pela União a partir de critérios subjetivos, o que colocaria em risco imediato pelo menos 66 territórios, habitados por mais de 70 mil indígenas e com uma área total de 440 mil hectares. É importante mencionar que são terras já regularizadas e consolidadas e que essa possibilidade provocaria insegurança jurídica, violência e invasões com a expectativa de revisão de atos jurídicos perfeitos.”
Décadas de espera por um direito atemporal
A aprovação do marco temporal também provocaria insegurança para as populações indígenas do Acre. De acordo com dados da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), o estado possui 35 terras indígenas reconhecidas pelo governo. Delas, 24 estão com seus processos de demarcação concluídos. As outras 11 estão na fila de espera.
Segundo a CPI, as terras indígenas – incluindo as não homologadas – correspondem a 14,5% do território acreano. Além de assegurar a manutenção da floresta em pé, as terras indígenas são a garantia de sobrevivência dos 25 mil indígenas acreanos. Dentro destas áreas protegidas eles têm sua segurança alimentar e preservam a relação ancestral-cultural com a floresta.
Entre as TIs no aguardo da demarcação está a do povo Nawa, cujas terras reivindicadas estão no município de Mâncio Lima, e atualmente encontram-se nos limites do Parque Nacional da Serra Divisor. Até o fim dos anos 1990, o povo Nawa era tido como extinto no Acre.
Após um processo de autorreconhecimento e identificação, eles foram oficialmente reconhecido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os Nawa estão há mais de 20 anos à espera da demarcação de seu território. Um dos entraves se deu com o Ibama – depois ICMBio – por conta da TI estar no interior da unidade de conservação. Em 2021, cansados da longa espera, os Nawa decidiram fazer a autodemarcação da TI.
No final de abril, lideranças Nawa estiveram na sede da Funai em Brasília para cobrar aceleração no processo de reconhecimento do território. Eles também tiveram reuniões no Ministério dos Povos Indígenas, e com a presidência do ICMBio. Caso a tese do marco temporal seja aprovada pelo Senado – e com o apoio dos três senadores do Acre – os Nawa podem ter o processo de demarcação da TI ainda mais comprometido.
Em abril, a Funai criou grupos de trabalho (GTs) para dar continuidade aos processos de três territórios no Acre; além da TI Nawa. A TI Jaminawa do Caeté e a TI Riozinho do Iaco também foram contempladas. As duas terras são reivindicadas pelos Jaminawa de Sena Madureira, povo que, há décadas, sofre com a usurpação de seus territórios.
Sem o reconhecimento das terras (alvos das invasões de caçadores e madeireiros ilegais), os Jaminawa vivem em situação de extrema vulnerabilidade pela periferia de Sena Madureira. A deputada federal Meire Serafim (União), esposa do prefeito Mazinho Serafim (MDB), votou Sim ao marco temporal (PL 490) na Câmara, em maio.
Quem também está na fila de espera é o povo Kuntanawa, de Marechal Thaumaturgo, e numa situação parecida com os Nawa. Suas aldeias ficam dentro de uma unidade de conservação, a Reserva Extrativista Alto Juruá. Os Huni Kuin da TI Kaxinawa do Seringal Curralinho, em Feijó, aguardam a demarcação. Atualmente, o território se encontra na etapa de identificação.