Desmatamento potencializa oscilações extremas do rio Acre
Desde o início da ocupação de suas margens pela atividade agropecuária – intensificada a partir da década de 1970 – o rio Acre já perdeu 40% de toda a extensão da mata ciliar. Sem a sua floresta de borda, o manancial ficou mais suscetível aos eventos climáticos extremos, o que ocasiona grandes alagações e vazantes críticas.
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
O ano de 2024 pode ser considerado um dos mais críticos nos comportamentos extremos do rio Acre. De uma grande alagação em fevereiro ao nível mais baixo da história em setembro, o manancial é severamente influenciado pelos fenômenos climáticos extremos que afetam, com mais intensidade e frequência, a região amazônica. E estes fenômenos são potencializados pelos processos de degradação das margens do rio, ocasionada pela atividade agropecuária e o crescimento desordenado das cidades ao longo das últimas quatro décadas.
A Bacia do Rio Acre está na região leste do estado, que concentra 70% da área de Floresta Amazônica desmatada em território acreano. Dos 11.670 hectares de mata ciliar do manancial localizada dentro do Acre, 40% (ou 4,5 mil hectares) foram completamente devastados.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em seu núcleo da Universidade Federal do Acre (Ufac), Epitaciolândia é o município com a maior área de mata ciliar devastada: 58%. Em seguida aparecem Rio Branco (43%), Capixaba (35%), Xapuri (33%) e Porto Acre (32%). Do Alto ao Baixo Acre, a perda de floresta no entorno do rio é significativa – o que potencializa a ocorrência de oscilações extremas durante os períodos do inverno e do verão.
Quando se analisa o desmatamento para além da mata ciliar, a situação também é crítica. É o que aponta levantamento exclusivo feito pela equipe de dados da Agência Infoamazônia, a pedido do Varadouro. A análise foi feita a partir da base de dados do Programa de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Entre 2008 e 2023, o rio Acre perdeu 141.20 km² de vegetação nativa no limite de até um quilômetro ao redor de sua margem. Após 2018, houve uma intensificação do desmatamento, reunindo 50% de toda a área desmatada (71,02 km²) nesses 15 anos. Não por acaso, o período foi marcado pelo desmonte das políticas de proteção ambiental implementado pelo governador Gladson Cameli (PP) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o que levou toda a Amazônia a níveis recordes de desmatamento.
A maior taxa de área desmatada às margens do manancial ocorreu em 2021, quando foram derrubados 17,4 km² ao redor do rio. Em Capixaba foi onde o rio Acre registrou o maior índice de desmatamento: 40,57 km², 28% do total no período analisado.
Ao perder quase metade de sua vegetação nativa, conforme pesquisa do Inpa, o rio Acre ficou mais vulnerável aos eventos climáticos extremos, provocando grandes inundações que invadem cidades e comunidades ribeirinhas na época do inverno, e volumes críticos de vazante que comprometem a segurança hídrica de metade da população acreana.
Um rio em plena formação
Ao todo, das suas cabeceiras no Peru até a foz em Boca do Acre, no Amazonas, onde deságua no Purus, o rio Acre tem 960 quilômetros de extensão. Em sua parte alta, é responsável por definir a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia. Nos períodos mais secos do ano é possível fazer uma travessia internacional andando, tão baixo chega seu volume.
Em 2024, como exemplo, ele ficou na casa dos 50 cm em Brasiléia, isso após alcançar a maior alagação da história do município, com 15,58m. E é exatamente na região de fronteira (Alto Acre) onde o rio Acre mais perdeu sua mata ciliar. Em Rio Branco a situação foi a mesma, com a segunda maior cheia (17,89m) e o menor nível de vazante em cinco décadas de medições (1,23m).
Os estudos do Inpa apontam que, num cenário mais pessimista, o manancial pode “apartar” por completo na região da capital em 2032. A hipótese mais otimista indica o colapso total daqui 44 anos.
“Aqui no Acre os nossos rios são definidos como rios meândricos. Em outras palavras, significa dizer que a base deles não é de rocha, mas de sedimentos. Este local que a gente vive foi aterrado milhões de anos atrás com a formação das Cordilheiras dos Andes”, afirma o agrônomo e pesquisador Evandro Ferreira, coordenador do Inpa/Ufac.
“Então, os rios meândricos, com a força da água, vão cavando leitos. São rios que estão sempre mudando de curso.” Ferreira dedica parte de sua carreira para estudar o rio Acre e os impactos ocasionados pela ocupação predatória e exploratória de suas margens.
Por ser meândrico, o manancial tem como uma de suas características a formação de lagos, que na verdade faziam parte de seu curso milhares de anos atrás. O Lago do Amapá, na capital, é um destes exemplos. No Acre, a maioria dos mananciais possuem esta característica, como o Juruá e o Purus.
Os rios meândricos também se configuram por possuir uma margem mais baixa (planícies alagadiças) e outra de terra firme, ou alta. As terras altas são as mais impactadas por processos erosivos ocasionados pelo movimento e a força das águas. Já as partes baixas estão mais suscetíveis aos alagamentos.
Dentro do perímetro urbano da capital, essa diferenciação está bem clara. Bairros como Taquari, Cidade Nova, 6 de Agosto e os da Baixada da Sobral são os primeiros a ser atingidos pelas alagações nos meses do inverno. Já o Bairro do 15, Papoco e Dom Giocondo são impactados pela erosão. Nestes dois últimos, algumas ruas já foram engolidas pelos desbarrancamentos. O fenômeno também é conhecido como Terra Caída, comum nos dias pós-enchentes, quando as águas baixam.
“Num rio meândrico, um lado sempre vai erodir e outro sempre vai alagar. A mata ciliar tem a função de manter a estrutura do terreno. Ela é responsável por conter os processos erosivos. Quando não se tem a floresta, eles ocorrem com mais facilidade”, explica Ferreira.
Saiba mais: A MORTE DO RIO ACRE
O efeito do desmatamento da mata ciliar
O conceito de bacia acontece por, naturalmente, toda a água das chuvas escorrerem para o leito do rio. Quando não se tem a floresta, a água da chuva vai direto para o solo. Quando se tem um pasto e uma temperatura muito alta, essa água vira vapor. Num cenário perfeito, a chuva cairia sobre as copas das árvores, desceria até o solo e depois seguiria até o leito do manancial. Uma outra parte seria reciclada pela vegetação.
Outro efeito da destruição da mata ciliar é que mais sedimentos são transportados para o interior do rio, ocasionando o chamado assoreamento. Quanto mais sedimentos, mais assoreado ele fica e menos profundo fica o seu leito.
“Quando se tem uma área sem floresta, mais assoreado o rio ficará, pois mais sedimentos são levados pela força das águas. Um rio assoreado implica num leito mais raso, com pouca profundidade. Por isso que o rio Acre, aqui na região de Rio Branco, quando se tem uma chuva mais acentuada, você tem um risco maior de alagamento por já termos perdido grande parte de nossa mata ciliar”, sintetiza o cientista do Inpa.
“Não que esteja chovendo mais do que antes para ter tanto alagamento, mas o fato é que o rio já não tem a capacidade de escoar a água que ele escoava antes, porque era mais fundo.” Com as mudanças climáticas, chuvas mais intensas passaram a acontecer num intervalo de tempo mais curto. Essa alta concentração pluviométrica num curto intervalo de tempo provoca o transbordamento dos rios e igarapés.
“A Bacia do Rio Acre tem a sua dinâmica em função da quantidade de chuvas que cai aqui. O desmatamento tem este efeito de alterar o regime de chuvas. Quanto mais desmatamento, menor o período de chuvas e também de você ter menos água disponível para o próprio rio.”
Ou seja, tão logo acabe o inverno, os efeitos vão vir nos meses do verão, quando o manancial alcança níveis críticos de vazante. Seja numa estação ou na outra, a destruição da mata ciliar provoca graves impactos para o rio – e para as populações que estão às suas margens.
“O desmatamento da mata ciliar faz com que tenhamos o assoreamento do rio, altera o ciclo natural hidrológico da água, a capacidade de água reciclada dentro da bacia é menor, o que amplifica os impactos de uma seca, por exemplo”, diz Evandro Ferreira.
Ele completa: “Com a floresta, a mata ciliar, evita-se a transpiração desta água pelo calor, o que assegura um bom volume mesmo nos meses de estiagem, o que não acontece hoje. Sem a mata ciliar, menos água vai chegar ao leito do rio.”
Água para o boi – torneira vazia
Não bastassem todos estes problemas, o rio Acre sofre com outro agravante: o “roubo” de água pelas fazendas de gado localizadas às suas margens. Algumas destas propriedades fazem desvios (canais) do curso de pequenos manaciais para abastecer os açudes dos bois. A construção de barragens em igarapés dentro destas fazendas impede que o rio receba a água de seus afluentes menores.
“Se você pensar na quantidade de água que eles estão armazenando sem dar satisfação a ninguém, pagar um tostão para a sociedade, é um absurdo. Teoricamente toda essa água era para estar sendo devolvida para o rio Acre”, comenta o pesquisador do Inpa. Uma água que vai fazer falta na torneira dos acreanos, sobretudo durante o verão.
Este é o período mais crítico para o serviços de captação e distribuição de água na capital e no interior. Com o volume crítico de vazante, as bombas são colocadas em flutuantes para se achar o ponto mais profundo. A elevada concentração de sedimentos (barro) exige maiores cuidados na operação do maquinário e mais uso de produtos químicos para o tratamento da água.
“O desmatamento tem este efeito de alterar o regime de chuvas. Quanto mais desmatamento, menor o período de chuvas e também de você ter menos água disponível para o próprio rio.” Evandro Ferreira- Cientista Inpa/Ufac
O roubo de água pelas fazendas de gado não é nenhuma novidade. Várias denúncias já foram feitas, mas os problemas persistem. Uma grave situação “comum” nas propriedades do Alto ao Baixo Acre.
E desta forma, mesmo com tantas agressões, o principal e único manancial responsável por assegurar a segurança hídrica de metade da população acreana vai resistindo. Não se sabe até quando. Os estudos do Inpa apontam que, num cenário mais pessimista, o manancial pode “apartar” por completo na região da capital em 2032. A hipótese mais otimista aponta o colapso total daqui 44 anos.
Talvez o tempo necessário para colher os frutos de políticas de Estado eficazes que atuem no sentido de recuperar as suas matas ciliares, acabar com o roubo de água e tratar todo o esgoto hoje despejado in-natura pelas cidades no leito do rio. Só assim teremos a chance de assegurar o futuro e a sobrevivência do velho rio Acre – bem como a nossa.
O que diz o governo
Procurada por Varadouro, a assessoria de comunicação do governo do Acre informou que só poderia responder às questões apresentadas ao longo desta semana.
Este conteúdo faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia, realizado em parceria com Varadouro, e produzido com apoio da Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia.