Desde os varadouros de Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, a nossa colaboradora Val Martins nos envia este belíssimo poema sobre as angústias dos ribeirinhos amazônico sem os rios e os igarapés que secaram com o verão severo que atinge a nossa região. O poema é uma adaptação de “José”, escrito por Carlos Drummond de Andrade. Uma adaptação aos novos tempos de uma Amazônia diferente – enquanto não conseguimos nos adaptar ao “novo normal”.
“Em ‘José’, Drummond retrata a angústia do homem urbano, isolado e sem rumo, que se sente perdido em um mundo hostil e indiferente”, comenta Val. Neste seu poema, nossos Josés e Marias são da floresta, mas têm a mesma sensação daquele criado por Drummond. E ainda precisam conviver com a invisibilidade.
Leia:
Ribeirinho
E agora, Ribeirinho?
o rio secou,
a água acabou,
o político sumiu,
o tempo esquentou,
e agora, Ribeirinho?
e agora, nós?
a gente que come,
que depende da tua produção,
que depende de tu,
que faz até uns poemas,
quem escreve, resiste?
e agora, Ribeirinho?
Está sem dinheiro,
está sem esperança,
está sem dignidade,
já não tem por quem gritar,
já não pode plantar,
escoar já não pode,
a água acabou,
o peixe não veio,
a caça não veio,
o rancho não veio,
não veio nem o marreteiro
e tudo acabou
e tudo murchou
e tudo secou,
e agora, Ribeirinho?
E agora, Ribeirinho?
tua doce família,
teu filho com febre,
sem quebra-jejum,
teu roçado,
tua lavoura,
tua renda mensal,
tua subsistência,
a lagarta levou — e agora?
Com o terçado na mão
quer colher a roça,
não existe roça;
quer correr pro lago,
mas o lago secou;
quer ir pro rio,
peixe não há mais.
Ribeirinho, e agora?
Se tu remasse,
se tu viajasse,
se tu dançasse
o xote do seringueiro,
se tu comesse,
se tu escrevesse,
se tu desistisse …
Mas tu não desiste,
Tu é duro, Ribeirinho!
Lutando no mundo
no meio da fumaça,
sem alegria,
resta lembranças
para se apegar,
sem motor na popa
que dê pra sair,
você que fugir, Ribeirinho!
Ribeirinho, para onde?
Por Val Martins