No período de um ano, já ocupando o Palácio Rio Branco, depósitos em dinheiro vivo numa das contas de Cameli superaram o total repassado pela empresa de seu pai, onde ele tem sociedade e alega vir a maior parte de seus rendimentos; Muitos dos valores eram depositados em quantias baixas numa tentativa de não chamar a atenção das autoridades
Fabio Pontes e Leonildo Rosas
dos varadouros de Rio Branco
Nomeado gerente administrativo no Departamento Estadual de Trânsito (Detran), o motorista Jefferson Luiz Pereira de Oliveira trabalhou com o atual governador do Acre, Gladson Cameli (PP), no Senado. É, portanto, homem de confiança do governador do Acre. No dia 26 de outubro, Oliveira foi à agência do Bradesco, em Rio Branco, e depositou R$ 58,1 mil, em espécie, na conta de Cameli. Outro personagem pouco comentado nas rodas políticas é Eduardo Braga da Rocha. Conhecido como Dudu, ele não tem nomeação oficial no governo, mas goza de poder e prestígio. Dudu, que foi casado com uma cunhada do governador, foi à agência do Bradesco, no dia 26 de maio deste ano, depositar, em dinheiro, R$ 52 mil na conta de Gladson Cameli. Esse dinheiro teria sido enviado pelo pai de Gladson Cameli, o empresário Eládio Cameli.
Todos são fatos estranhos, pois, em que pese as inúmeras tecnologias oferecidas pelos bancos, que permitem fazer operações financeiras práticas e seguras a partir do aparelho celular, o governador do Acre ainda prefere trabalhar do modo antigo, operando com dinheiro em espécie. Nos últimos dois anos, quase um milhão de reais em dinheiro vivo entrou em duas contas-correntes titularizadas pelo político progressista. Ao menos é isso o que atestam Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) elaborados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Enviados para a superintendência da Polícia Federal no Acre por conta do excessivo número de depósitos em espécie, os RIFs apontam que o próprio governador Gladson Cameli foi a uma agência do Banco do Brasil, em Rio Branco, depositar R$ 93 mil em sua conta. Funcionários e um irmão de Cameli também são identificados como depositantes e operadores de toda essa dinheirama. Além disso, os depósitos eram feitos sem a comprovação da origem dos recursos, o que levou os bancos a emitir comunicados ao Coaf sobre “movimentações atípicas” nas contas de Cameli.
Estas são informações levantadas junto ao inquérito da operação Ptolomeu, da Polícia Federal do Acre, remetido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e que investiga a suposta atuação de uma organização criminosa (Orcrim) dentro do Palácio Rio Branco. O governador acreano é um dos alvos principais da investigação, e definido pelos investigadores como o “chefe de organização criminosa”.
Desde a última segunda-feira, 27, o blog do Fabio Pontes e o Portal do Rosas publicam uma série de reportagens sobre o inquérito policial, cujas informações são de relevante interesse da sociedade acreana por levantar suspeitas sobre o governador do Estado.
Em junho deste ano, a superintendência da Polícia Federal no Acre recebeu Relatório de Inteligência Financeira contendo 35 comunicações emitidas pelos bancos e outras instituições do sistema financeiro do país apontando movimentações suspeitas que chegam ao valor de R$ 1,6 bilhão. Os comunicados compreendem o período de maio de 2013 a abril de 2020 com informações sobre contas de 150 pessoas físicas e empresas.
Após realizar um pente-fino, os investigadores detectaram que 20, dos 35 comunicados contidos no RIF do Coaf, diziam respeito, direta ou indiretamente, à pessoa do governador acreano. Juntas, essas operações chegam ao exorbitante valor de R$ 828 milhões entre maio de 2015 a abril de 2020.
Conforme o inquérito da operação Ptolomeu, dos 20 comunicados com algum tipo de relação com Gladson Cameli, 16 foram no período em que ele já ocupava a cadeira de governador. Vale destacar que nem todo este montante é considerado de origem ilegal, mas está sob investigação das autoridades por conta do excessivo volume de recursos ser incompatívei com a renda declarada dos investigados.
A PF avaliou os RIFs elaborados pelo Coaf que dizem respeito a transações suspeitas em duas contas pessoais de Gladson Cameli: uma do Bradesco, sediada em Rio Branco, e outra do Banco do Brasil em Brasília. Nesta última, conforme informações do inquérito, os investigadores identificaram movimentações atípicas, no período de um ano (entre outubro de 2018 a outubro de 2019), no valor de R$ 3,1 milhões.
Além de Cameli, a conta é operada por outras três pessoas próximas ao governador que atuam como seus procuradores: a chefe de gabinete, Rosângela de Gama Pequeno (presa no dia 22 por obstrução de Justiça), o tio e secretário afastado da Indústria e Tecnologia, Anderson Abreu, e Rafael Batista Vieira, que também foi afastado e era funcionário do gabinete de Cameli no Senado, sendo herdado pela suplente Mailza Gomes (PP). O trio é investigado pela polícia e foi alvo dos mandados de busca e apreensão da Operação Ptolomeu.
Preventivamente, a ministra do STJ Nancy Andrighi determinou que as procurações fossem canceladas, até que as investigações sejam concluídas.
Conforme os relatórios do Coaf, a conta de Cameli recebeu depósitos – em espécie – que, juntos, somam R$ 206 mil entre julho e dezembro de 2019, seu primeiro ano como governador. Um destes depósitos “na boca do caixa” foi feito pelo próprio político, no valor de R$ 93.400 mil, em 18 de julho de 2019 em sua agência do Banco do Brasil na capital.
Outro, no valor de R$ 52.650, foi realizado por Gledson de Lima Cameli, irmão do governador, em dezembro na mesma agência. Outro depósito – de R$ 60.250 – foi feito por Sebastião Rocha, “homem de confiança” do governador em Brasília – na conta do Bradesco. Por conta dos elevados valores, os três depósitos foram comunicados de forma automática ao Coaf, conforme estabelece uma circular do Banco Central.
Os sucessivos depósitos em espécie feitos nas duas contas pessoais de Gladson Cameli ao longo dos últimos anos chamaram a atenção das autoridades. De acordo com a PF, R$ 921 mil foram creditados em dinheiro vivo nas contas do governador entre agosto de 2018 a fevereiro de 2020.
Foram constatados diversos depósitos em espécie na conta do governador do Estado do Acre, em um curto intervalo de dias úteis, e em pequenos montantes exatos de R$ 5 mil R$ 2,5 mil, com possível tentativa de burla para evitar a identificação do depositante, o que é característico da prática de lavagem de capitais conhecida como “smurfing”:
“Por mais que o somatório seja alto, verificou-se que as operações são fracionadas em diversos depósitos de baixos valores – o que sugere possível tentativa de ocultar as transações dos órgãos de controle”, afirma o inquérito.
Manaus, Cruzeiro do Sul, Rio Branco
Mereceu destaque por parte dos investigadores o fato de que os depósitos ocorreram em agências de ao menos quatro cidades: Manaus, Cruzeiro do Sul, Rio Branco e Brasília. “Verificou-se que as operações são fracionadas, em diversos depósitos de baixos valores – o que sugere possível tentativa de ocultar as transações dos órgãos de controle”, diz trecho do inquérito.
A maioria destes depósitos ocorria sem a devida comprovação da origem dos recursos, o que levou as autoridades financeiras a colocarem ainda sob suspeição mais as transações.
Uma das justificativas usadas é de que o dinheiro tem como origem a participação do governador acreano nos rendimentos da Marmud Cameli & Cia Ltda, empresa de seu pai sediada em Manaus e da qual ele é sócio. Todavia, esses possíveis lucros não eram comprovados aos funcionários dos bancos.
“O cliente (…) alega que os recursos são provenientes de suas empresas, participação de lucros, inclusive os valores em espécie, contudo, os valores em espécie são expressivos e essas informações não foram comprovadas via documentos, não sendo assim comprovado as suas origens, ocasionando onerosa verificação”, diz parte do comunicado enviado pelo Bradesco ao Coaf, e destacado pela PF em seu inquérito enviado ao STJ.
As contas no Bradesco foram as que apresentaram a maior circulação de recursos e de “movimentações suspeitas”, levando o banco a emitir dois comunicados ao Coaf num curto espaço de tempo. Num deles, que compreende o período de maio de 2019 a fevereiro de 2020, o montante movimentado foi de R$ 1,3 milhão. Como apontam os relatórios, o valor supera e muito a renda declarada pelo cliente.
Deste total, apenas R$ 209 mil são referentes a transferências da Marmud Cameli & Cia Ltda. A quantidade de dinheiro que entrou por meio de depósitos em espécie (alguns deles não identificados) supera o enviado pela empresa do pai de Gladson: R$ 306 mil. Na comunicação anterior (de agosto de 2018 a maio de 2019), outros R$ 101 mil em dinheiro vivo foram creditados na conta de Gladson Cameli.
Vale destacar que o período em que a conta de Gladson Cameli no Bradesco mais recebe depósitos em espécie corresponde ao de mandato de governador do Acre. Conforme consulta junto ao Portal da Transparência, o salário bruto do chefe do Executivo é de R$ 35.402,22. Considerando os descontos obrigatórios em folha – como Imposto de Renda – Cameli recebe livres R$ 26.034,29. Em um ano de salário de governador, ele teria uma renda de R$ R$ 312.411,48.
Portanto, a quantidade de depósitos em espécie em menos de um ano na cadeia de governador corresponde a 95% do salário oficial, revelando a completa incompatibilidade das transações em suas contas correntes com a renda declarada. Para os investigadores, os valores movimentados na conta são incompatíveis com a renda do governador.
Na análise da PF, a justificativa de que os valores recebidos são parte dos rendimentos societários não se sustenta por a Marmud Cameli & Cia Ltda – da qual ele é sócio – fazer os repasses de seus lucros via transferência bancária, conforme atestam os RIFs do Coaf, além de ele não comprovar que o dinheiro vivo depositado é oriundo da participação em lucros.
O que mais saltou aos olhos foi o elevado gasto de Gladson Cameli com operações de cartão crédito, apenas na conta do BB: R$ 825 mil. “Uma aritmética simples permite concluir que a média mensal de gastos com cartão de crédito gire em torno de R$ 68.000,00, o que, por si só, excederia a renda declarada do titular”, diz a polícia.
Recentemente, em entrevista, Gladson Cameli declarou que o dinheiro extra que entrou em sua conta é repassado pela Marmud Cameli, e serve para pagar suas despesas com a fatura do cartão. Ao se ler o inquérito feito com base em relatórios do Coaf, percebe-se que tal afirmação não se sustenta, pois parte destas contas – que superam os R$ 50 mil por mês – eram pagas com dinheiro em espécie na “boca do caixa”.
Crédito ou débito?
A vida financeira pessoal do governador não parou de gerar relatórios de inteligência do Coaf por conta das constantes “movimentações atípicas”. Além dos volumosos depósitos com dinheiro vivo, as faturas dos cartões de crédito e a forma como eram pagas despertavam a atenção dos policiais. Num dos comunicados emitidos pelo Bradesco, há a informação de que “um funcionário” do governador acreano tentou pagar, com um bolo de dinheiro, a fatura de R$ 50.139 de Cameli.
Por conta de resolução do Banco Central que impede o pagamento de boletos acima de R$ 10 mil em espécie, o caixa do Bradesco fracionou o valor da fatura. Em outro comunicado, o Banco de Brasília (BRB) informou ao Coaf que um policial militar depositou, na própria conta, a quantia de R$ 81 mil para pagar duas faturas de cartão de crédito: uma de R$ 45,5 mil e a outra de R$ 35,5 mil. O titular dos cartões? Gladson de Lima Cameli.
Ainda conforme o comunicado do banco, o PM informou ter outros R$ 80 mil em espécie com ele, mas que os não depositaria para não chamar a atenção da Receita Federal, e que devolveria a grana ao seu irmão. O policial é irmão de Sebastião da Silva Rocha, que por muitos anos trabalhou como motorista do governador em Brasília durante seus mandatos na Câmara e no Senado.
Ao assumir o governo, Gladson o nomeou para cargo de confiança no escritório de representação do Acre na capital federal. Sebastião é um dos investigados pela PF e foi alvo de mandados na operação Ptolomeu. Sebastião Rocha é apontado no inquérito como um dos “homens de confiança do governador, para o qual funções altamente sensíveis podem ser delegadas”. Como mostramos mais acima. Sebastião também apareceu no relatório como depositante de R$ 60 mil na conta do governador no Bradesco.
Por ter sob sua responsabilidade uma quantia de R$ 160 mil em espécie que seriam para pagar dívidas de Gladson Cameli, a PF aponta Sebastião Rocha como um dos operadores financeiros do governador do Acre. Conforme consta no inquérito, a prática de se fazer uso de dinheiro vivo e usar terceiros para operacionalizá-lo se caracteriza como “indisfarçável tentativa de ocultar os pagamentos”.
As medidas impostas por instituições como o Banco Central e o Coaf para controlar o uso de dinheiro em espécie se dá, justamente, para combater a entrada de recursos não declarados no sistema financeiro. Dessa forma, as autoridades têm melhor controle para o combate a crimes como o tráfico de drogas e o desvio de verbas públicas.
O outro lado
A reportagem procurou a assessoria de imprensa do governador Gladson Cameli para comentar as denúncias que lhe são imputadas pela Polícia Federal, mas até o momento não houve retorno do e-mail enviado. Talvez por conta do feriadão prolongado decretado pelo governador, sua equipe esteja descansando.
Tão logo haja alguma manifestação, a publicaremos.