Incra arrecada terras em área conflagrada; famílias temem perda de benfeitorias

Portaria determina a arrecadação de quase 30 mil hectares de terra na região Sul do Amazonas, suspeitas de terem sido griladas e legitimadas por cartórios. A área é reivindicada por duzentas famílias de trabalhadores rurais do acampamento Marielle Franco. Região está no centro da tríplice divisa Amacro e é marcada por crimes ambientais, fundiários e violações de direitos humanos.
Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) irá arrecadar 28,47 mil hectares de terras circunscritas à Gleba Novo Natal, no município de Lábrea, na região sul do Amazonas. Nessa área onde ocorre grilagem de terra está a Fazenda Palotina, do grupo Zamora, de Rio Branco, palco do agravamento da violência contra acampados desde 2019. A portaria assinada pelo presidente da autarquia, César Fernando Schiavon Aldrighi, foi publicada no Diário Oficial da União em 24 de fevereiro deste ano.
A gleba, que faz limites com diversos imóveis – antigos seringais – legalizados na região, será incorporada ao patrimônio da União. Na estimativa das famílias, poderiam ser ao menos 40 mil hectares, mas não foi possível.
Novo Natal se estende até o vizinho município de Boca do Acre, cuja sede fica a 170 km de Rio Branco. Com documentação duvidosa e examinada desde o ano passado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, o grupo Zamora havia ampliado os limites para mais de cem mil hectares, estendendo seus tentáculos até Lábrea.
O acampamento Marielle Franco, com aproximadamente duzentas famílias, já foi atacado diversas vezes por jagunços e policiais (do Acre). Ali, jagunços semeiam o terror: em março de 2024, queimaram a casa de Paulo Sérgio Araújo, líder da ocupação na área de conflitos.
A região está localizada bem no centro da tríplice divisa Amacro, formada pelos territórios do Amazonas, do Acre e de Rondônia. Tornou-se conhecida como nova fronteira do desmatamento na Amazônia, onde se acumulam denúncias das práticas de crimes ambientais, roubo de terras públicas e violações de direitos humanos.
Ao comentar a decisão do Incra, nesta segunda-feira, ao Varadouro, Paulo Sérgio afirmou que “nem tudo é o que parece”. Conforme explicou, o iminente remanejamento de pelo menos a metade das famílias para áreas de pastagem prejudicará a todas. “Muitos de nós ali plantamos milho, feijão, mandioca, mamão e outros produtos, e a mudança resulta na perda dessas benfeitorias”, comenta.

arrecadar 67 mil ha depois; uma parte abaixo do traço ficou fora
O acampamento Marielle Franco fica vizinho à Fazenda Palotina, que Sidney Zamora alega ser sua propriedade. Há anos essa área fora reivindicada pelo fazendeiro, que estende seus tentáculos desde o município acreano de Senador Guiomard.
O sumiço de documentos no Cartório de Lábrea apressou o TJ amazonense a investigar cartórios na região da Amacro. Há muitas terras devolutas ainda à espera de decisão superior para serem recuperadas.
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A queima de casas e barracos das famílias de agricultores por jagunços é uma prática rotineira na região – isso quando não são alvo de disparos de armas de fogo. Com a desapropriação prevista pelo Incra será possível assentar as famílias.
“Nossos pedidos parecem que não adiantam a busca da verdade; as autoridades maiores não cumpriram a promessa de investigar policiais”, lamenta o líder da ocupação, Paulo Sérgio Araújo. No ano passado ele foi levado preso de Lábrea para Manaus. Em abril daquele ano, com a demora no julgamento do habeas corpus (HC) impetrado em seu favor, ele via piorar sua situação de saúde, na cela 10 do pavilhão 6 do Centro de Detenção Provisória (CDP) em Manaus. Ele sofre artrose, diabetes, hérnia de disco e Parkinson. Do CDP ele foi libertado por decisão judicial, depois dos pedidos feitos pela Defensoria Pública e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Rio Branco.
“A verdade fica camuflada, a gente sofre com isso. O poder público às vezes anuncia medidas enérgicas contra o latifúndio, mas não cumpre, e quanto a gente denuncia ainda é criminalizada”, ele diz.
Segundo Paulo Sérgio, a intimidação levada por jagunços e policiais à área do assentamento chega a desmobilizar diversas famílias. “Eles semeiam o medo. Eu procuro fazer o certo para fazer valer nossos direitos, mas isso tem um custo: um dia queimaram o meu caminhão, meu ganha-pão”, conta Paulo Sérgio.
O artigo 2º da portaria do Incra determina à Divisão de Governança da Terra da Superintendência Regional do Amazonas a adoção de medidas subsequentes, ou seja: providenciar a matrícula dessa área em nome da União, perante a Serventia do Registro Público de Lábrea. A Corregedoria de Justiça do TJ do Amazonas está de olho nesse município, onde o cartório esteve sob intervenção até o final de 2024. Descobriram-se folhas arrancadas do livro de escrituras.
Outras arrecadações históricas
Na mais notável arrecadação da colonização em Rondônia, o Incra obteve três milhões de hectares da antiga gleba Corumbiara, próxima à região do Guaporé. No final da década de 1970, ela foi toda dividida em lotes de dois mil ha na formatação de quatro mil metros de frente por cinco mil m de fundos. O autor da façanha agrária foi o então coordenador regional da autarquia no ex-território federal, capitão Sílvio Gonçalves de Farias.
Outra situação interessante foi a da gleba Nova Vida, entre Ariquemes e Jaru, do grupo Arantes, que pretendia aumentar sua posse em 22 mil ha. A coordenadoria do Incra evitou que isso se consumasse.
E, duas décadas atrás, o Conselho Nacional de Justiça retomou aproximadamente 400 mil ha de terras devolutas, então disputadas por grileiros no município de Canutama, no Amazonas.
Em novembro do ano passado, a família Zamora teve um de seus membros incluídos na lista nacional de foragidos da Justiça: em 31 de outubro, a juíza federal Maria Elisa Andrade, da 7ª Vara Federal Ambiental de Manaus determinava a prisão preventiva de Sidney Sanches Zamora Filho. No dia 1º de novembro, ao cumprir mandados no apartamento dos Zamora em Rio Branco, a Polícia Federal não o localizou, e ele tampouco se apresentou. Após intensa atuação de seu advogado, o fazendeiro obteve um HC que assegura a sua liberdade.
Varadouro noticiou em dezembro de 2024: Famílias de agricultores sem-terra do acampamento Marielle Franco denunciaram agressões cometidas por seguranças de uma empresa privada que faz a vigilância das terras para a família Zamora.
Além de agressões físicas, os camponeses contaram que tiveram seus barracos destruídos pelos vigilantes, alegando o cumprimento de uma ordem judicial.
