RIOS DE BORRACHA

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De cada 60 homens que partiam, dez morriam e 20 ficavam doentes; libras de ouro circulavam em Santo Antônio

Entre o fim do século 19 e o início do 20, a economia da borracha impulsionou a Amazônia; toda a produção exportada para o mundo era transportada pelos rios (Foto: Acervo IBGE)




No começo de fevereiro, Varadouro começou a publicar uma série de reportagens baseadas no livro “Viver Amazônico”, escrito por Ary Tupinambá, ou simplesmente o Doutor Ary. São as lembranças de uma Amazônia dos tempos áureos dos seringais, durante o primeiro ciclo da borracha (1879-1912). Tempos em que os rios eram o único “caminho” para sair e chegar à região.



Montezuma Cruz
Dos varadouros de Porto Velho

Quando o nível do rio permitia, o transbordo obedecia à correnteza nas cachoeiras Jirau, Ribeirão e Teotônio, no Rio Madeira. Santo Antônio, via circular libras de ouro. Já em Belém a borracha fora incluída na pauta das exportações desde 1824, no valor de 4.500 réis por arroba, conta o médico, etnólogo e botânico Ary Tupinambá Penna Pinheiro. Réis era a moeda daquela época. 

Em 1874 o valor exportado já era de 9.495 contos; em 1878 de 10.153 contos, valendo a libra peso 40 centavos de dólar nos Estados Unidos e 1 sh, 8 d na Inglaterra. Com a guerra franco-alemã, que começou em 1872, abaram-se os preços, mas se revigoraram ao final.

No começo de fevereiro, Varadouro começou a publicar uma série de reportagens baseadas no livro “Viver Amazônico”, escrito por Ary Tupinambá, ou simplesmente o Doutor Ary. São as lembranças de uma Amazônia dos tempos áureos dos seringais, durante o primeiro ciclo da borracha (1879-1912). Tempos em que os rios eram o único “caminho” para sair e chegar à região.

Eram por estas águas que saíam toda a produção dos seringais. O rio Madeira, de onde às suas margens viria a surgir Porto Velho, era um dos mais movimentados neste vai e vem de pessoas, mercadorias e as bolas de borracha boiando sobre suas águas barrentas.

Ary Pinheiro (1º à esq.), viajando pelo Rio Guaporé (Foto Acervo Familiar)

Conta o doutor Ary:

No ano de 1866, período da Guerra do Paraguai, o Brasil tinha interesse na ligação de Mato Grosso ao oceano Atlântico, entrando em entendimentos com a Bolívia, que também não tinha saída para o mar. Em 1861, o general Quentin Azevedo já aventava a hipótese de uma ligação férrea apoiada pouco depois pelo engenheiro Silva Coutinho, o que resultou num tratado, dia 7 de março de 1867.

Assinado na Bolívia, esse tratado permitia aos bolivianos navegar no Rio Madeira e seus tributários, surgindo em razão disso Madeira-Mamoré Railway Co e o Coronel Church, seu concessionário, já mostrando o interesse no transporte e comércio da Hevea, tanto brasileira como boliviana.

A firma inglesa Public Works mandou um grupo de engenheiros e técnicos para começar a construção no dia 6 de julho de 1872, os quais abandonaram todo o equipamento com poucos meses de trabalho e se retiraram. Church contratou uma firma americana, a P & T Collins, que também abandonou a empreitada.

Depois de assinado o Tratado de Petrópolis, numa concorrência primeiramente ganha por um brasileiro e depois transferida para Parcival Farquhar, em 1907, chegou a empresa norte-americana May and Randolph para finalizar a construção em abril de 1912, em Guajará-Mirim, com 364 quilômetros de extensão. Foram suspensos o trecho de 90 km entre Guajará-Riberalta, em solo boliviano, e a ponte sobre o Rio Mamoré, constantes do referido Tratado.

Mas nesse período os seringais estavam trabalhando intensamente e era necessário escoar o produto, e o caminho era o Rio Madeira, com suas cachoeiras. Villa Bella, na confluência dos rios Beni e Mamoré, origem do Madeira, no começo do século tinha 10 mil habitantes e três jornais. 

A maior renda alfandegária era lá, tanto que no primeiro ano deste século o chefe da alfândega era o vice-presidente da Bolívia, don Lucio Pereza Velazco, também no comando boliviano com referência ao problema acreano.

A Casa Suarez tinha sua própria frota de embarcações, mas a borracha era tanta que eles também terceirizavam. Um freteiro conhecido foi don Ascencio B. Dorado, que viajava de Villa Bella a Santo Antônio.

Nicolás Suarez ficou conhecido como “o rei da goma” (Foto Acervo Familiar)

Os batelões, assim chamadas as embarcações feitas de madeira itaúba eram de um porte médio para 1.500 ou 1.600 arrobas, representando aproximadamente 25 mil kg. A carga, no porto de Villa Bella, era feita pelos estivadores que, após pesá-las na alfândega, soltavam para que elas rolassem e caísse, na água, de onde eram embarcadas.

Levavam tudo na viagem. Além da borracha carregavam telas encauchadas e defumadas como tendas, garrafas de sal, caixas de velas, charque e farinha. Tinham 12 remadores, dois proeiros e o piloto no leme, além de quatro rifles Winchester 44 e farta munição.

A viagem levada de dez a 15 dias, pois era a favor da correnteza. Quando o nível do rio permitia só faziam transbordo em três cachoeiras: Jirau, Santo Antônio e Teotônio. Nas outras 16 menores, ou eram atravessadas diretamente, ou aliviavam a carga. A carga de descida, quase em sua totalidade borracha, não feria as costas dos homens quando tinha que ser carregada, mas a de subida, quase toda de caixas pesadas com reforços de ferro, era o terror dessa gente.

Tão eclética era a carga que até pianos de cauda foram transportados por essa via. Chegando a Santo Antônio eram entregues aos destinatários ou diretamente aos barcos no porto. A estada era a menor possível, pois sempre havia passageiros, quase todos estrangeiros, que carregavam caixas retangulares de madeira, com dobradiças de peltre e cheias de saquinhos com duzentas moedas de libras esterlinas em ouro. 

Eram os famosos “cunhetes de libra” com mil libras cada, pesando de outo, 14g. A subida, com a metade da carga, de descida demorava 60 a 90 dias, tendo até “expressos” que viajavam mais rápido, só com passageiros, embora sujeitos a ataques de índios.

Não existiam ladrões, pois a punição para o roubo era só uma: não tinham para onde fugir. No retorno, de 60 homens que partiam, pelo menos dez morriam e 20 ficavam doentes. As bagagens eram religiosamente entregues às viúvas, com o pagamento completo da viagem. Somente o corpo ficava para apodrecer nas barrancas do rio, em cova rasa.

Segundo relata o historiador boliviano Wilson Michel, o conhecido “Rei da Goma”, Nicolás Suárez Callaú, nasceu em Santa Cruz de La Sierra em 1851. Ele era o caçula de oito irmãos concebidos da união de Rafael Suárez Arana, descendente direto de Lorenzo Suárez de Figueroa, governador espanhol de Santa Cruz que chegou àquelas terras em 1580, e Petrona Callaú Vargas. 

O mais velho da linhagem, Pedro Suárez Callaú foi o primeiro a se mudar da região de Santa Cruz de Portachuelo para o noroeste do país em meados da década de 1850. Ele fundou a Casa Suárez na pequena cidade de Reyes, uma empresa criada para a exportação de cascas. Diante do sucesso do empreendimento em crescimento, seus irmãos mais novos o seguiram e se estabeleceram no departamento de Beni, criado nos antigos territórios dos Gran Moxos, terra de mitos e lendas como a dos Gran Paitití; com a participação deles, a Casa Suárez diversificou seus negócios e começou a exportar borracha.

Para alívio dos patrões, com a chegada à movimentada Vila Murtinho, Km 319 da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, essa epopeia foi abandonada, mas os preços do frete cobrados eram tão altos que, após a 1ª Guerra Mundial e o declínio do valor da borracha, algumas pessoas se arriscavam na descida do rio, levando seu produto. Mas voltavam de trem.

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