Pão e Rapadura

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O Ceará e o Acre vivem imbricados como escamas de peixe. Talvez possamos até dizer que o nordeste e a Amazônia são imbricados. Em julho de 2007, passei minhas férias em Natal, no Rio Grande do Norte, e tive a oportunidade de visitar o vale do Ceará Mirim com seus famosos engenhos de cana-de-açúcar do passado.

Vi paisagens e ouvi histórias que lembram nossos antigos seringais. Pensei logo: por que não trabalhamos, politicamente, essa enorme identidade entre Norte e Nordeste? Algum reboliço social, político, econômico e cultural faríamos Brasil afora. Pelo sim, pelo não, passei a vasculhar livros na internet, quem sabe encontraria alguma coisa rara!

Pois encontrei, e repasso este relato autobiográfico de Patativa do Assaré, considerado “cearense do século” nos anos noventa do século passado:

José Carvalho integrou esse grupo da Padaria Espiritual do Ceará, irreverente, nacionalista e de esquerda



“Quando eu estava nos 20 anos de idade, o nosso parente José Alexandre Montoril, que mora no estado do Pará, veio visitar o Assaré, que é seu torrão natal, e ouvindo falar de meus versos, veio à nossa casa e pediu à minha mãe para que ela deixasse eu ir com ele ao Pará, prometendo custear todas as despesas. Minha mãe, embora muito chorosa, contou ao seu primo, o qual fez o que prometeu, tratando-­me como se trata um próprio filho.

Chegando ao Pará, aquele parente apresentou­-me a José Carvalho, filho de Crato, que era tabelião do 1º Cartório de Belém. Naquele tempo, José Carvalho estava trabalhando na publicação de seu livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”, o qual tem um capítulo referente a minha pessoa e o motivo da viagem ao Pará. Passei naquele estado apenas cinco meses, durante os quais não fiz outra coisa, senão cantar ao som da viola com os cantadores que lá encontrei.

De volta do Ceará, José Carvalho deu­-me uma carta de recomendação para ser entregue à Dra. Henriqueta Galeno, que, recebendo a carta, acolheu-­me com muita atenção em seu Salão, onde cantei os motes que me deram. Quando cheguei na Serra de Santana, continuei na mesma vida de pobre agricultor; depois casei­-me com uma parenta e sou hoje pai de uma numerosa família, para quem trabalho na pequena parte de terra que herdei de meu pai. Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua fora do programa da verdadeira democracia.

Nasci a 5 de março de 1909. Perdi a vista direita, no período da dentição, em consequência da moléstia vulgarmente conhecida por dor d’olhos. Desde que comecei a trabalhar na agricultura, até hoje, nunca passei um ano sem botar a minha roçazinha, só não plantei roça, no ano em que fui ao Pará.

“Antônio Gonçalves da Silva, Patativa do Assaré”.


Padaria Espiritual

Pôxa! Fiquei perplexo com a revelação! Então o nosso José Carvalho, comandante da primeira insurreição acreana, além de primo da escritora Raquel de Queiroz também influiu na carreira literária do Patativa de Assaré?

E lá fui eu, quase convulsivo, navegando na blogosfera até esbarrar na Padaria Espiritual do Ceará. Aí é preciso paciência e tempo, porque tudo quanto é blog e site do Nordeste fala desse movimento literário revolucionário, do qual José Carvalho (ele de novo) foi um dos sócios fundadores. E vale a pena se inteirar do assunto: Fundada em 30 de maio de 1892, a Padaria recebeu esse nome porque seus membros tinham a pretensão de fornecer aos sócios e a sociedade em geral, o pão cultural, como uma forma de reeducação e apelo à sociedade alienada da época.

Entre os principais sócios fundadores estavam Antonio Sales, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno, Adolfo Caminha, Lopes Filho, Eduardo Sabóia, Lívio Barreto, Antônio Castro, José Carvalho, Álvaro Martins e Henrique Jorge.

A Padaria Espiritual diferenciava-­se das associações criadas pelas elites cearenses da época porque juntava intelectuais, boêmios e cidadãos comuns e assumia um caráter marcado pelo humor, ironia e irreverência. Seus membros autodenominaram­-se padeiros e o produto do seu trabalho era um periódico que circulava aos domingos e chamava-­se ”O Pão.Através da Padaria Espiritual” a gente pode acrescentar informações ao perfil de José Carvalho, que já sabíamos ser jornalista, escritor e advogado.

Agora sabemos com precisão que nasceu em Crato, no Ceará, no ano de 1872 e faleceu no Rio de Janeiro em 1933. Quando a Padaria encerrou sua primeira fase de vida, em 1894, ele estava vindo para a Amazônia. Ao comandar a insurreição em Puerto Alonso, em 1º. de maio de 1898, expulsando o cônsul boliviano Moyses
Snativãnez da região, tinha 26 anos de idade.

Conforme o poeta, músico e trovador Patativa do Assaré relata em seu livro “Digo e não peço segredo”, editado em 2001 em São Paulo, foi José Carvalho quem lhe deu o apelido. De fato, Patativa está num capítulo do livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará” de autoria do revolucionário cearense­-acreano.

CORREIO



Patativa do Assaré

(Foto: Dário Gabriel em 2/2/1997/O Povo)


Segundo filho de uma família pobre que vivia da agricultura de subsistência, cedo ficou cego de um olho por causa de uma doença. Com a morte de seu pai, quando tinha oito anos de idade, passa a ajudar sua família no cultivo das terras. Aos doze anos, frequenta a escola local, em que é alfabetizado, por apenas alguns meses. A partir dessa época, começa a fazer repentes e a se apresentar em festas e ocasiões importantes. Por volta dos vinte anos recebe o pseudônimo de Patativa, por ser sua poesia comparável à beleza do canto dessa ave.

Patativa do Assaré obteve popularidade a nível nacional, possuindo diversas premiações, títulos e homenagens (tendo sido nomeado por cinco vezes Doutor Honoris Causa). No entanto, afirmava nunca ter buscado a fama, bem como nunca ter tido a intenção de fazer profissão de seus versos. Ele nunca deixou de ser agricultor e de morar na mesma região onde se criou (Cariri) no interior do Ceará. Seu trabalho se distingue pela marcante característica da oralidade. Seus poemas eram feitos e guardados na memória, para depois serem recitados.

Daí o impressionante poder de memória de Patativa, capaz de recitar qualquer um de seus poemas, mesmo após os noventa anos de idade. (Google)


Infância

No verdõ de minha idade
Mode acalentá meu choro
Minha vovó de bondade
Falava em grandes tesôro”.
Arte matuta
Eu aprendi com a natureza que é caprichosa.
É como eu digo nos meus versinhos:
Eu nasci ouvindo os cantos
das aves de minha serra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todos os sinais
com esses estudos meus
aprendi amar a Deus
na vida dos animais.
Quando canta o sabiá
Sem nunca ter tido estudo
eu vejo que Deus está
por dentro daquilo tudo
aquele pássaro amado
no seu gorgeio sagrado
nunca uma nota falhou
na sua canção amena
só canta o que Deus ordena
só diz o que Deus mandou.




Despedida


Conheço que estou no fim
e sei que a terra me come
mas fica vivo o meu nome
para os que gostam de mim



Patativa morreu em 8 de julho de 2002 na cidade de Assaré, onde nasceu.


(Poesias e foto reproduzidas do livro “Digo e não peço segredo” organizado e prefaciado por Tadeu Feitosa. Editora Escrituras, São Paulo 2001)

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