Lembro de uma sensação que tinha, quando criança, de achar que Caetano Veloso e Gilberto Gil eram da minha família. Sim, não há nenhum sentido lógico, eu sei, mas não é essa a magia do universo infantil? Não sei se porque meu pai se referia a Caetano como “Catito” ou se porque o jeito de Gil cantar me trazia uma profunda conexão comigo mesma, sei lá, não sei, só sei que crescer em uma casa movida por música popular brasileira certamente foi uma das maiores loterias que a vida me proporcionou, e essa sensação de familiaridade com Caetano e Gil só espraiou completamente quando minha versão adolescente iniciou a dissociação de minha família – faz parte, né?
Na universidade, iniciei minha intimidade com Maria Bethânia e Gal Costa. Como oráculos, elas me alinhavam de sentido os amargores e os mais doces bárbaros do início da vida adulta. Com elas eu realmente partilhava uma família, a das mulheres, especialmente a das vacas bem profanas, mas que permanecem sempre muito maricotinhas.
Não demorou muito para os filhos de dona Canô alugarem uma Bahia na minha cabeça. Um dos melhores compositores e a maior intérprete do Brasil dividiram o mesmo útero e a mesma infância, e cantaram esse país de uma forma muito própria, que fala muito ao meu espírito. Uma vez, ouvi a professora Kalu Chaves dizer, em sua aula de Arte e Cultura Brasileira, que, para entender de música brasileira, tem que escutar Doces Bárbaros. Acho que também é um meio de conhecer um pouco o Brasil pelas ondas do ar.
A turnê que os irmãos têm realizado movimenta o país: emociona, embala, consola, inquieta (especialmente com a música de Iza), costura nostalgias, simboliza a ancestralidade, conversa com o sagrado, sinaliza o político e polemiza, claro, ou não seria Caetano. A interpretação que “Catito” tem feito nos shows da turnê da música “Deus cuida de mim”, do pastor evangélico Kleber Lucas, tem dado o que falar. Minha patota faz cara feia e fica sem entender, diz que não combina, não ornou. A primeira coisa que penso é que Caetano nunca foi dado a fazer o que esperam dele e, claro, muitos de seus posicionamentos e posturas são bastantes questionáveis – para dizer o mínimo.
Fotografias de Cibele Alexandre
Na volta pra casa do show que assisti em Fortaleza (minha terra natal), minha mãe nos lê uma matéria que diz que dois de seus filhos começaram a frequentar uma igreja quando crianças, e um deles ainda permanece e se reconhece como evangélico. Esta aqui não é uma coluna de fofoca, portanto, não tecerei muitos comentários sobre, mas fico me perguntando se esses meninos também sentiram uma necessidade, à sua maneira, de se dissociar de um lar que, para dizer o mínimo, não era nada convencional.
Não importa. Meu ponto é: o texto que minha mãe lê diz que Caetano celebra o crescimento do protestantismo no Brasil. Não entendi bem assim. Minha memória, por vezes, me trai, mas o que lembro de Caetano narrar é que era uma canção que marca a importância que ele dá a esse fenômeno, o que, pra mim, não necessariamente significa celebrar. Sinceramente, o menos importante é especular qual a real intenção de Caetano – tentando, ainda, chegar no ponto em que quero – acho esse movimento do cantor relevante de várias formas.
Mas se os retrocessos sociais que seu governo [Bolsonaro] causou e se os milhares de brasileiros mortos por covid-19, entre 2020 e 2021, não são suficientes para convencer a boa parte da população que esse espectro político tem compromisso com o empobrecimento e com a morte criminosa de nossa gente, quais as reais contribuições que uma pena pode trazer?
Por mais que saibamos como muitas igrejas funcionam como verdadeiras empresas movidas pelo lucro e de como instrumentalizam ritos sagrados para fazer avançar agendas políticas reacionárias e neoliberais, há algo de muito concreto nisso tudo: a fé e a entrega de vida que milhares de pessoas têm realizado diariamente a esses templos.
E podemos ficar em negação a esse fenômeno, é a primeira reação ao luto, afinal. Mas Caetano é um homem que faz análise desde a década de 1970 e, mais do que uma questão familiar, há algo de político que move a inclusão dessa música no repertório do show, tenha sido sua intenção ou não. Inclusive pela importância política que o pastor Kleber Lucas tem em meio a esse fenômeno, nadando contra a corrente das pessoas que se amontoam em quartéis clamando por militares e extraterrestres para “resolver” uma questão de Estado.
Por meio da música, Caetano nos leva a um universo estranho a boa parte de nós. O sentido que atribuo à letra dessa música, que escutei apenas uma única vez, é de um bote salva-vidas em um mar revolto. Penso que apreender essa sensação tem a potência poética de olhar esse fenômeno de frente, para, talvez, conseguir olhar para os seus lados, para cima e por debaixo dele. Olhar seu todo! Sair de uma das maiores capitais do país para morar no interior do Acre certamente me impõe isso, afinal, o IBGE o aponta como o estado com mais igrejas a cada cem mil habitantes no país.
É muito fácil viver em uma bolha esquerda-festiva-progressista-cult-bacaninha-militante-afrontosa-feminista-apocalíptica em Fortaleza. Em Cruzeiro do Sul não é. E, sinceramente, o ganho é muito maior do que a perda. Conseguir estabelecer mais e maiores conexões com pessoas diversas nunca será algo supérfluo, especialmente pelo horizonte que desponta à nossa frente. Não serão tempos fáceis e não adianta permanecer em negação, é preciso entender o fenômeno que nos abocanha enquanto a máquina de moer gente se aperfeiçoa. O que fazer?
Nossa pauta central tem sido “sem anistia”, o que considero muito pouco e bastante preocupante. Afinal, quando Donald Trump sofre uma condenação criminal, as apostas financeiras em sua campanha aumentam e, ainda que a legislação brasileira, diferentemente da norte-americana, impeça Jair Bolsonaro de concorrer ao pleito – me perdoem pelas próximas palavras –, este senhor também é mais que um homem, assim como Luís Inácio Lula da Silva, ele também é uma ideia, uma ideia que nos leva aos últimos acontecimentos na Praça dos Três Poderes.
Um fato que me embrulha o estômago, assim como a repercussão com tom humorístico que o envolve. Não consigo extrair nada que me provoque um riso, e é quando mais me pego pensando sobre o poder da conexão e da desconexão entre as pessoas. É uma sensação parecida com a que saio do cinema após assistir ao impecável “Ainda estou aqui”, algo assim como um sapo entalado na garganta, que se desce é pior, mas se sobe também não é nenhum bombom. É a sensação do passado que não passa e de que o que o separa de um futuro próximo é matéria que “se desmancha no ar”.
A crença de que a punição contra o ex-presidente é a saída dos nossos problemas é negação da natureza e dimensão desses problemas. Bolsonaro ser processado, julgado e punido se trata de mero cumprimento da lei e deve ser feito.
Mas se os retrocessos sociais que seu governo causou e se os milhares de brasileiros mortos por covid-19, entre 2020 e 2021, não são suficientes para convencer a boa parte da população que esse espectro político tem compromisso com o empobrecimento e com a morte criminosa de nossa gente, quais as reais contribuições que uma pena pode trazer? Aliás, como sinalizei acima, também precisamos nos preocupar com os efeitos rebotes dessa pena. Aí sim estaremos encarando nossos problemas de frente.
Bom, análises políticas não são bem os varadouros que costumo transitar. Joguei esses pensamentos num balaio e oferto às almas que por ventura me lerem. Se você chegou até aqui, bem brasileiramente, peço desculpas qualquer coisa e agradeço com uma das minhas músicas favoritas do repertório da turnê. Sigamos atentas, fortes e adoçando nossos dias com o melhor da musicalidade brasileira.
Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos. Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.
leonisia.mouraf@gmail.com