Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho
Deve ter sido muito doloroso para a família do médico e cientista Oswaldo Cruz vê-lo tão triste antes de morrer, em fevereiro de 1917, depois de conseguir pôr fim à febre amarela, controlar a peste bubônica e a varíola. Em 1902 ocorreram cerca de mil óbitos no Rio de Janeiro, e dois anos depois, apenas 48. Cruz se foi aos 45 anos, frustrado com a política da época, traumatizado e infeliz, conta o médico paraense Ary Tupinambá Pena Pinheiro em seu livro Viver Amazônico, editado em 2000.
Em 1912, Cruz, paulista de São Luiz do Paraitinga, concluía um relatório com 20 recomendações profiláticas para construtores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a mais isolada do Planeta naquele início de século.
Doutor Ary, partícipe de importantes capítulos na história dos velhos territórios federais do Guaporé e Rondônia, explica um deles: “Quando a companhia americana May, Jeckyll & Randolph iniciou a construção da Madeira-Mamoré em 1907, cumpria um dos itens do Tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro de 1903, obra de José Maria da Silva Paranhos, o hábil Barão do Rio Branco, no governo de Rodrigues Alves.”
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A companhia norte-americana não preparou com antecedência a região onde rasgou a floresta para assentar trilhos, o que resultou na mortandade entre as primeiras levas de trabalhadores de diversas partes do mundo.
Conforme frisa Ary, alguns deles tinham experiência na construção de ferrovias em Cuba, nas zonas pantanosas da Guatemala e na abertura do Canal do Panamá, onde havia situação semelhante à de Santo Antônio do Rio Madeira.
“Ainda estava viva na mente de todos a lembrança dos sucessivos fracassos das empresas que tentaram construir a ferrovia e malograram, fugindo daqui, inclusive as Comissões Técnicas de Carlos Morsing e Júlio Pinkas, de Santo Antônio.
“Nos primeiros anos de construção, os trabalhos pouco rendiam. Os trabalhadores só apresentavam produtividade nos primeiros meses. Eram atacados por várias moléstias: ancilostomíase, beribéri, disenteria, pneumonia, sarampo e principalmente o impaludismo, a ‘doença da Amazônia’, segundo o grande Oswaldo Cruz.”
A Companhia May, Jeckyll & Randolph havia construído o Hospital da Candelária em 1907, mas a inexistência de um serviço médico modelar impossibilitava aos engenheiros continuar a obra. Trouxe, então, dos Estados Unidos um hospital-modelo completo.
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“Os doutores William Helmerich, Walcott, Whitaker, Walsh, Poncy, River, Carl Lovelace, sob a chefia do Dr. Belt, percorriam diariamente em automóveis de linha as turmas de construção, visitando os doentes e fazendo conduzir os casos mais graves para o Hospital da Candelária”, conta Ary.
Durante quatro anos – 1908-1911 – o registro de internamento do hospital chegou a 30.500 doentes, e as quotas anuais de quinino* importadas totalizavam duas toneladas.
“Tenho praticado continuamente, por 16 anos, nos países tropicais, e não hesito em afirmar que a região a ser atravessada pela Madeira-Mamoré é a mais doentia do mundo”, afirmava o Dr. Belt em seu relatório. Ele apurava: 30% a 50% dos auxiliares estrangeiros e 40% a 75% dos nacionais estavam inválidos pela malária.” E seu colega Lovelace espantava-se: essa doença atingia 95% dos trabalhadores.
A quinização intensiva passou a ser adotada para combatê-la em suas diferentes formas clínicas, entre as quais, a chamada febre negra ou febre hemoglobinúrica (black fever).
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Ary acreditava que naquele tempo já existia a hepatite a vírus, a febre amarela silvestre e a esperocthose hiteromorrágica**, cujos sintomas são semelhantes.
“(…) Os alagadiços deixados pelas cheias do Rio Madeira eram muitos, constituindo-se viveiros de larvas de anofelinos. E a companhia construtora decidiu, então, para solucionar o problema, convidar o jovem sanitarista Oswaldo Cruz, que havia saneado o Rio de Janeiro da febre amarela e acabara de exterminar o surto dessa doença em Belém do Pará, no início do governo João Coelho.”
Cruz chegou a Porto Velho a 9 de julho de 1910, acompanhado de outro sanitarista, Belizário Pena, que o ajudara na extinção do vírus amarílico no Rio de Janeiro. Eles se instalaram no Hospital da Candelária e, durante suas permanências, percorreram 33 quilômetros da linha férrea em construção.
O médico sanitarista escreveu o relatório: “Considerações gerais sobre as condições sanitárias do Rio Madeira”, e o enviou no início de setembro de 1910 ao representante das Companhias Madeira-Mamoré e Port of Pará, no Rio de Janeiro, Carlos Sampaio.
A repercussão na área médica foi grande: os sanitaristas Leylson Cardoso e Rubens da Silveira Brito publicaram o relatório no livro: “A febre amarela no Pará”, de autoria de ambos.
Cruz escrevia: “A vila de Santo Antônio não tem esgotos, nem água canalizada, nem iluminação de qualquer natureza. O lixo e todos os produtos da vida vegetativa são atirados às ruas. (…) O gado é abatido em plena rua a carabina e as porções não aproveitadas – cabeça, couro, cascos, vísceras etc. – são abandonados no próprio local onde a rês sacrificada, jazendo num lago de sangue. Tudo apodrece junto às habitações e o fétido que se desprende é indescritível. Sobre os organismos que vivem em tal meio o impaludismo faz as maiores devastações que se conhecem. A população infantil não existe e as poucas crianças que se veem têm vida por tempo curto. Não se conhecem entre os habitantes de Santo Antônio pessoas nascidas no local: essas morrem logo. O impaludismo, moléstia evitável, o único terror sério da região.”
O sanitarista constatava que a insalubridade na região começava em meados de maio. “Entre o máximo da enchente, de 96 metros acima do nível do mar, e o nível mínimo da vazante, de 82m, há 14m de diferença. Formam-se, assim, imensos criadouros de anofelinos a partir do início da vazante, assegurando a ação deletéria dos transmissores da malária, que se acentua de maio a outubro.”
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Cruz notava que o conjunto de medidas de agressão impedia a reprodução dos mosquitos transmissores, constituindo o saneamento definitivo da zona. E recomendava a concentração de esforços para prevenir a eclosão da malária: obrigatoriamente, doses de quinino de 75 centigramas a 1 grama, todo dia, quando o trabalhador chegava do serviço.
Tal providência fora colocada em prática a partir de 1º de agosto de 1910, alterando o quadro das baixas por malária aguda. Recomendava ainda como profilaxia mecânica, a instalação de telas metálicas de proteção contra o mosquito, idênticas às da Candelária e das casas dos técnicos da Companhia, em Porto Velho.
Alimentos deteriorados provocavam infecções e intoxicações, constatava o médico sanitarista: “A base da alimentação é a carne seca e a farinha d’água. (…) Tive ocasião de conversar com um dono de seringal do rio Jacy-Paraná, que me declarou: o jabá podre não vai para o rio, tem de ser adquirido pelos seus empregados. (…) Alimentos frescos não existem. O consumo de álcool é fabuloso, apesar do preço exorbitante. Com tal regime alimentar não há organização que possa resistir às entidades mórbidas que assolam o território.”
Ary acrescenta: “Nas casas comerciais de Belém e Manaus havia o caixeiro de solda: sua tarefa era furar as latas de conservas para atenuar os vestígios dos gases da decomposição. Conseguiam, assim, enganar os compradores.”
Quanto aos locais onde funcionou o Hospital da Candelária e o cemitério internacional, a três quilômetros do Centro antigo de Porto Velho, nos anos 1980 foi tomado por empresas imobiliárias e a própria população porto-velhense contentou-se em chamá-lo de bairro.
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RIOS DE BORRACHA
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* O quinino é uma substância alcaloide natural encontrada na casca da árvore da quina, conhecida cientificamente como Cinchona. Essa árvore é nativa das regiões tropicais da América do Sul, como Peru, Colômbia, Equador e Bolívia. É amplamente utilizado na medicina como agente antimalárico – um dos mais antigos e eficazes tratamentos.
** Ary Pinheiro lembra que os professores Noth e Mayer, do Instituto Tropical de Hamburgo, estudaram a hemoglobinúrica palustre, concluindo que essa forma clínica da malária era provocada pelo excesso da aplicação de quinino, entretanto, em 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, o médico Gellevardini, do exército colonial inglês, provou o contrário, na Argélia, tratando 143 hemoglobinúricos com a substância.
NOTA
Porto Velho homenageou o cientista, dando seu nome à principal policlínica do estado. No Rio de Janeiro, a Fiocruz – uma das instituições responsáveis por tomar a dianteira na produção de vacinas contra Covid-19 em território nacional – recebeu o nome em homenagem à trajetória do médico, que fundou e dirigiu o órgão público no fim do século XIX. Na mesma época, surgia em São Paulo o Instituto Butantan, fundado pela mesma equipe de Oswaldo Cruz, também com o objetivo de combater as epidemias que estudavam.